por: Roberto Amaral
Postado na Carta Capital on line dia em 10/06/2014
Ninguém, em sã consciência, acredita que as mazelas da vida política brasileira serão resolvidas pelo golpe de mágica de uma reforma eleitoral. Mas certamente concordamos, todos, que o atual sistema nos está levado a um impasse decretado pela rejeição da política e dos partidos, com os quais não se identifica a cidadania. A reforma é, pois, um ponto de partida, porque a História ainda não registrou democracia sem partidos e partidos sem política. Esta não é cassada apenas pelos golpes do autoritarismo. Atingem-na, ferindo-a no âmago, a anomia popular que se transforma em indiferença que se transforma em desapreço. Não se trata, apenas, da crise da democracia representativa, agônica. Esta forma de delegação, se bem que relativamente jovem, é instituição em crise em todo o mundo, como em crise estão os partidos, aqui e no mundo, como demonstram as recentes eleições europeias e a indiferença do eleitorado brasileiro, a pouco mais de três meses da escolha do presidente da República, direito só readquirido em 1989.
A recuperação da política dificilmente será operada sem mudanças profundas do processo eleitoral e do sistema de partidos. Serão ainda reformas tópicas, enquanto não é possível ou recomendável a reforma política, que depende de uma Constituinte, por uma razão muito simples: não se pode esperar dos atuais quadros do Congresso nacional alterações legislativas que ameacem o mando político e a máquina de eleições e reeleições. De nossos parlamentares quase tudo se pode esperar, menos o suicídio.
Enquanto não avançam as propostas de reforma sistêmica, estrutural, pensemos no que é possível, ainda que difícil, no cenário atual.
Comecemos por uma reforma constitucional que revogue a reeleição dos mandatos majoritários, fonte de exacerbação da manipulação da vontade eleitoral, por intermédio tanto do abuso do poder político, quanto do abuso do poder econômico, irmãos siameses de idêntico falseamento da vontade eleitoral, agredida ainda pela exposição televisiva de seus preferidos e pelos púlpitos mediáticos transformados em trampolim eleitoral. Dessas todas, difícil indicar qual a maior e mais nociva violência. Ademais do óbvio, assinale-se as condições desproporcionais da disputa eleitoral, com um candidato no governo, contratando e pagando, de presença permanente e inevitávl na mídia, e as candidaturas concorrentes, mendigando espaços e contribuintes. Da mesma forma é preciso limitar, no legislativo, a sequência interminável de reeleições: o ofício do parlamentar, no mandato, presentemente, é assegurar-se (como Deus seja servido) de sua renovação. Sem compromissos com o mandato. O eleitor vota em um deputado ou senador e ele já no primeiro dia, e por todo o mandato, se licencia para ocupar cargos no Executivo. Por que não cultivar a experiência de outros regimes presidencialistas, que exigem a renúncia do parlamentar que optar pelo exercício de função noutro Poder?
A cada episódio eleitoral mais aumenta a manipulação do poder econômico, que se serve da porta aberta pelo encarecimento, injustificável e inaceitável, das eleições, tornando seu custo abusivo, antidemocrático e imoral. Movimentam-se milhões, que jamais saem dos bolsos dos candidatos, e candidatos só podem ser aqueles que admitem recorrer aos famosos financiadores – os quais, por óbvio, não despendem de graça altas e às vezes altíssimas somas de dinheiro. Daí os caixas dois e três, ou os ‘recursos não contabilizados’.
Os programas eleitorais de rádio e de televisão durante a campanha, grande conquista democrática, financiados pela União, não equalizam, porém, a disputa. Antes de tudo, segundo o partido ou coligação a que pertençam, os candidatos são distinguidos por absurdas variações de tempo que vão de 30 segundo até 15 minutos ou mais. De outra parte, os programas não servem ao exercício das ideias, mas à megalomania de ‘marqueteiros’ e os custos se tornam elevadíssimos, elevando ainda mais o custo das eleições, donde o preço do mandato, donde tudo o que se sabe… Gira e mexe o candidato está à mercê do poder econômico. Por que não trocar pelo debate das ideias as atuais disputas plásticas, as ingerências tecnológicas, os truques e as trucagens, ou seja, toda a parafernália posta em uso para manipular a vontade do eleitor? Por que não pensar em programa de rádio e de televisão em que a presença seja exclusiva do candidato, sem âncoras, sem astros, sem vedetes, sem ‘apoiadores’, mas simplesmente fazendo o seu discurso, expondo o seu programa (caso exista)? Infinitamente mais barata, essa alternativa ensejaria a escolha mais consciente e mais livre pelo eleitor.
