Recomendo a leitura deste artigo de Jorge Castañeda, que  descreve, a trágica experiência do México com o NAFTA. Trata-se de leitura importante e oportuna, pois, uma vez mais e nunca pela última vez, volta a imprensa a tonitroar as vantagens do livre comércio.Jorge Castañeda é autor insuspeitíssimo. Ex-ministro das relações exteriores do México (2000-2003) no governo conservador do presidente Vicente Fox, ele próprio um cientista político conservador, é atualmente professor de políticas e estudos latino-americanos e caribenhos na Universidade de Nova Iorque. É ele quem nos informa que o crescimento das exportações mexicanas se deu antes de o pais aderir ao NAFTA. Mas no período de 1994 (quando as regras do NAFTA entraram em vigor) até aqui, a renda per capita do México cresceu apenas cerca de 1,2% ao ano, ou seja, bem abaixo dos índices médios alcançados por Brasil, Chile, Colômbia, Uruguai e Peru. De outra parte, ao invés de ser contida, como se esperava, a imigração cresceu de 6,2 milhões, em 1994, para 12 milhões, em 2013. O México, que aspirava a exportar mercadorias, continuou mesmo foi exportando sua gente para o sub-emprego nos EUA. Apesar do NAFTA, o México também não logrou atrair o capital estrangeiro. Ainda hoje, recebe menos investimentos do que Brasil, Chile, Colômbia e Peru. Por outro lado, o crescimento econômico dos países latino-americanos que não celebraram acordos de livre comércio com os EUA foi maior do que o crescimento mexicano. O NAFTA, por fim, diz Castañeda “não cumpriu com suas promessas econômicas” (RA).
Os Registros Misturados do NAFTA
Por: Jorge Castañeda
Foto de Jorge Castañeda Quando o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio foi proposto, desencadeou um vigoroso debate em todo o continente sobre suas vantagens e desvantagens. Hoje, 20 anos após sua entrada em vigor, talvez a única coisa que todos podem concordar é que todos os lados exageraram: o NAFTA não trouxe nem os enormes ganhos que seus proponentes prometeram, nem as perdas dramáticas altertadas por seus adversários. Todo o resto é discutível. O México, em particular, é um lugar muito diferente hoje – uma democracia multipartidária com uma ampla classe média e uma economia de exportação competitiva – e seu povo está muito melhor do que antes, mas encontrar a fonte das grandes mudanças que atingiram o país é uma tarefa desafiadora. Seria demasiado simplista creditar ao NAFTA as transformações do México, assim como seria culpar o NAFTA por muitos dos fracassos do país.
A verdade não está nos extremos. Visto exclusivamente como um acordo comercial, o NAFTA foi um inegável sucesso para o México, inaugurando um dramático aumento nas exportações. Mas se o objetivo do acordo era estimular o crescimento econômico, criar empregos, aumentar a produtividade, elevar os salários e desencorajar a emigração, os resultados foram menos claros.
Prós e contras
Sem dúvida, o NAFTA expandiu drasticamente o comércio mexicano. Embora as exportações tenham começado a aumentar vários anos antes de o tratado ser concluido, quando o presidente Miguel de la Madrid ascendeu o país ao Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (o antecessor da Organização Mundial do Comércio), em 1985, o NAFTA acelerou a tendência. As exportações do México saltaram de cerca de 60 bilhões de dólares em 1994 (o ano que o NAFTA entrou em vigor) para quase 400 bilhões em 2013. Produtos manufaturados, como automóveis, telefones celulares e geladeiras  compõem grande parte dessas exportações, e algumas das maiores empresas do México são grandes atores no exterior. Além disso, o corolário desse boom de exportação – uma explosão de importações – fez baixar o preço dos bens de consumo, de sapatos a televisores e a carne bovina. Graças a este “efeito Walmart”, milhões de mexicanos agora podem comprar produtos que antes eram reservados a uma classe média que era menos de um terço da população, e esses produtos são agora de qualidade muito superior. Se o México tornou-se uma sociedade de classe média, como muitos argumentam agora, é em grande parte devido a essa transformação, especialmente considerando que a renda agregada dos mexicanos não aumentou muito, em termos reais, desde que o Nafta entrou em vigor. Apesar de os números impressionantes do comércio, o NAFTA não cumpriu com praticamente nenhuma de suas promessas econômicas para o México.
O NAFTA também fixou as políticas macroeconômicas que incentivaram ou, pelo menos, aquelas que permitiram esses ganhos para o consumidor mexicano e para o país. Embora o governo mexicano tenha cometido erros inegáveis ​ de política econômica em 1994 (quando ele congelou a taxa de câmbio e afrouxou o crédito), em 2001 (quando ele não conseguiu impulsionar a economia) e novamente em 2009 (quando ele subestimou a magnitude da retração), a longo prazo, as autoridades têm mantido estáveis as finanças públicas, a inflação baixa, as políticas liberais de comércio e uma moeda estável que, desde 1994, nunca foi sobrevalorizada.
Esse pacote não foi isento de custos, mas tem promovido notável período de estabilidade financeira, pressionando para baixo as taxas de juros e concedendo crédito para uma miríade de mexicanos. Mais de cinco milhões de novas casas – embora muitas vezes feias, pequenas e distantes dos locais de trabalho – foram construídas e vendidas ao longo dos últimos 15 anos, em grande parte porque as famílias agora têm acesso a créditos de baixa taxa fixa. Embora nenhuma cláusula do NAFTA permita explicitamente a gestão econômica ortodoxa, o acordo acabou enrigessendo um governo acostumado a excessos de gastos e de promessas e à escassez de feitos. O acordo preveniu o México de retornar aos velhos tempos de protecionismo e de nacionalizações de grande escala e fez com que os preços dos bens comercializáveis ​​em ambos os lados da fronteira convergissem. Como resultado, o NAFTA inviabilizou os tradicionais déficits gigantescos do México, uma vez que eles se tornaram geradores de crises cambiais, como aquela do final de 1994 .
