O conflito do Oriente Médio assumiu a feição de um sintoma neurótico: todo mundo vê a maneira de vencer o obstáculo, e contudo ninguém quer removê-lo, como se houvesse algum tipo de benefício libidinal na persistência do beco
Por Slavoj Žižek*, no Blog da Boitempo
Em um contexto de acirramento do conflito no oriente médio, o Blog da Boitempo recupera um trecho do livro Violência, seis reflexões laterais, escrito por Slavoj Žižek em 2008 e que acaba de ganhar edição brasileira pela Boitempo. Saiba mais ao final deste post.
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É demasiado fácil marcar pontos no debate sobre a violência por meio de inversões espirituosas e que poderiam prosseguir indefinidamente – então vamos acabar com este polêmico diálogo imaginário e arriscar um passo que conduza diretamente ao “coração das trevas” do conflito do Oriente Médio. Muitos pensadores políticos conservadores (e não só conservadores), de Blaise Pascal a Immanuel Kant e Joseph de Maistre, elaboraram a ideia das origens ilegítimas do poder, a ideia de “crime fundador” sobre o qual os nossos Estados se baseiam, e é por isso que devemos oferecer ao povo “nobres mentiras” sob a forma de heroicas narrativas de origem. A respeito dessas ideias, o que muitas vezes se diz de Israel é bastante verdadeiro: o infortúnio de Israel é ter sido estabelecido como Estado-nação um ou dois séculos mais tarde do que devia, em condições nas quais tais crimes fundadores deixaram de ser aceitáveis. A suprema ironia aqui é o fato de que foi justamente a influência intelectual judaica que contribuiu para a afirmação dessa inadmissibilidade!
Durante minha última visita a Israel, fui abordado por um intelectual israelita que, a par das minhas simpatias palestinas, me perguntou em tom jocoso: “Não tem vergonha de estar aqui, em Israel, esse Estado ilegal e criminoso? Não tem medo de ver aqui contaminadas as suas credenciais de esquerda e de se tornar cúmplice do crime?”.
Com toda a honestidade, tenho de admitir que toda vez que viajo a Israel experimento esse estranho estremecimento de quem entra num território proibido, de violência ilegítima. Será que isso significa que sou (não tão) secretamente antissemita? Mas o que me perturba é precisamente que me descubro num Estado que ainda não apagou a “violência fundadora” de suas origens “ilegítimas”, recalcando-as para um passado intemporal. Nesse sentido, aquilo com que o Estado de Israel nos confronta é simplesmente o passado apagado de todo e qualquer poder de Estado.
Por que seremos hoje mais sensíveis a essa violência? Precisamente porque, num universo global que se legitima através de uma moralidade global, os Estados soberanos deixaram de poder eximir-se a juízos de ordem moral, mas são tratados como agentes morais puníveis por seus crimes, apesar de continuar a ser discutível tanto aquele que exerce a justiça como o estatuto de quem julga o juiz. A soberania do Estado é assim severamente constrangida. Este aspecto explica o valor emblemático do conflito no Oriente Médio: ele nos confronta com a fragilidade e a permeabilidade da fronteira que separa o poder não estatal “ilegítimo” do poder estatal “legítimo”.
No caso do Estado de Israel, suas origens “ilegítimas” ainda não puderam ser elididas. Seus efeitos são hoje plenamente sentidos. O que nos faz lembrar o lema da Ópera dos três vinténs de Bertolt Brecht: o que é um assalto a banco comparado com a fundação de um banco? Para dize-lo de outra forma, o que são os assaltos que violam a lei comparados com os assaltos que têm lugar no quadro da lei? O que só faz crescer a tentação de propor uma nova variação em torno deste lema: o que é um ato de terrorismo face a um poder de Estado que faz a sua guerra contra o terrorismo?
