por: Roberto Amaral
Postado na Carta Capital on line dia 13/11/2013
Todo Estado é um Estado-processo, um Estado-construção, um molde sem modelo.
A questão do caráter do Estado, mormente em países com as características brasileiras, entre as quais destaco o movimento (aí implícita a mobilidade econômico-social) em oposição ao congelamento, não é de limitação aritmética (grande ou pequeno) mas, de conteúdo finalístico, definido na resposta a uma simples pergunta: a serviço de quem ele está posto?
O Estado é, sempre, servidor da classe dominante, assim identificada como detentora dos meios de produção.
Esta sentença encerra uma verdade, mas não encerra a verdade toda, pois o Estado capitalista, democrático ou não, é permeado de classes e contradições entre classes e mesmo no interior da classe que exerce o poder de Estado, e nesses espaços podem atuar as mais diversas forças, inclusive as que lhe são antagônicas. Ainda bem. Pois, se tomada a sentença marxista (Manifesto comunista e A ideologia alemã) no seu sentido tout court nada mais teríamos por fazer, a revolução seria impossível, a política estaria morta e, aí sim, a História não teria mais caminho a percorrer.
A realidade, porém, é o movimento, isto é, sem História própria, o Estado é uma construção do processo social. Por isso mesmo, ainda sob a égide do capitalismo, inexiste um modelo de Estado pronto e acabado; todo Estado, ademais de preservar determinadas características que lhe são próprias, dele e do capitalismo, é um Estado-processo, um Estado-construção, um molde sem modelo.
Doutra forma não haveria explicação para as transformações estruturais que vêm sofrendo os Estados principalmente nos últimos séculos, e de particular após a Revolução de 1917, quando o ‘espectro do comunismo’ no poder levou o capitalismo a promover inumeráveis concessões ao pensamento social latu senso, e, muito especialmente, às ideias e aos ideais socialdemocratas e socialistas, por muitas décadas dominantes nas sociedades ocidentais.
O Estado, produto histórico e social, é organismo vivo no mais rigoroso dos sentidos; sem negar sua origem, e os interesses que representa, possui a capacidade, mais que camaleônica, de se adaptar, seja ou não em um processo evolutivo, à nova realidade condicionada por uma nova coalizão de forças dentro de um sistema que compreende uma fonte dominante, material e economicamente. Esse contínuo processo de adaptação, que implica concessões a classes e segmentos de classes dominados, visa não só a preservá-lo, a garantir sua continuidade, mas a assegurar essa preservação e essa continuidade em benefício do que, de agora em diante chamaremos de classes dominantes. Embora as classes dominantes sejam sempre preservadas, em seu império, esse processo interno, determinado também por ações e pressões externas, enseja a contaminação do organismo estatal por idéias e interesses contraditórios, e, dialeticamente, na medida em que abre espaço a tal contágio, o Estado de classes garante sua preservação, como se se alimentasse da energia do outro.
A luta da socialdemocracia clássica (assim denominada para distinguir-se da aberração tucana, uma socialdemocracia convertida ao evangelho neoliberal que discursa a favor das privatizações e da desregulamentação da economia, mesmo após a crise financeira dos EUA que abalou o capitalismo mundial), a luta pelas reformas, pela melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores (emprego, condições dignas de trabalho, previdência, descanso semanal remunerado, direito de greve, livre sindicalização etc.) no próprio quadro do regime capitalista, constitui, senão a única, a mais consentânea com as condições concretas de luta.
A partir deste ponto, porém, socialistas e socialdemocratas se separam. Se, para esses, a luta dentro das condições herdadas é sua justificativa, pois seu objetivo é a ‘pacificação’ do conflito social, uma assimilação da classe operaria pela ordem social dominante, para os socialistas, que lutam pela imediata melhoria das condições de vida dos trabalhadores, essa mesma luta (embora implique avanços), nessas mesmas condições, é, apenas, meio, degrau a ser historicamente ultrapassado (no sentido da superação), pois a finalidade da luta socialista é a conquista do poder para a realização da revolução social, de que a conquista do governo (com a qual se conforma a socialdemocracia) é só uma etapa, primeiro passo. Dito nas palavras de Rosa de Luxemburgo, reformas são o meio, a revolução social (leia-se socialismo), o fim. Enquanto essa não é possível, luta-se por aquelas. Assim, sem perder de vista a visão de longo prazo, o socialista revolucionário, mirando o horizonte, se transforma em reformista. Cumpre-lhe a reforma do Estado burguês, pondo-o a serviço de um número crescentemente maior de assalariados, o povo-massa das democracias ocidentais. Essa é a real politik.
