Há que se ter cautela ao discutir limitações ao direito de manifestação, especialmente em país como o Brasil, de escassa tradição de participação popular, e onde a informação é, com frequência, veiculada massivamente de modo distorcido.
No rastro da histeria anti-black bloc que se seguiu à morte do cinegrafista Santiago Andrade, começou-se a falar na ideia de proibir o uso de máscaras em manifestações – isso inclusive constaria de uma certa proposta de “projeto de lei sobre crime de desordem”, levada pelo secretário Mariano Beltrame (RJ) a Brasília, talvez para coroar sua participação no governo de Cabral Filho, o pior avaliado dentre todas as unidades da federação.
Proibir o uso de máscaras, no “país do carnaval”? Vamos com calma. Em primeiro lugar, precisamos examinar algo que, embora elementar, tem sido pouco tematizado, na imprensa e não só: o porquê de pessoas usarem máscaras ao saírem à rua para protestar.
Uma razão para o uso de máscara é o intuito de causar, impunemente, danos aos patrimônios público e privado, ou mesmo agredir outras pessoas (em suma, “sair barbarizando por aí”, como escreveu um colunista)? É uma hipótese. A tática, nesse caso, é o ataque. O mesmo fazem os policiais que retiram a identificação de seus uniformes (o que lhes é vedado) antes de, por exemplo, ir ter com manifestantes na Av. Paulista. Mas outra hipótese é o uso de máscara como tática de defesa – e defesa, em primeiro lugar, em face do aparato repressivo. Ora, embora possamos supor que grande parte – a maior, talvez – da PM de um estado como o Rio de Janeiro seja formada por servidoras e servidores dignos, não se pode negar que a corporação abriga praticantes de delitos que vão da intimidação ao extermínio, passando pela extorsão e a tradicional tortura. As evidências são abundantes. Em São Paulo, o julgamento do Massacre do Carandiru, quando finalmente ocorreu, mostrou que muitos daqueles homens de farda tinham currículo para estar, não entre os defensores da ordem, mas junto aos trancafiados que chacinaram.
Ignoremos o dado de que, em 2012, nada menos que 1890 brasileiros morreram pela mão da polícia (enquanto 100 policiais foram assassinados só na capital paulista): basta olharmos o balanço dos atos violentos ocorridos nas manifestações, desde junho passado, para entendermos que muitos possam preferir o anonimato ao protestar. Após conceder entrevista à imprensa, em julho último, na qual tecia críticas à ação policial no Rio de Janeiro, o sociólogo Paulo Baía sofreu um sequestro-relâmpago, em que foi, por assim dizer, orientado a se calar. Não teria ele motivo para cogitar do uso de máscara?
Outra razão para o uso de máscaras: proteger a própria imagem de abusos das empresas de comunicação. Ora, no Brasil de hoje, pilares do bom jornalismo como isenção, respeito ao contraditório e apuração dos fatos adormecem nos manuais de redação, enquanto a pistolagem midiática torna-se algo corriqueiro. Em edição recente, o inexcedível semanário Veja, valendo-se de foto-montagem, retratou a ativista Elisa de Quadros, a Sininho, transitando tranquila em meio a um cenário de batalha campal, sob o título incriminador: “A fada da baderna”.
Por fim, temos a evidência de que máscaras ajudam a minimizar os efeitos do gás lacrimogêneo e do spray de pimenta, que têm sido utilizados sem parcimônia pelas polícias. Na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, pouco antes da notória invasão do Palácio do Itamaraty, vi pessoas passarem mal por causa dos sprays de pimenta, e tive que me abaixar para não sofrer o mesmo – no que fui acompanhado por alguns policiais, igualmente desprovidos de máscaras que os protegessem da ação de seus colegas de farda.
Muito mais grave que isso, em junho passado, em Belém, a gari Cleonice Vieira de Moraes faleceu após inalar gás lacrimogêneo lançado contra manifestantes – e há indícios de que o mesmo se deu, no Rio, com Fernando da Silva Cândido, fundador do Cinema de Guerrilha da Baixada Fluminense. Por sorte, além do pânico e correria, nada mais grave aconteceu quando, em 16/06/13, o Choque da PM-RJ, perseguindo manifestantes, lançou bombas de efeito moral em plena Quinta da Boa Vista, tradicional área de lazer domingueiro dos cariocas.
O uso de máscara, em suma, não incrimina ninguém. Isso absolve – ainda bem – o Pierrot e a Colombina, como também o Batman e a Mulher-Gato (além dos profissionais de saúde e outros tantos). A livre expressão é direito inscrito em nossa Constituição. No entanto, toda pessoa considerada suspeita ou apanhada em flagrante delito está obrigada, por lei, a se identificar à autoridade policial (vide o Art. 68 da Lei de Contravenções Penais). Simples assim.
É sabido que a disputa eleitoral estimula os postulantes a adotar discursos que atraiam os holofotes. De certa forma, isso é até natural. No entanto, aconselha-se certa prudência antes de embarcar em aventuras repressivas por meio da criação de leis. Melhor seria, assim entendo, insistirmos no respeito às leis que já temos, por parte de todos: policiais, manifestantes, empresas de comunicação, cidadania em geral.
Será que dá pé?