Quando os observadores ocidentais se perguntam desesperados por que é que os palestinos persistem no seu apego obstinado à sua terra e se recusam a dissolver a própria identidade num mar árabe mais vasto, estão exigindo que os palestinos ignorem precisamente aquilo que constitui a violência fundadora de Estado “ilegítima” por parte de Israel. Numa demonstração de justiça poética que afirma a ironia da história, os palestinos devolvem a Israel a sua própria mensagem, sob uma forma invertida e verdadeira. Existe o apego patológico à terra, implicando um direito de regresso a ela ao cabo de milhares de anos – uma negação efetiva da desterritorialização que se alega ser característica do capitalismo global atual. Mas a mensagem invertida vai mais longe ainda. Imagine se lêssemos a seguinte declaração nos meios de comunicação atuais:
Nossos inimigos nos chamaram de terroristas […]. Pessoas que não foram nem nossos amigos nem nossos inimigos […] também usaram esse nome latino […]. E, no entanto, nós não fomos terroristas […]. As origens históricas e linguísticas do termo político “terror” demonstram que ele não pode ser aplicado a uma guerra revolucionária de libertação […]. Os combatentes da liberdade têm de usar armas; de outro modo seriam imediatamente esmagados […]. O que tem a ver com o “terrorismo” uma luta em defesa da dignidade do homem, contra a opressão e a servidão?
Automaticamente atribuiríamos esta mensagem a um grupo terrorista islâmico e, consequentemente, o condenaríamos. Todavia, o autor dessas palavras não é outro senão o ex-primeiro-ministro de Israel Menachem Begin, durante os anos em que a Haganah combatia as forças britânicas na Palestina1. É interessante notar que, durante os anos de luta dos judeus contra o exército britânico na Palestina, o termo “terrorista” tinha uma conotação positiva. Passemos a outro exercício mental: imaginemos ler nos jornais contemporâneos uma carta aberta intitulada “Carta aos terroristas da Palestina”, que contivesse as seguintes afirmações:
Meus bravos amigos. Podem não acreditar no que escrevo a vocês, dada a atmosfera turva que hoje se respira. Mas dou a minha palavra de velho repórter quando afirmo que o que escrevo é verdade. Os palestinos da América estão do seu lado. Vocês são os nossos heróis. Vocês são o nosso sorriso. São a pluma que enfeita o nosso chapéu. São a primeira resposta que faz sentido – para o Novo Mundo. Toda vez que vocês explodem um arsenal israelita, assaltam uma prisão israelita, fazem ir pelos ares um trilho de trem israelita, roubam um banco israelita ou combatem com suas armas e suas bombas os traidores israelitas invasores da sua pátria, os palestinos da América celebram uma pequena festa em seus corações.
Na realidade, uma carta aberta muito parecida foi publicada no fim da década de 1940 pela imprensa estadunidense, assinada por ninguém menos que Ben Hecht, o célebre roteirista de Hollywood. Limitei-me aqui a substituir a palavra “judeus” por “palestinos” e “britânicos” por “israelitas”2 quase encantador vermos a primeira geração dos líderes israelitas confessarem abertamente o fato de suas reivindicações relativas à terra da Palestina não poderem basear-se numa noção de justiça universal, de se inscreverem no quadro de uma simples guerra de conquista travada entre dois grupos, não sendo possível qualquer tipo de mediação entre eles. Eis o que o primeiro-ministro de Israel David Ben-Gurion escreveu:
Qualquer pessoa pode se dar conta do peso dos problemas nas relações entre árabes e judeus. Mas ninguém vê que não há solução para estes problemas. Não há solução! Estamos diante de um abismo e ninguém pode ligar seus dois lados […]. Nós, como povo, queremos que esta terra seja nossa; os árabes, como povo, querem que esta terra seja deles.3
O problema que esta declaração nos coloca hoje é muito claro: a ignorância de qualquer consideração moral relativamente aos conflitos étnicos em torno da terra deixou de ser admissível. É por isso que se nos parece tão profundamente problemático o modo como o célebre caçador de nazistas Simon Wiesenthal abordou o problema em seu Justiça não é vingança:
Um dia se compreenderá que é impossível instaurar um Estado sem afetar os direitos de algumas das pessoas que a essa altura vivem na região. (Porque onde ninguém viveu antes é presumivelmente impossível de se habitar.) Teremos de nos contentar com o fato dessas consequências serem limitadas e afetarem relativamente poucas pessoas. Tal era a situação na época da fundação de Israel […]. Afinal, existira durante muito tempo uma população judaica na região, e a população palestina era relativamente dispersa e tinha alternativas relativamente numerosas perante a perspectiva de ceder as suas posições.4
O que Wiesenthal advoga aqui nada menos é do que uma violência fundadora de Estado com rosto humano; uma violência, portanto, cujos abusos sejam limitados. (No que se refere à dispersão comparativa dos colonos, a população do território palestino, em 1880, contava 25 mil judeus e 620 mil palestinos.) Todavia, na nossa atual perspectiva, a afirmação mais interessante do ensaio de Wiesenthal aparece uma página antes, onde escreve: “O continuamente vitorioso Estado de Israel não poderá contar eternamente com a simpatia demonstrada às vítimas”5. Wiesenthal parece querer dizer que hoje, quando o Estado de Israel se tornou “continuamente vitorioso”, já não tem necessidade de se comportar como uma vítima, mas pode passar a afirmar plenamente a sua força.