Os efeitos políticos do NAFTA no México são mais difíceis de avaliar. Muitos daqueles que não concordavam com o acordo, como eu, opuseram-se a ele por achar que se tratava de acordo de último minuto sustentado pelo sistema político autoritário, que tinha sido criado no final de 1920 e estava em seus últimos suspiros, em meados da década de 1990. E, de fato, para o desespero dos que acreditavam que 1994 foi o momento certo para o México deixar o Partido Revolucionário Institucional (PRI) para trás e seguir em frente rumo a uma democracia representativa de pleno direito, o NAFTA apoiou o que o escritor Mario Vargas Llosa chamou de “ditadura perfeita”, que, de outra forma, poderia ter sucumbido à onda democrática que varreu a América Latina, a Europa Oriental, a África e a Ásia na época. Mas, muitos outros mexicanos com credenciais democráticas igualmente válidas, consideraram o NAFTA diretamente responsável pela perda de poder do PRI em 2000. Sem o acordo comercial, a lógica que se sobrepõe é que o presidente norte-americano Bill Clinton nunca teria concordado com o resgate de 50 bilhões à economia mexicana em 1995. Alguns acreditam que ele condicionou o resgate à aceitação do presidente Ernesto Zedillo de eleições livres e justas cinco anos mais tarde, indepedente de quem ganhasse.      
Ambos os casos são difíceis de provar. Várias crises se abateram sobre o México, em 1994: o levante rebelde zapatista que estourou no Estado de Chiapas; o candidato à presidência do PRI, Luis Donaldo Colosio, foi assassinado; e a economia ficou superaquecida, levando a uma crise financeira, em dezembro do mesmo ano. Se o NAFTA houvesse sido rejeitado no final de 1993, o PRI poderia ter perdido as eleições de 1994, uma vez que teria sofrido um tremendo revés e teria sido incapaz de realizar os gastos que a ratificação do tratado permitiu. Por outro lado, pode-se argumentar que, ao comprometer qualquer presidente mexicano com políticas econômicas prudentes e com as relações cada vez mais estreitas com os Estados Unidos, o NAFTA ajudou a acelerar o fim da era do PRI, garantindo que nenhum governo poderia desviar-se das políticas preferidas pelo setor empresarial mexicano e por Washington. Politicamente, o NAFTA contribuiu para a transição democrática do México ou a adiou por seis anos; embora a primeira avaliação é compreensível, a última é mais plausível.
Seja qual for o caso, o NAFTA ajudou abrir as mentes mexicanas. A sociedade mexicana tinha começado um processo de modernização bem antes da década de 1990, mas, por meio do aumento do comércio transfonteiriço, o tratado acelerou a mudança em direção a uma atitude que destacou menos a vitimização do México e que tem sido menos instrospectiva e obsecada com a história. Embora a mudança ainda não tenha causado uma reorganização permanente da política externa do México, a visão que os mexicanos têm do mundo, e dos Estados Unidos em particular, tem evoluído em grande parte graças ao acordo comercial.
Crescimento estável
Apesar dos benefícios reais que o NAFTA trouxe para o México, o crescimento econômico que muitos defensores do tratado imaginavam que iria acontecer permaneceu uma ilusão. Desde 1994, o país foi governado por cinco presidentes de dois partidos diferentes, e o mundo presenciou a expansão mais longa da história econômica moderna dos EUA, a pior recessão desde a Grande Depressão e um boom das commodities, impulsionado pela insaciável demanda chinesa e indiana. Esse período foi longo o suficiente para anular quaisquer aberrações. Durante esse tempo, o México experimentou dois anos de retração econômica (1995 e 2009), dois anos de crescimento zero (2001 e 2013) e quatro anos de alta performance (1997, 2000, 2006 e 2010). Mas o país alcançou média de crescimento anual do PIB de apenas 2,6%.
Enquanto isso, a renda per capita do México subiu lentamente durante as últimas duas décadas, de 6.932 dólares em 1994, para 8397 dólares em 2012, de acordo com o Banco Mundial – uma taxa média anual de apenas 1,2%. No mesmo período, Brasil, Chile, Colômbia, Peru e Uruguai experimentaram crescimento do PIB per capita muito maior. Como um percentual da renda per capita dos Estados Unidos, o México ficou praticamente estável, flutuando de 17% em 1994 para 19% hoje. O PIB real por horas de trabalho aumentou em meros 1,7%, o que significa que a produtividade manteve-se estável, embora tenha havido alguma melhoria no setor automobilístico (que já estava indo bem no início de 1990), no setor aeronáutico (que ainda não existia), e em um número de maquiladoras, fábricas em zonas de livre comércio, no norte do país. Assim, os rendimentos reais da indústria manufatureira e do resto da economia formal permaneceram estagnados, mesmo que a queda no preço de alguns bens tenha suavizado o golpe para os trabalhadores.
Uma razão importante para esses resultados decepcionantes é o fracasso do México em desenvolver em casa, de forma suficiente, o que os economistas chamam de ligações reversas – conexões com industrias básicas que fornecem para as cadeias produtivas. Em 1994, 73% das exportações do México eram compostas de insumos importados; em 2013, esse número aumentou para 75%. Como resultado, o emprego no setor industrial manteve-se inalterado, e o mesmo ocorreu com os salários. Nem mesmo a indústria do turismo, o maior empregador do México, se saiu muito bem. O número de americanos que visitam o México hoje é o dobro do que era há duas décadas, mas a quota mexicana do mercado de turismo dos EUA permaneceu estável, e o setor está crescendo no mesmo ritmo de antes. Da mesma forma, as maquiladoras criaram apenas cerca de 700 mil postos de trabalho nos últimos 20 anos, ou, em média, 35 mil por ano. Durante esse período, cerca de um milhão de mexicanos entraram no mercado de trabalho a cada ano, e a população do país passou de cerca de 90 a 116 milhões, o que explica por que o diferencial médio de salários entre trabalhadores americanos e mexicanos não encolheu.
Não deveria ser nenhuma surpresa que o número de mexicanos que vivem nos Estados Unidos, legalmente ou não, saltou de 6,2 milhões em 1994 para quase 12 milhões em 2013 (e isso levando em conta a queda temporária na emigração mexicana para os Estados Unidos entre 2008 e 2012 e a quase um milhão de deportações de mexicanos entre 2009 e 2013). Assim, o Nafta também não conseguiu atingir sua meta de desencorajar a emigração: como ressaltado pelo presidente do México, Carlos Salinas, quando o tratado foi motivo de debate, “queremos exportar bens, não pessoas”.