Uma especificidade, portanto, é o Estado nos regimes capitalistas democráticos, os quais têm de atender a reivindicações populares variadas, nada obstante permanecerem servidores das exigências do capital, ou seja, em conflito com os interesses do trabalho. A classe dominante é obrigada a aceitar a convivência com o poder ‘contrabalanceador’ da classe operária latu senso, e de outras organizações civis, intelectuais, pequenos empresários, pequenos proprietários etc. Nessas sociedades, a dominação de classe não se dá exclusivamente pela coerção, mas também pelo consentimento, processo de que tanto participam o Estado quanto outras instituições da sociedade, donde a afirmação de Gramsci, inovando o marxismo, de que o Estado é força mais consentimento, mas esse consentimento, ousamos acrescentar, também é ou pode ser instrumento de dominação e de continuidade do poder burguês. Nesse Estado, o domínio de classe não se efetiva tão-só como resultado da organização específica da força, mas pela sua capacidade de avançar sobre seus estreitos interesses corporativos, “exercendo uma liderança moral e intelectual e fazendo concessões dentro de certos limites, a uma variedade de aliados unificados num bloco social de forças” que o autor de Quaderni del carcere chama de ‘bloco histórico’.
Nas formações capitalistas democráticas (‘ocidentais’, em oposição às formações ‘orientais’, nas quais há o predomínio do ‘Estado-coerção’), seguimos Gramsci, a luta dos socialistas deverá travar-se, prioritariamente, na sociedade civil, numa ‘guerra de movimento’, cujas batalhas visam ‘à conquista de posições e de espaços (‘guerra de posições’), da direção político-ideológica e do consenso dos setores majoritários da população, como condição para o acesso ao poder e para sua posterior conservação’ (Carlos Nelson Coutinho, Gramsci, um estudo sobre seu pensamento político).
Mas o que é a conquista de posições para a ocupação de espaços, pelos socialistas, na estrutura estatal? Tudo, menos a sinecura, a auto-adesão ao statu-quo, ao congelamento, a renúncia ao movimento.
De par com a adesão dos socialistas à luta política tradicional, nela dando preeminência às reformas que possam cimentar a construção do novo Estado, donde um processo que implica a conquista progressiva de posições para atuar nas contradições, escreve-se o compromisso com a democracia em seu sentido clássico, adesão e processo que abrem caminho a uma nova hegemonia.
No quadro brasileiro de hoje, a tarefa dos socialistas é consolidar e aprofundar, fazer avançar, as conquistas – tanto políticas quanto econômicas e sociais — herdadas das lutas de muitas décadas. Ao centro dos nossos interesses retornam as questões nacional e democrática, transformando o povo-objeto em povo-ícone, o povo-real, o povo-legítimo, titular da soberania, presentemente usurpada pelas elites dominantes, pelo poder econômico, por instituições e organismos e empresas multinacionais desapartadas da soberania, pelos meios de comunicação, anti-massa, antipovo, anti-nação.
A questão democrática, prioridade do movimento socialista, todavia, conjuga-se com a emergência das grandes massas, dependente do desenvolvimento econômico do país, único instrumento possibilitador da produção e distribuição de riqueza e renda, canal que leva ao exercício da cidadania plena e à soberania nacional, sem as quais jamais seremos uma civilização, como pretendemos, e um Estado autônomo, como precisamos.
A democratização da sociedade começa com a democratização do Estado, revertendo sua vocação antipovo e autoritária, isto é, rompendo com a persistente dicotomia entre Casa Grande e Senzala, senhor e servidor, sujeito e objeto, possuidor e possuído. Democratizar o Estado é também pô-lo para funcionar. Nossas elites pervertidas clamam pelo ‘Estado mínimo’ porque sua inação só prejudica aos pobres aqueles que efetivamente precisam de transporte público de massa eficiente e gratuito (que as elites não reclamam por disporem do transporte individual), da escola pública universal e de qualidade (de que não carece a classe média, servida pela escola privada), que requer professores bem preparados e bem pagos, do serviço universal e eficiente de saúde no seu sentido mais amplo, o que requer mais médicos e médicos bem preparados e bem pagos, do saneamento básico que não chega nem à periferia nem aos bairros populares, de segurança pública e de polícia cidadã. Um Estado desburocratizado, um serviço público democrático, significam a transição do Estado-snowden, ou orwellliano, para o Estado democrático-participativo, indutor do desenvolvimento. Um Estado transitando permanentemente da democracia representativa para a democracia participativa. Esse é o Estado que almejamos, o Estado possível mesmo nas circunstâncias atuais.
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