Talvez seja verdade, mas devemos acrescentar que tal posição de força implica também novas responsabilidades. O problema atualmente é que o Estado de Israel, apesar de “continuamente vitorioso”, continua a apoiar-se na imagem dos judeus como vítimas para legitimar a sua política de potência, bem como para denunciar os que o criticam como simpatizantes disfarçados do Holocausto. Arthur Koestler, o grande convertido anticomunista, formulou uma intuição profunda: “Se o poder corrompe, a formulação inversa também é verdadeira; a perseguição corrompe as vítimas, embora talvez de formas mais sutis e trágicas”.
Tal é a fraqueza fatal do único argumento forte em defesa da criação de um Estado-nação judaico após o Holocausto: ao criarem o seu próprio Estado, os judeus superariam a situação na qual a sua liberdade dependeria dos Estados da diáspora e da tolerância ou intolerância das respectivas maiorias nacionais. Embora esta linha de argumentação seja diferente da religiosa, tem de recorrer à tradição religiosa para justificar a localização geográfica do novo Estado. De outro modo, estaríamos na situação descrita pela velha piada em que um louco procura a sua carteira perdida perto de um poste de luz, ao invés de explorar o canto escuro em que efetivamente a perdeu, porque na luz é mais fácil de enxergar: foi porque era mais fácil assim que os judeus ocuparam a terra dos palestinos e não uma outra, tomada àqueles que lhes haviam causado tanto sofrimento e manifestamente lhes deviam reparação.
Robert Fisk, jornalista britânico que vive no Líbano, fez um documentário sobre a crise do Oriente Médio, em que descreve como os seus vizinhos árabes, refugiados palestinos, lhe mostraram a chave da casa que tinham possuído outrora em Haifa, antes de ela lhes ter sido tirada pelos israelitas. Então ele visitou a família judia que morava naquela casa e perguntou aos seus membros de onde eles tinham vindo. A resposta foi Chrzanow, uma pequena cidade próxima de Cracóvia, na Polônia, e mostraram-lhe então uma fotografia da sua anterior casa polaca, que haviam perdido durante a guerra. O homem viajou, portanto, até a Polônia e procurou a mulher que então vivia na casa de Chrzanow. Era uma “repatriada” de Lemberg, atualmente na Ucrânia Ocidental. Não era difícil adivinhar qual seria o próximo elo da cadeia. A repatriada fora exilada da sua cidade natal por ocasião da sua conquista pela União Soviética. Sua casa fora evidentemente ocupada por russos enviados no pós-guerra pelo governo para a cidade a fim de promover a sua sovietização.6
E a história continua, é claro: a família russa provavelmente se mudou de uma casa na Ucrânia Oriental, destruída pelos alemães durante as grandes batalhas da Frente Leste… É aqui que entra o Holocausto: a referência ao Holocausto permite aos israelitas eximirem-se dessa cadeia de substituições. Mas quem evoca o Holocausto nestes termos, o que faz de fato é manipula-lo, instrumentalizando-o ao serviço de objetivos políticos momentâneos.