A ausência de ligações reversas no setor de exportação do México decorre de falta de vontade dos estrangeiros de investir no México, um problema que remonta à década de 1980. Nessa década, a economia do país entrou em colapso, principalmente como resultado do endividamento excessivo contraídos pelas administrações anteriores do presidente Luis Echeverría e do presidente José López Portillo. Em 1989, Salinas foi capaz de diminuir o peso da dívida externa do país, mas somente ao custo de renunciar virtualmente qualquer novo endividamento externo. A única alternativa era aumentar dramaticamente o investimento estrangeiro direto, principalmente o oriundo dos Estados Unidos. E o único caminho foi o NAFTA: um acordo que permitiria a adoção de políticas econômicas sólidas e o acesso ao mercado dos EUA, proporcionando aos investidores a segurança de que necessitavam. Através NAFTA, o México procurou aumentar seu investimento estrangeiro direto a um percentual de 5% do PIB, muito acima do obtido anteriormente.
Isso não aconteceu. Em 1993, o último ano antes do Nafta entrar em vigor, o investimento estrangeiro direto no México ficou em US $ 4,4 bilhões, ou 1,1% do PIB. Em 1994, o número saltou para US $ 11 bilhões, ou cerca de 2,5% do PIB. E permaneceu estagnado até 2001, quando subiu para 4,8%, para, em seguida, passar por constante declínio. Se tomarmos a média de investimento estrangeiro direto em 2012 (um ano muito ruim) e 2013 (um ano muito bom), verifica-se que o México agora recebe apenas aproximadamente 22 bilhões de doláres por ano em investimento estrangeiro direto – um pouco menos de 2% do PIB, bem abaixo dos números apresentados por Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica e Peru.
Os investidores estrangeiros têm-se revelado particularmente indispostos a canalizar capital para cadeias de suprimentos da indústria de exportação. Porque o investimento interno, público e privado, mudou muito pouco desde 1994, pouco foi alterado o nível geral de formação de capital – que tem uma média de cerca de 20% do PIB desde meados da década de 1990. Nesse ritmo, o México pode atingir apenas o crescimento medíocre que conhece há 20 anos. Em outras palavras, apesar de números impressionantes de comércio, o NAFTA cumpriu com praticamente nenhuma de suas promessas econômicas.
Os caminhos não traçados
Uma questão relevante, no entanto, é a forma como a economia mexicana teria se saído sem o NAFTA. É difícil visualizar por que a economia teria se saído muito pior. Por um lado, o crescimento foi maior nos outros países latino-americanos que não celebraram acordos de livre comércio com os Estados Unidos nos anos 1990 e boa parte da próxima década, incluindo Brasil, Chile, Colômbia, Peru e Uruguai. Além disso, o México cresceu mais rapidamente em termos per capita no período de 1940 a 1980, quando a população também cresceu a um ritmo mais rápido do que agora. Se o governo mexicano tivesse tentado reviver as políticas econômicas insustentáveis promovidas na década de 1970, a situação provavelmente teria sido pior. Mas a maioria dessas políticas já tinha sido abandonada em meados da década de 1980, e muitos outros países conseguiram adotar políticas de livre mercado sem o benefício de um acordo de livre comércio. Assim, há pouca razão para acreditar que, na ausência do NAFTA, a produtividade do México, a atratividade do investimento estrangeiro, os níveis de emprego e os salários ao longo dos últimos 20 anos, teriam sido sistematicamente inferiores, a menos que o governo retomasse as políticas da década de 1970 e início da década de 1980 – um cenário improvável.
Há outras situações contrafactuais que valem a pena ser consideradas. Talvez um NAFTA diferente teria funcionado melhor para o México. Muitos, inclusive eu mesmo, favoreceram um acordo mais abrangente, ao estilo daquele da União Europeia. Tal tratado teria permitido maior mobilidade de trabalho e incluiria o setor energético. E poderia ter oferecido várias formas de transferências de recursos dos ricos Estados Unidos e Canadá para o México pobre, semelhantes àqueles que ajudaram a Itália na década de 1960, a Irlanda na década de 1970, Espanha e Portugal em 1980 e 1990, e, mais recentemente, a Polónia. Tais mudanças poderiam, ainda assim, não ter ajudado, mas os baixos investimento e produtividade do México são, em parte, consequência de sua infraestrutura pobre, o que poderia ter sido melhorado com dinheiro norte-americano e canadense. Pode-se também argumentar que se o México tivesse aberto sua indústria de petróleo ao investimento estrangeiro logo após a Guerra do Golfo, a decisão teria provocado um boom de investimento (como aquele esperado por alguns hoje) e teria convencido Washington a contemplar algum tipo de reforma imigratória em troca. Não há maneira de provar que escolhas diferentes teriam levado a resultados diferentes, mas tendo em conta o quadro de hoje, teria valido a pena tentar.
Quanto ao caminho à frente, alguns acreditam que as reformas do presidente Enrique Peña Nieto nas áreas fiscal, bancária, de energia e de educação gerarão, por si mesmas, os 5% de crescimento anual buscado pelo México desde 1981. Mas essa avaliação parece muito otimista, se não houver outras medidas. Embora seja concebível que a distância entre o México e os Estados Unidos pode finalmente diminuir por conta própria, a melhor opção para o México seria promover políticas e idéias próativas. Na verdade, talvez essa percepção explique por que a noção de integração da América do Norte, promovida pelo presidente Vicente Fox em 2001 e, em seguida, deixada de lado, começou a ganhar força novamente. Seja em livros ou forças-tarefa nos Estados Unidos e, em menor grau, no México, há um sentimento crescente de que é hora de dar novos passos em direção à integração econômica da América do Norte. Só o México pode dirigir tal processo e, por enquanto, o seu governo está se afastando de ousadas iniciativas de política externa. Essa relutância poderia mudar, no entanto, se as reformas em curso fossem rejeitadas ou aprovadas de forma tão diluída que não conseguissem estimular o crescimento.
Em vez de percorrer a mesma estrada por mais 20 anos, os formuladores de políticas deveriam considerar um caminho mais ambicioso. Eles não precisam tentar replicar o modelo europeu de integração, mas devem incluir muitos dos itens deixados de fora em 1994, como energia, imigração, infraestrutura, educação e segurança. Em outras palavras, apesar dos resultados decepcionantes do tratado, talvez o México precisa de mais NAFTA, e não de menos.
Tradução: Lygia Di Moura