Qualquer que seja sua metodologia, é urgente a adoção do financiamento público e exclusivo de campanhas eleitorais, assim democratizadas e comprometidas com a isonomia, campanhas que devem ser torneio político – afastando-se, portanto, do que são hoje, mera disputa entre publicitários despolitizados e sem formação ética, ‘vendedores’ de candidatos e candidaturas como se vendem sabão, pasta de dente e cerveja, pesquisadores, intérpretes de pesquisas de opinião e de ‘tendências eleitorais’, pesquisas quantitativas quase sempre desmentidas pelo eleitorado, elaboradas muitas vezes para assegurar o financiamento privado, pesquisas e marqueteiros que, com a visão de publicitários, desfazem as diferenças e as distinções políticas, a elas opondo o discurso ‘científico’, calculado, milimetrado e, por isso mesmo, fruto da mesma ciência. Esse discurso é o mesmo para todos os candidatos – respeitadas inflexões irrelevantes, como aquelas que na publicidade distinguem os sabonetes do mesmo laboratório, ou as cervejas da mesma fábrica. Independe do partido e do candidato, pois este é levado a dizer o que o marqueteiro-‘cientista’ lhe diz ser o discurso que o eleitorado quer ouvir, assim como detectado pelas suas pesquisas. Donde o discurso comum, necessariamente pasteurizado, homogeneizado, pois todos os candidatos têm acesso às mesmas pesquisas e às mesmas análises e a variação entre os marqueteiros-intérpretes, que se revezam nas campanhas, é apenas de orçamento. O marqueteiro que no Brasil faz a campanha de Lula é o mesmo que na Venezuela faz a do candidato da direita e no Brasil faz ao mesmo tempo campanhas de candidatos de esquerda e direita e aparentemente não há nada de mais nisso, pois eles são ‘técnicos’ e os partidos de ‘esquerda’ se coligam com os de ‘direita’. Tudo, partidos e candidatos, não passa, nesse contexto, de ‘produto a ser ‘vendido’.
Outra distorção é a política de coligações, estabelecidas não pela força da concordância programática, mas pela necessidade de tempo de rádio e de televisão, sem o qual nenhuma candidatura é competitiva. Assim, nos pleitos majoritários. Nas eleições proporcionais, para os legislativos, a distorção é ainda mais grave, porque as coligações se tornam inevitáveis e ainda mais daninhas. São buscadas por força da necessidade de agregar tempo de televisão – determinado pela soma dos tempos de cada partido, determinado pelo número de deputados federais –, mas são necessárias principalmente para assegurar a eleição de candidatos de partidos que, correndo isoladamente, não teriam condições de alcançar o quociente eleitoral. Assim, votando no candidato a do partido x, o eleitor corre o risco de eleger o candidato b do partido y! Vota em quem quer, mas elege quem não quer.
Como esperar autenticidade de um processo assim tão distorcido?
Como esperar que o eleitor se sinta representado?
E o vereador ou deputado eleito nessas condições, uma vez no mandato, quase sempre se considera– e eis outra deformação –, uma instituição acima dos partidos, acima de orientações programáticas, à margem das direções partidárias, inatingível pelas orientações de bancada. Assim, pertencer à bancada de um partido dito progressista ou de um partido assumidamente conservador não faz a menor diferença, como não faz diferença se o partido é situacionista ou milita na oposição. Simplesmente porque os programas de governo apresentados pelos candidatos são meras peças literárias, de acentuado sabor ficcional, elaboradas por intelectuais sem qualquer noção de ‘pragmatismo’. Por isso mesmo são engavetados imediatamente após o pleito.
Por essas manhas e artimanhas é que os partidos (na sua maioria internamente autoritários) não valorizam o instituto da fidelidade. Antídoto é o voto de legenda em listas pré-ordenadas associado à proibição de coligações proporcionais. Esse modelo fortalece os partidos, depura as nominatas de candidatos do apelo recorrente a milionários financiadores de campanhas, de arrivistas da política como astros de televisão (neste campo incluídos os pregadores mediáticos), ex-jogadores disso e daquilo, atualmente catados pelos partidos para fortalecer suas legendas.
Outra história é a democratização dos partidos, que jamais se obterá pela via legislativa. Isto requer um longo processo de decantação. Pede-se tempo. Mas a simples proibição de coligações poderá separar projetos de partido e legendas de aluguel, essas (e são tantas!) organizadas como empresas comerciais. Distinguem-se dos armazéns de secos e molhados porque, ao invés de vender batatas, vendem tempo de televisão.
O que impera, hoje, é a mixórdia, donde a lassidão ética. Donde a desmoralização dos partidos, dos políticos e da política.
Vivemos uma farsa, o processo político e político-eleitoral é uma comédia bufa, uma insanidade. Uma perigosa mistificação que pode ser medida pela distância crescente entre povo e política, eleitor e políticos, cidadania e instituições democráticas, solapadas pelo descrédito advindo da desmoralização do mandato eletivo.
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