O grande mistério do conflito israelo-palestino é ter persistido por tanto tempo quando todo mundo a única solução viável para ele: a retirada dos israelitas da Cisjordânia e de Gaza e a instauração de um Estado palestino, bem como um compromisso conseguido de uma maneira ou de outra a propósito de Jerusalém. Sempre que um acordo pareceu exequível, acabou desaparecendo inexplicavelmente. Quantas vezes não aconteceu que, precisamente quando parece não faltar mais do que uma formulação adequada relativa a certas questões menores para se chegar à paz, tudo volta a se desfazer, revelando a fraqueza da solução negociada? O conflito do Oriente Médio assumiu a feição de um sintoma neurótico: todo mundo vê a maneira de vencer o obstáculo, e contudo ninguém quer removê-lo, como se houvesse algum tipo de benefício libidinal na persistência do beco.
É por isso que a crise do Oriente Médio é um ponto tão sensível para as políticas pragmáticas que visam resolver o problema passo a passo, de maneira realista. No caso vertente, o que é utópico é a própria ideia de que uma abordagem “realista” poderá funcionar quando a única solução “realista” seria aqui a de maior dimensão: resolver o problema pela raiz. A velha palavra de ordem de 1968 parece a única aplicável: Soyons realistes, demandons l’impossible! [Sejamos realistas, vamos exigir o impossível!]. Só um gesto radical e “impossível” no quadro traçado pelas circunstâncias presentes poderia ser uma saída realista. Talvez a solução que “todo mundo conhece” como sendo a única viável – a retirada dos israelitas da Margem Ocidental e de Gaza, a instauração de um Estado palestino – não funcione, e tenhamos, portanto, de mudar de quadro, mudar as condições do problema e encarar o horizonte da solução de um só Estado.
Aqui nos sentimos tentados, uma vez mais, a falar sobre um nó sintomático: no conflito israelo-palestino, não é verdade que os papéis habituais se encontram de certo modo invertidos, torcidos como à volta de um nó? Israel – representando oficialmente a modernidade liberal ocidental na região – é legitimado ao invocar a sua identidade étnico-religiosa, enquanto os palestinos – acusados de “fundamentalistas”– legitimam as suas reivindicações em termos de cidadania secular. (É grande a tentação de arriscar a hipótese de que foi a própria ocupação israelita dos territórios palestinos que impeliu os palestinos a perceberem-se como uma nação separada em busca do seu próprio Estado, e não mais como uma simples parte da massa árabe.)
Temos assim o paradoxo do Estado de Israel, uma alegada ilha de modernidade liberal e democrática no Oriente Médio, opondo-se às reclamações árabes por meio de uma afirmação étnico-religiosa ainda mais “fundamentalista” do seu direito a uma terra santa. A ironia maior é que, segundo certas pesquisas, os israelitas constituem a nação mais ateia do mundo: cerca de 70% de sua população não crê em nenhum tipo de divindade. Sua referência à terra assenta, assim, numa denegação de tipo fetichista: “Sei muito bem que Deus não existe, mas acredito, apesar de tudo, que foi Deus quem nos deu a terra do Grande Israel…”. E, como nos ensina a história do nó górdio, a única maneira de se sair do beco atual não é desenredar o nó, mas corta-lo. Como? Badiou abordou recentemente o impasse:
“A fundação de um Estado sionista foi uma realidade composta altamente complexa. Por um lado, foi um acontecimento que fazia parte de um outro ainda maior: a ascensão dos grandes projetos revolucionários comunistas e socialistas, a ideia da fundação de uma sociedade inteiramente nova. Por outro lado, foi um contra-acontecimento, parte de um contra-acontecimento maior: o colonialismo, a conquista brutal por parte de gente que vinha da Europa, de uma nova terra onde já vivia um outro povo. Israel é uma mistura extraordinária de revolução e reação, de emancipação e opressão. O Estado sionista tem de se tornar o que continha em si de justo e de novo. Tem de se tornar o menos racial, o menos religioso e o menos nacionalista dos Estados. O mais universal de todos eles.”7
Embora haja algo de verdadeiro nessa perspectiva, o problema persiste: será possível desatar de fato o nó diretamente e simplesmente separar os dois aspectos de Israel, no sentido de consumar a perspectiva do projeto revolucionário do Estado sionista sem a sua sombra colonizadora? Estamos como que perante a lendária resposta por meio de um “Se…” que um político norte-americano deu, na década de 1920, à pergunta “Apoia a proibição do vinho: sim ou não?”: “Se por vinho você entende a terrível bebida que arruinou milhares de famílias, fazendo dos homens destroços que batiam nas mulheres e se esqueciam dos filhos, então sou inteiramente favorável à proibição. Mas se por vinho você entender a nobre bebida, de gosto maravilhoso, que torna cada refeição um enorme prazer, então sou contra!”