Le Monde Diplomatique Brasil

26/03/2014

ARTIGO

 

RUMOS DO DESENVOLVIMENTO

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Desindustrialização precoce: futuro ou presente do Brasil?

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A perda relativa de importância da indústria na economia brasileira é precoce ou acontece porque o país já completou esse ciclo de desenvolvimento? Para apresentar essa problemática, publicamos o artigo do embaixador Rubens Ricupero, ex secretário-geral da Unctad

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por Rubens Ricupero

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O que se entende por desindustrialização precoce?

A desindustrialização precoce é a variante patológica da chamada “desindustrialização positiva”. Quando a industrialização completa com êxito o processo do desenvolvimento, elevando a renda per capita a um nível alto e autossustentável, o setor manufatureiro começa a declinar, em termos relativos, como proporção do produto e do emprego. Isso ocorre em um contexto de crescimento rápido e pleno emprego, no momento em que se atinge renda per capita elevada. O fenômeno é patológico quando aparece em economias em que a renda permanece reduzida e em contextos de baixo crescimento. Nesse caso, o processo de industrialização abortou antes de dar nascimento a uma economia próspera de serviços, capaz de absorver a mão de obra desempregada pela indústria. É a “construção interrompida” do título do livro de Celso Furtado.

Onde ocorre o fenômeno?

Ele vem ocorrendo em diversas economias da África, América Latina e do Oriente Médio no curso dos últimos trinta anos, desde a crise da dívida externa dos anos 1980. Em 2003, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) estudou o que vinha acontecendo no relatório Comércio e Desenvolvimento (Trade and Development Report) daquele ano, que pode ser encontrado e obtido no site da Unctad: .

Qual foi o resultado do levantamento?

A Unctad chegou à conclusão de que, em relação a esse problema, as economias em desenvolvimento poderiam ser divididas em cinco grandes categorias:

1. O grupo original e mais avançado dos Tigres Asiáticos (Coreia do Sul, Taiwan, Cingapura e Hong Kong), principalmente Coreia do Sul e Taiwan, que já atingiram um nível adiantado de maturidade industrial por meio de rápida acumulação de capital, crescimento do emprego em geral, da produtividade e do emprego industriais, assim como das exportações de manufaturas. Nessas economias, a porcentagem da produção industrial no PIB é bem superior à dos velhos paísesindustrializados, mas o ritmo da expansão da capacidade produtiva e da produção no setor industrial desacelerou-se muito em comparação ao que ocorria em décadas passadas.

