por: Roberto Amaral
Postado na Carta Capital on line dia 30/01/2014
As estruturas sociais permanecem intocadas, tanto no campo quanto nas cidades
Em entrevista recente na revista Fórum, Stédile – adaptando a luta do MST à fase atual do capitalismo financeiro –, segundo ele caracterizado pelo monopólio financeiro e a desnacionalização da economia brasileira, inclusive no campo, formula a proposta de uma ‘reforma agrária popular’ cujo objetivo seria “reorganizar os bens da natureza e a produção agrícola para, em primeiro lugar, produzir alimentos sadios para todo o povo”. A base desse novo tipo de produção, e o que desejo ressaltar, é a “matriz da agroecologia, em equilíbrio com a natureza e sem o uso de venenos agrícolas”. Seu projeto de reforma agrária compreende novas agroindústrias organizadas na forma de cooperativas “para beneficiar os alimentos e aumentar a renda dos trabalhadores do campo”.
Stédile inclui a democratização da educação como uma necessidade do desenvolvimento social, porque, sabemos todos, o monopólio do saber é uma forma de dominação de classe. Sem mencionar as consequências da crise do capitalismo internacional, ativa desde 2008, enxerga a necessidade de refazer a luta do MST quando a economia mundial é dirigida pelo capital financeiro internacionalizado. “No campo, esse modelo implementou o agronegócio, que exclui e expulsa os camponeses e a mão de obra do campo”.
Esta visão mais profunda da questão ambiental é lecionada por Leonardo Boff ao lembrar a famosa premonição de Marx, segundo a qual o capital caminhava na direção de seu suicídio, ao destruir as duas fontes de sua riqueza e reprodução, a saber, a natureza e o trabalho. Este é substituído pela informática e pela robotização – a automação do plantio e da colheita no agronegócio é só um dado – porque é da essência do capitalismo aumentar sempre, insaciavelmente, sua capacidade de acumulação, donde consumir sempre mais matéria-prima (ou seja, natureza) para poder produzir sempre mais. A depredação do meio-ambiente, a exploração intensiva dos recursos naturais não renováveis, exigida por uma forma de exploração econômica fundada no consumismo e no desperdício, como na concentração, constituem o espírito do capitalismo, que se alimenta na permanente criação de novas necessidades, que por sua vez demandam ininterruptamente novas necessidades de recursos ambientais em um círculo vicioso sem fim, como a fome insaciável do monstro Leviatã: mais consumo gera a necessidade de mais consumo, indefinidamente, até a barbárie. A tragédia reside no fato de que, sendo esse sistema, por definição, concentrador de renda, o modo de produção da riqueza é também gerador de pobreza, agravando as assimetrias, independentemente da disponibilidade de recursos naturais.
E a pobreza, na medida em que significa más condições de moradia, ausência de saneamento, lixões etc., implica, também, depredação do meio ambiente.
A crítica, porém, não é nova, entre nós. A todos se antecipou José Bonifácio. Recém-chegado da Academia de Ciência de Lisboa, após 30 anos afastado do Brasil, logo após a Independência de que fora o patriarca, ocupando o cargo de ministro do Reino e dos Negócios Estrangeiros, em 1823, o mais ilustre dos Andradas, além de defender o que hoje chamamos de reforma agrária, propunha, em seu programa, a expropriação das terras improdutivas:
“Quem ganhou uma sesmaria e produziu alguma coisa, vai ganhar o que produziu e mais uma parte disso. Quem não produziu nada, vai ficar com uma pequena terra e o resto vai retornar ao Estado”.
José Bonifácio condena, já naquela altura, a concentração da terra (para ele, o abolicionismo significava o futuro da pequena propriedade) e propugna por um ‘ensino democrático’. Denuncia, ainda, a monocultura da cana e do café associada ao escravismo como responsável pelo nosso atraso. Como é sabido, José Bonifácio foi preso e exilado na crise da primeira Constituinte do Brasil independente…
O mais radical dos reformadores, porém, seria o líder liberal e monarquista Joaquim Nabuco, para quem a lei que abolisse a escravidão deveria ser também a ‘lei agrária’, e isso pode resumir sua visão doutrinária, pois para ele a emancipação dos escravos só se daria com a ‘democratização do solo’ que nada mais era do que uma proposta de ‘reforma agrária’, ou equânime distribuição da terra, ponto de partida para o que então chamava de ‘nivelamento social’ e que hoje podemos nomear como igualdade de classe. Ei-lo em campanha eleitoral no interior de Pernambuco, em 1884:
“A propriedade não tem somente direitos, tem também deveres, e o estado da pobreza entre nós, a indiferença com que todos olham para a condição do povo, não faz honra à propriedade, como não faz honra aos poderes do Estado. Eu, pois, se for eleito, não separarei mais as duas questões – a da emancipação dos escravos e a da democratização do solo. Uma é o complemento da outra. Acabar com a escravidão, não nos basta; é preciso destruir a obra da escravidão. Sei que falando assim serei acusado de ser um nivelador. Mas não tenho medo de qualificativos. Sim, eu quisera nivelar a sociedade, mas para cima, fazendo-a chegar ao nível do art. 179 da Constituição que nos declara todos iguais diante a lei. Vós não calculais quanto perde o nosso país por haver um abismo entre senhores e escravos por não existir o nivelamento social”. (Joaquim Nabuco entre a política e a história. Costa, Milton Carlos).
Houve a abolição. Tardia, como sabemos. Mas as estruturas sociais permaneceram intocadas. Os ex-escravos e os descendentes de escravos foram condenados à miséria e afrodescendente é a maioria dos pobres e dos iletrados – como também da população carcerária brasileira. A estrutura de dominação econômico-politica consolida-se assentada no latifúndio e na monocultura de exportação: no Império o açúcar, na República Velha o café. O latifúndio ignorou a abolição e a República e conservou consigo as rédeas do Poder, até a modernização industrial; quando esta chega, é substituído pelo agronegócio associado ao capital financeiro e a multinacionais que controlam as exportações e os preços. Permanecem o desemprego, o subemprego e a concentração de terra e renda; os antigos barões da terra são substituídos por empresários e rentistas, mas o homem do campo continua miserável e condenado à migração que destrói sua dignidade.
Sem propriedade, sem terra para nela trabalhar, despreparado para os ofícios exigidos pela sociedade tecnotrônica, o homem do campo, expulso de seu habitat, migrante na cidade grande, é candidato ao lupenato, e nem sequer engrossa os exércitos de reserva.
O neto é mais velho que o avô – O senador Aécio acaba de anunciar mais uma exumação, convidando para compor seu grupo de assessores um ex-embaixador do Brasil em Washington (governo FHC) hoje filiado ao Instituto Millenium porque o IBAD, cumprida sua tarefa, fechou depois do golpe de 1º de abril.
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