Talvez precisemos de um pouco mais: não só do traçado da linha que distingue o bom do mau Israel, mas de um autêntico ato que transforme as próprias coordenadas da situação presente. O antigo primeiro-ministro israelita Isaac Rabin deu o primeiro grande passo nessa direção quando reconheceu a OLP como representante legítima dos palestinos e, por conseguinte, o único verdadeiro parceiro de negociação.
Quando Rabin anunciou a inversão da política israelita de “não fazemos negociações com a OLP, organização terrorista” e pronunciou as simples palavras “vamos deixar esta comédia de negociarmos com os palestinos sem ligações públicas com a OLP e começar a falar com os nossos interlocutores reais”, a situação do Oriente Médio mudou de imediato. Tal é o efeito de um verdadeiro ato político: torna pensável o impensável. Embora fosse um político trabalhista, Rabin efetuou assim um gesto que caracteriza os melhores momentos de certos políticos conservadores: só um De Gaulle podia assegurar a independência da Argélia; só um conservador como Nixon podia estabelecer relações com a China8.
Que poderia, então, constituir hoje um ato desse tipo por parte dos árabes? Fazer o que Edward Norton faz em Clube da luta, de David Fincher: antes de mais nada, atacarem a si próprios – deixarem de atirar todas as culpas para cima dos judeus, como se a expansão sionista na Palestina fosse a origem e a representação simbólica de todas as desgraças árabes, o que leva à ideia de que a vitória sobre Israel é a condição imprescindível da autoafirmação árabe. Os palestinos que sustentam que a libertação do seu território da ocupação israelita dará um novo impulso à democratização do mundo árabe não estão vendo as coisas direito. Estas são precisamente ao contrário. Deveríamos começar por denunciar abertamente os corruptos regimes clericais e militares, da Síria à Arábia Saudita, que se servem da ocupação israelita para se legitimarem. O paradoxo é que o foco de toda a sua atenção em Israel é a razão pela qual os árabes estão perdendo a batalha. O sentido fundamental da jihad no Islã não é a guerra contra o inimigo exterior, mas o esforço de purificação interior.
Trata-se de uma luta contra as próprias fraquezas e derrotas. Por isso talvez os muçulmanos devessem proceder mais ativamente à passagem do sentido mais corrente entre o público ao verdadeiro sentido da jihad. Os três principais agentes da Guerra Contra o Terrorismo (os Estados Unidos pós-11 de Setembro, Israel e os árabes) veem-se a si próprios como vítimas e usam sua condição de vítimas para legitimar políticas expansionistas. Em certo sentido, o 11 de Setembro aconteceu no momento certo para justificar o expansionismo militar norte-americano: agora que nós também somos vítimas, podemos nos defender e contra-atacar.
A aliança Estados Unidos/Israel, essa estranha associação entre a nação (desenvolvida) mais religiosa do mundo insistindo na separação entre a religião e o Estado e o povo mais irreligioso do mundo cuja existência se baseia na natureza religiosa de seu Estado, pode assim apresentar-se como um eixo das vítimas.
Então vamos à grande questão: qual seria hoje o ato ético-politico verdadeiramente radical no Oriente Médio? Tanto para os israelitas como para os árabes, consistiria no gesto de renúncia ao controle (político) sobre Jerusalém, isto é, a promoção da transformação da Cidade Velha de Jerusalém em um lugar extraestatal de culto religioso sob o controle (temporário) de uma força internacional neutra.