2. O segundo grupo, também maciçamente asiático, inclui a Malásia e a Tailândia, bem como, em nível menos avançado, a China e, em grau menor, a Índia. São os países que há várias décadas vêm se industrializando de modo acelerado, aumentando a proporção de manufaturas no emprego, na produção e nas exportações, ao mesmo tempo que estão transformando sua estrutura, passando dos produtos intensivos em mão de obra e recursos naturais para os artigos de média e alta tecnologia.

3. O terceiro abrange os países que se integraram nas redes internacionais de produção mediante a concentração em operações intensivas em mão de obra destinadas à montagem de produtos cujos insumos são em grande parte importados. O México e as Filipinas, bem como, mais recentemente, países do Caribe e da América Central signatários de acordos de livre-comércio com os Estados Unidos destacam-se na categoria. Tais economias tiveram rápido aumento no emprego industrial. Outra característica do grupo é o veloz aumento de exportação de manufaturas. Não obstante, esses países vêm apresentando desempenho modesto em termos de investimento, de valor agregado em manufaturas, de crescimento da produtividade e de crescimento econômico de maneira geral.

4. A quarta classe é a dos países que alcançaram um nível razoável de industrialização, mas se revelaram incapazes de sustentar um processo dinâmico de aprofundamento industrial em contexto de crescimento rápido. É o caso da Argentina e, em nível muito menos grave, do Brasil. Nesses países, tem sido pobre o desempenho do investimento, a indústria vem perdendo importância relativa no emprego total e no valor adicionado, o crescimento da produtividade resultou mais da redução da mão de obra que da acumulação rápida e do progresso técnico, o upgrading industrial é ainda limitado e as exportações continuam dominadas por produtos primários e manufaturas de baixo valor agregado. Nessas economias, o avanço em certas indústrias, como a aeronáutica e de automóveis, não teve a profundidade e o vigor necessários para disseminar-se pelo restante do tecido industrial e para estabelecer um processo dinâmico e de alta tecnologia na indústria como um todo.

5. O quinto grupo é o de países que obtiveram crescimento forte e sustentado mediante a intensificação da exploração de seus recursos naturais abundantes por meio de um ritmo acelerado de acumulação de capital. O exemplo mais notável é o do Chile. No entanto, essas economias têm demonstrado desempenho fraco em termos de valor agregado em manufaturas e de exportações industriais, persistindo nelas elevado desemprego. Parecem limitadas as perspectivas de mudança estrutural adicional e de futuro crescimento de produtividade na base exclusiva de estratégia fundamentada nos recursos naturais.

O que emerge dessa análise comparativa?

O contraste entre o Leste Asiático e a América Latina é marcante. Os maiores países da América Latina (Argentina, Brasil, México) situam-se em grupos sem dinamismo em industrialização, mudança estrutural e aumento da produtividade, ao passo que a maioria das economias do Leste Asiático se encontra em vários estágios de industrialização de êxito. Persistem, portanto, as fraquezas estruturais que, a partir dos anos 1980, deram impulso a radicais mudanças de política na América Latina. Apesar dos avanços indiscutíveis, não há como negar que as reformas de políticas não conseguiram criar as condições necessárias para iniciar um rápido processo de acumulação de capital e de transformação tecnológica capaz de reestruturar as economias latino-americanas com vistas a enfrentar os desafios de integração no sistema globalizado de comércio. Tudo indica que existe uma relação nítida entre o prosseguimento e o adensamento da industrialização e a criação dessas condições.

Não se poderia afirmar, ao contrário, que a desindustrialização é a consequênciapositiva do abandono da política de substituição de importações e da adoção de uma estratégia voltada para as exportações, permitindo a melhor alocação de recursos a setores nos quais essas economias são mais competitivas, como no de recursos naturais em agricultura e mineração?

Essa afirmação seria verdadeira se o declínio relativo da indústria tivesse coincidido com a aceleração significativa do crescimento, o que de fato ocorreu no Chile, mas não na Argentina, no Brasil e no México. Além disso, a comparação com economias europeias ricas em recursos naturais como algumas da Escandinávia indica que, até mesmo no Chile, a porcentagem do emprego industrial no final dos anos 1990 se situava apenas entre a metade e um terço do nível atingido pelos escandinavos, quando estes se encontravam em patamares de renda comparáveis. Nessas economias escandinavas ricas em recursos naturais, essa porcentagem só começou a cair a partir de um nível de renda muito superior ao que sucedeu na América Latina.

Isso significa que não existiriam exemplos de países que alcançaram o desenvolvimento pleno sem industrialização, exclusivamente na base da exploração eficiente de recursos naturais?

Na verdade, a experiência histórica confirma que as economias de países como a Austrália, o Canadá e alguns dos escandinavos, que utilizaram mais amplamente as exportações de produtos primários para atingir altos níveis de renda, passaram todas por períodos de forte desenvolvimento e diversificação da indústria como componentes essenciais de sua estratégia de crescimento. Mesmo as cidades-Estados do nosso tempo – Hong Kong e Cingapura –, hoje predominantemente economias de serviços, recorreram no início e por longo tempo à industrialização a fim de superar a estreiteza do mercado nacional e deslanchar o processo de desenvolvimento.

De que maneira opera a industrializaçãonesse processo?

A longo prazo, são as conquistas de produtividade que asseguram o êxito econômico, e não apenas a acumulação de capital por si mesma. Um processo virtuoso de acumulação e crescimento sustentado está sempre associado a mudanças estruturais na produção e no emprego como resultado tanto da expansão e diversificação das atividades econômicas, passando da agricultura à indústria e desta aos serviços, quanto da evolução para atividades de maior valor adicionado dentro de cada setor, mediante a introdução de novos produtos e processos.

Há diferenças sensíveis entre os vários setores em termos dos respectivos potenciais para o progresso técnico e para o crescimento da produtividade. A importância de estabelecer uma ampla base industrial deriva justamente do grande potencial da indústria para um forte crescimento da produtividade e da renda. Esse potencial provém, do lado da oferta, da predisposição da indústria para desenvolver economias de escala, para a especialização e o aprendizado e, do lado da demanda, de condições globais de mercado e de preços habitualmente mais estáveis e favoráveis do que para os produtos primários, sujeitos a frequentes oscilações e com certa tendência a um declínio secular. Trabalhos de Nicholas Kaldor e Simon Kuznets demonstraram a existência de estreita correlação entre as taxas de crescimento da industrialização e da produtividade, assim como entre a aceleração do crescimento e o deslocamento do fator trabalho, do setor primário, de baixa produtividade, para o industrial, de produtividade mais elevada. Não se deve esquecer, aliás, que a agregação de valor a produtos primários da agropecuária e da mineração se faz geralmente mediante processos industriais, daí se originando denominações como agroindústria, indústria agroalimentar etc.

Mas se as vantagens de manter uma forte base industrial são tão evidentes, como se explica que os países latino-americanos tenham se resignado a sacrificá-la em muitos casos?

A explicação reside, em última análise, no impacto da crise da dívida dos anos 1980, verdadeiro divisor de águas que desviou, de maneira duradoura, muitos países da trajetória de desenvolvimento que até então vinham seguindo. Os latino-americanos tiveram de adotar drásticas mudanças de política econômica, no esforço para reduzir os níveis de endividamento e controlar inflações que ameaçavam deteriorar em hiperinflações. Embora tenha sido inegável o êxito em atingir alguns desses objetivos, as reformas nunca foram capazes de fazer o nível de investimento retornar à fase pré-crise. De modo geral, a América Latina parece ter estabilizado seu nível de formação de capital em torno do investimento por ano de apenas 20% ou menos do PIB, significativamente inferior aos 25% considerados como o ideal para economias em estágio intermediário de desenvolvimento e igualmente muito abaixo da média do investimento prevalecente na fase pré-crise.

Tal situação de debilidade macroeconômica, de investimento insuficiente e de instabilidade permanente de taxas de juros e de câmbio preparou mal as economias latino-americanas para o “choque de competição” decorrente da liberalização comercial e financeira simultânea ao processo de ajuste. Inúmeros setores, especialmente na indústria manufatureira, não foram capazes, por causa do estado crítico em que se encontravam, de reagir à concorrência de produtos importados no momento em que perderam a proteção. O processo latino-americano de abertura de choque, conduzido em fase de crítica precariedade da situação macroeconômica, contrasta com o das economias asiáticas, muito mais gradual, progressivo, seguro e realizado a partir de posição de força, por economias capazes de investir 30% ou mais do PIB anualmente e bafejadas por juros extremamente baixos, frequentemente subsidiados, por taxa de câmbio desvalorizada, carga tributária pequena e mínimos encargos trabalhistas e previdenciários.

Não é verdade, então, que a situação macroeconômica da região melhorou?

Não até o ponto desejável. De fato, uma saudável macroeconomia exige não apenas estabilidade de preços, mas outras condições indispensáveis para propiciar níveis elevados de investimento. Muitas das condições que exercem forte influência nas decisões de investimento e de alocação de recursos, incluindo preços-chaves, tais como a taxa de câmbio, a taxa de juros e os salários reais, de grande impacto na demanda agregada, têm sido extremamente instáveis no continente. Isso se deve, em parte, ao aumento da instabilidade do sistema internacional de pagamentos e à volatilidade externa associados com choques financeiros e comerciais. Por outro lado, alguma responsabilidade cabe igualmente à perda de autonomia em matéria de política macroeconômica resultante da rápida liberalização e da estreita integração nos mercados financeiros globais. Além disso, em lugar de get the prices right, as forças de mercado tenderam a manter as taxas de juros e de câmbio em níveis que impediram a rápida acumulação de capital e a mudança tecnológica. Em outras palavras, a nova estratégia econômica fracassou em produzir um meio ambiente macroeconômico apropriado para encorajar investidores e empresas, apoiando-os na criação e expansão da capacidade produtiva e no aprimoramento da produtividade e da competitividade internacional.

Não se poderia descrever o que aconteceu na América Latina como mais uma manifestação do processo de “destruição criativa” de Schumpeter?