O que os dois lados deveriam aceitar é que, ao renunciarem ao controle político de Jerusalém, não estão efetivamente renunciando a nada. Antes, estão conseguindo a elevação de Jerusalém a um autêntico lugar sagrado e extrapolítico. O que perderiam seria precisamente e só o que já, por si próprio, merece ser perdido: a redução da religião a uma parada em jogo na peça do poder político. Seria um verdadeiro acontecimento no Oriente Médio a explosão da verdadeira universalidade política no sentido de São Paulo: “Para nós não existem judeus nem palestinos.” Ambos os lados teriam de compreender que essa renúncia do Estado-nação etnicamente “puro” seria uma libertação para eles e não um simples sacrifício que cada um faria ao outro.
Recordemos a história do círculo de giz caucasiano em que Bertolt Brecht baseou uma de suas últimas peças. Em tempos antigos, em algum lugar no Cáucaso, uma mãe biológica e uma mãe adotiva recorreram a um juiz para que este decidisse a qual delas pertencia a criança. O juiz desenhou um círculo de giz no chão, pôs o bebê no meio dele e disse às duas mulheres que cada uma delas agarrasse a criança por um braço; a criança pertenceria àquela que a conseguisse tirar para fora do círculo. Quando a mãe real viu que a criança estava se machucando por ser puxada em direções opostas, a compaixão levou-a a soltar o braço que segurava. Evidentemente, foi a ela que o juiz deu o filho, alegando que a mulher demonstrara um autêntico amor maternal. Segundo a mesma lógica, poderíamos imaginar um círculo de giz em Jerusalém. Aquele que amasse verdadeiramente Jerusalém preferiria perde-la a vê-la dilacerada pela disputa. Evidentemente, a suprema ironia é aqui o fato de a pequena história brechtiana ser uma variante do juízo do Rei Salomão que aparece no Antigo Testamento, que, reconhecendo que não havia maneira justa de resolver o dilema maternal, propôs a seguinte solução de Estado: a criança deveria ser cortada em duas, ficando uma metade para cada mãe. A verdadeira mãe, é claro, desistiu da reivindicação.
O que os judeus e os palestinos têm em comum é o fato de uma existência diaspórica fazer parte de suas vidas, parte de sua própria identidade. E se ambos se unissem na base deste aspecto – não na base de ocuparem, possuírem ou dividirem o mesmo território, mas na de manterem-no partilhado, aberto como refúgio aos condenados à errância? E se Jerusalém se transformasse não no lugar de um ou do outro, mas no lugar dos sem-lugar?
Tal solidariedade partilhada é a única base possível para uma verdadeira reconciliação: para o entendimento de que, ao combatermos o outro, combatemos o que há de mais vulnerável em nossa própria vida. É por isso que, com plena consciência da seriedade do conflito e de suas consequências potenciais, deveríamos insistir mais do que nunca na ideia de que estamos diante de um falso conflito, de um conflito que obscurece e mistifica a verdadeira linha de frente.
Notas
1. Menachem Begin, The Revolt (Nova York, Dell, 1977), p. 100-1.
2. A carta apareceu como um anúncio de página inteira no New York Post, 14 maio 1947, p. 42.
3. Citado pela revista Time, 24 jul. 2006.
4. Simon Wiesenthal, Justice, Not Vengeance (Londres, Mandarin, 1989), p. 266.
5. Ibidem, p. 265.
6. Norman Davies, Europe at War (Londres, Macmillan, 2006), p. 346 [ed. port.: A Europa em guerra: 1939-1945, Lisboa, Edições 70, 2008].
7. Alain Badiou, “The Question of Democracy”, Lacanian Ink, n. 28, 2o sem. 2006, p. 59.
8. Do mesmo modo, deveríamos elogiar Ehud Barak por sua resposta a Gideon Levy no Ha’aretz. Quando lhe perguntaram o que faria se tivesse nascido palestino, Barak respondeu, com efeito: “Teria aderido a uma organização terrorista”.
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Este texto integra o livro Violência: seis reflexões laterais, de Slavoj Žižek, sobre o fenômeno moderno da violência, entre as explosões contraditórias das ruas e a opressão silenciosa de nosso sistema político e econômico. A edição conta ainda com um prefácio inédito, de Žižek, e um posfácio, de Mauro Iasi, situando a discussão no contexto das manifestações que tomaram as ruas do Brasil em junho de 2013!