Seria difícil argumentar nesse sentido. Durante a fase de ajustamento pós-crise da dívida, estima-se que cerca de 7 mil firmas chilenas tenham desaparecido, a maioria de porte médio. Na Argentina, esse número foi de l5 mil. Muitas foram substituídas por grandes empresas estrangeiras cujos setores de engenharia e de pesquisa e desenvolvimento se encontravam no país de origem. Algo similar ocorreu no Brasil com a aquisição por firmas estrangeiras de boa parte do setor de autopeças (Cofap, Metal Leve) e do setor eletrônico e de equipamento de telecomunicações sediado em Campinas. De novo, em muitos casos, o setor de pesquisa foi radicalmente reduzido ou teve sua natureza alterada, passando a ocupar-se apenas da adaptação da tecnologia da matriz a condições locais, o que se chama no jargão de “tropicalização” da tecnologia. Engenheiros de pesquisa foram reciclados em gerentes de vendas. Um estudo de Mario Cimoli e Jorge Katz observa que, em 1974, o lançamento do Taurus pela Ford Argentina demandou 300 mil horas de trabalho de uma equipe de 120 engenheiros, ao passo que hoje, para produzir o world car, a Ford não emprega nenhum engenheiro na Argentina. O que houve, portanto, foi que a parte de “destruição” ocorreu na Argentina, enquanto a parte mais interessante, a da “criação”, foi transferida para o país exportador ou sede da empresa transnacional.

O problema foi agravado por algumas das privatizações de empresas estatais que, em certos países, eram responsáveis, juntamente com universidades e instituições públicas, por 80% dos gastos em pesquisa tecnológica, em áreas como telecomunicações e energia, como era o caso do Brasil. Frequentemente, repetiu-se aqui o padrão de muita destruição e pouca criação. O balanço líquido foi um retrocesso na geração local de tecnologia e no aumento de uma dispendiosa dependência tecnológica em relação ao estrangeiro. Essa foi uma das razões que levaram a uma mudança na composição da produção e das exportações de países da região, que se concentraram mais ainda do que no passado nos produtos oriundos de recursos naturais, distanciando-se dos setores com maior potencial de aumento da produtividade. Não é de admirar, nessas condições, que, fora exemplos esporádicos como o da indústria aeronáutica, cuja existência, aliás, se deve a uma política de Estado, seja extremamente limitada a oferta de países como o Brasil em matéria de manufaturas de alta tecnologia e valor agregado capazes de competir com os produtos asiáticos em mercados altamente competitivos como os dos Estados Unidos e dos países europeus.

Que tipos de indústria conseguiram sobreviver a essas condições adversas?

Como é sabido, muitas das indústrias de ponta, responsáveis pelos produtos mais dinâmicos do comércio mundial – computadores, componentes eletrônicos, máquinas e equipamentos de escritório, química fina, fármacos –, praticamente desapareceram do panorama produtivo da América Latina, salvo sob o aspecto de linhas de montagem. O que sobrou foi basicamente: a) indústrias de processamento de recursos naturais a fim de produzir commodities industriais, tais como papel, celulose, suco de laranja, farelos e óleos vegetais, ferro, aço, alumínio, metais, cimento; b) indústrias de alimentos, de material de limpeza, cosméticos, de móveis etc.; c) linhas de montagem de equipamento eletrônico, aparelhos de TV e vídeo, de telecomunicações, como os telefones celulares; d) indústrias têxteis, de vestuário e calçados, crescentemente pressionadas pela concorrência chinesa; e) petroquímica em alguns países, graças à significativa proteção tarifária; f) indústria de automóvel e de equipamento de transporte, objeto de tratamento protetivo especial, às vezes no contexto de acordos sub-regionais como o Mercosul. Fora poucas exceções, como a da indústria automobilística, esses não são em geral os tipos de setor que desempenham papel decisivo para aumentar a competitividade internacional por meio da pesquisa e desenvolvimento de produtos e do progresso tecnológico.

No caso do Brasil, o panorama é mais diversificado, já que o país foi capaz de preservar uma estrutura industrial bem mais ampla e completa do que na maioria das outras nações do continente. Essa estrutura, felizmente para nós, inclui até mesmo um setor bastante razoável de bens de capital, maquinaria e equipamento. Alguns ou muitos desses setores sofrem hoje outro tipo de “choque de competição”, o da concorrência chinesa, que opera como uma espécie de segunda geração de pressões e desafios em relação ao primeiro impacto da liberalização dos anos 1990. A sobrevivência até o instante de uma base industrial mais diversificada no Brasil é uma razão a mais para identificar políticas e medidas de indiscutível qualidade econômica, que sejam capazes de evitar que a indústria, sobrevivente do primeiro choque, não se afogue agora no segundo.

O processo de rápida liberalização produziu na América Latina dois padrões específicos, mas contrastantes na especialização industrial. Os países mais estreitamente ligados ao mercado dos Estados Unidos, seja pela vizinhança geográfica, seja por acordos comerciais, se concentraram nas indústrias de linha de montagem do tipo maquiladoras, que produzem quase exclusivamente para o mercado norte-americano ou para reexportação para terceiros a partir dos Estados Unidos, criando empregos de baixa especialização e modestos salários. Por outro lado, as economias da América do Sul, tais como as da Argentina, do Chile e, com as qualificações e diferenças expostas, no exemplo particular do Brasil, expandiram as indústrias baseadas em recursos naturais, aumentando a intensidade em capital de tais atividades, mas sem impacto correspondente na geração de empregos. Ambos os tipos de atividade possuem conteúdo relativamente baixo de valor agregado interno e nenhuma delas proporciona o gênero de transformação da produção nacional e do padrão exportador capaz de fazer do comércio um motor de crescimento.

O que fazer?

Acima de tudo, evitar fórmulas simplistas e simplórias. Por exemplo, a do famoso “choque de competitividade” de vez em quando ressuscitada por assessores do Ministério da Fazenda e gente vinculada ao mercado financeiro. A última versão foi a da redução substancial das tarifas industriais. Embora pareça supérfluo, não custa repetir que é absurdo falar de “choque de competitividade” no momento em que o setor produtivo enfrenta no Brasil condições incomensuravelmente mais adversas do que os concorrentes potenciais em todos os fatores-chaves determinantes da competitividade internacional, a saber, a taxa de juros, a taxa de câmbio, a carga tributária e o custo de transação resultante da infraestrutura de serviços.

Um fenômeno de causas tão complexas e variadas como é a desindustrialização precoce só poderá ser combatido por terapêutica igualmente diversificada, que contenha ingredientes capazes de atacar as raízes macroeconômicas descritas, assim como os problemas de diferente natureza aqui exemplificados na área de ciência e tecnologia, de pesquisa e desenvolvimento de produtos, de inovação etc. Identificar os diversos componentes de tal terapêutica foi precisamente o objetivo do seminário realizado na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), em 28 de novembro de 2006. Na ocasião, um dos mais importantes objetivos foi estimular um esforço sistemático e constante com vistas a valorizar o papel transformador e de liderança da indústria manufatureira no processo de desenvolvimento, reatando com a tradição de pioneiros como Roberto Simonsen e Euvaldo Lodi. Para isso, é indispensável reagir contra o verdadeiro preconceito que, consciente ou inconscientemente, se criou contra o setor, voltando a dar-lhe condições normais para poder concorrer internacionalmente e sobreviver no âmbito interno.

Um elemento indispensável em tal sentido é uma estratégia para as negociações internacionais que não aumente ainda mais as dificuldades enfrentadas em função das condições hostis de juros, câmbio e tributos internos. Esse perigo existe não só nas negociações de acordos de livre-comércio como nas da Rodada Doha, da Organização Mundial do Comércio (OMC). Nestas últimas, ficou claro que a tática dos usual suspects em matéria de protecionismo agrícola (França et caterva) é repetir o bem-sucedido jogo utilizado na Rodada Uruguai: alegar a impossibilidade de qualquer movimento em agricultura se não houver antes concessões substanciais do Brasil, principalmente, da Índia e de alguns outros em Non-Agricultural Market Access (Nama), isto é, em produtos industriais (e também em serviços). Conforme se sabe, pagamos, naquela ocasião, um preço altíssimo em reduções tarifárias industriais, propriedade intelectual, medidas de investimento relacionadas ao comércio (como a proibição do conteúdo local ou índice de nacionalização no processo manufatureiro), em perda de flexibilidade ou policy space para adotar políticas de estímulo à indústria, de amplo e irrestrito uso pelos países avançados quando ainda se encontravam em fase de industrialização. Nossos ganhos em agricultura, em compensação, foram modestos e mais conceituais do que concretos.

No momento, algumas das fórmulas propostas em Genebra por países desenvolvidos implicariam reduções, da parte de países em desenvolvimento, de mais de dois terços na média ponderada das tarifas aplicadas e de mais de três quartos dos níveis atuais da média ponderada de suas tarifas consolidadas. Conforme tem sido demonstrado nos estudos dos economistas da Unctad, Santiago Fernández de Córdoba, Sam Laird e David Vanzetti, tais reduções constituiriam cortes incomparavelmente mais profundos do que os efetivados pelos principais países ricos ao longo dos trinta anos após a Segunda Guerra Mundial. A experiência histórica indica que, no processo de industrialização, o que conta não é tanto o nível médio das tarifas, mas seu perfil setorial. A tarifa ideal é a desenhada para proteger o processo de aprendizagem e de aquisição de competitividade nos setores dinâmicos, não nas indústrias em declínio. Um dos fatores que diferenciaram Coreia do Sul e Taiwan e explicam o êxito da industrialização dessas duas economias foi justamente uma estrutura tarifária racional inspirada no princípio da proteção seletiva e temporária (Yilmaz Akyuz, The WTO negotiations on industrial tariffs: what is at stake for developing countries [As negociações da OMC sobre tarifas industriais: o que está em jogo para os países em desenvolvimento], TWN, Penang, 2005).

Essa verdade nos aconselha extrema cautela nas atuais negociações, uma vez que as fórmulas mais favorecidas pelos negociadores representariam perdas substanciais e súbitas de proteção em setores como o automobilístico e o eletrônico, exatamente os que apresentam as características desejáveis de dinamismo e alta capacidade multiplicadora de efeitos benéficos para a indústria como um todo.

Rubens Ricupero

Diplomata e ex-ministro do Meio Ambiente e da Fazenda, é diretor da Faculdade de Economia da Faap. Foi secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) entre 1995 e 2004.

Ilustração: Daniel Kondo

Nota: Salvo algumas observações pessoais, sobretudo em relação ao Brasil, o presente trabalho é, em grande parte, extraído do 2003 Trade and Development Report, da Unctad, época em que desempenhei as funções de secretário-geral da organização. Busquei aqui organizar e sintetizar as principais teses e demonstrações do relatório, com ênfase nos capítulos IV (Economic growth and capital accumulation), V (Industrialization, trade and structural change) e VI (Policy reforms and economic performance: the Latin American experience). O mérito do trabalho cabe aos redatores do relatório, entre os quais o Dr. Yilmaz Akyuz, então diretor da Divisão sobre Globalização e Estratégias de Desenvolvimento e chief economist da Unctad, e a seus principais colaboradores, Richard Kozul-Wright e Jorg Meyer.

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