José Mario Pereira
A morte arrebatou-nos Antonio Houaiss (1915-1999) sem que ele pudesse ver realizado seu grande sonho profissional:o dicionário da língua, abrangente e inovador, para o qual preparou-se a vida inteira, e que ficou inacabado (em razão, também, de outros contratempos, desde a falta de financiamento, no início do trabalho, até o que se poderia caracterizar, eufemisticamente, como “as complexidades de temperamento” de certo acadêmico – que no velório falava maravilhas dele, mas que todos sabiam ter-lhe causado, nos últimos anos, momentos de irritação e tristeza).
Houaiss será lembrado por ensaios como os de Seis poetas e um problema (última edição em 1976, pela Imago, com o título Drummond mais seis poetas e um problema), por ter chamado atenção para a necessidade de melhor se organizar o acervo das bibliotecas (ver o seu Elementos de Bibliologia, 1967, obra cuja maturação foi acompanhada criticamente por Edson Néry da Fonseca, amigo e especialista no assunto), por livros de gastronomia (fez a história da cerveja para a Salamandra, entre outros) e por uma grande quantidade de prefácios que sua generosidade pespegou em livros nem sempre dignos dele, e que merecem ser publicados depois de uma seleção.
Sua tradução do Ulisses, de James Joyce (1882-1941), para a Civilização Brasileira, provocou louvações mas também polêmicas. Saudado com aplausos por uns, criticado por outros, Houaiss incorporou, nas edições seguintes do livro, algumas das sugestões que lhe pareceram oportunas. A tradução das 260.430 palavras da obra maior do irlandês é um feito heróico na história cultural do País, e também na biografia de Houaiss.
Quando Ênio Silveira o convidou para a tarefa, ele pediu 24 horas para pensar. Tomada a decisão, pôs-se a trabalhar em média seis horas por dia, durante um ano, realizando façanha nunca superada. Redigiu primeiro à mão, em cerca de duas horas para cada página. Depois fez uma cópia à máquina, que sofreu mais três revisões até ir para o prelo – e, embora achasse que deveríamos ter mais duas ou três versões do livro, ninguém ainda ousou confrontá-lo. Voltaria uma vez mais a Joyce: em 1984, traduziu para a Record o livro infantil The cat and the devil.
Sobre o Ulisses, disse em entrevista a Olympio Monat (em Cadernos Brasileiros, mar-abr./1966): “Toda a linguagem ali é rítmica. Na tradução procurei conservar, sempre que possível, esse ritmo. (…) Quando o autor utiliza uma só palavra, utilizo também uma só. Literalmente entendo que toda tradução deve ser dialetal e literal. (…) O maior obstáculo que encontrei foi no caso de polissemias, isto é, quando um vocábulo inglês tem dois ou mais sentidos e quando esses dois sentidos são válidos para o contexto. Nesses casos tentei acumular os sentidos através de vocábulos compostos que o original não tinha. (…) Para cada neologismo criei um correspondente em português”. E arrematava, prevenindo os críticos: “Toda tradução é uma interpretatio.”
No final dos anos 70 assisti, na Aliança Francesa de Copacabana, a uma longa conferência sua sobre o Ulisses, num ciclo organizado por Paulo Rónai. Pena que não tenha sido gravada, pois Houaiss contou da gênese da tradução e dos percalços da aventura: confessou que, sem dinheiro e com a mãe no hospital, meteu-se a traduzir, relembrando algumas das inúmeras soluções que lhe ocorreram alta madrugada, ele insone, ao lado da mãe doente. Sua mais reveladora entrevista, do ponto de vista intelectual, foi, certamente, a que deu à revista José (nov.-dez./1976), dirigida por Gastão de Holanda, infelizmente de vida efêmera. Respondendo a questões formuladas por Pedro Paulo de Sena Madureira, Margarida Salomão e Sebastião Uchoa Leite, fez afirmações corajosas, que continuam a merecer consideração.
Sobre Guimarães Rosa, em quem via um “Joyce às avessas”, e cuja obra não lhe provocava maior entusiasmo, foi categórico: “Ele se inebriou mais com a palavra do que com a problemática. (…) O leque, digamos assim, da problemática joyciana se abre para a frente. O leque da problemática de Guimarães Rosa se abre para trás. Ele é arcaizante, conservador e reacionário. E isso na própria criação neológica, na própria estruturação lingüística”. E arrematava: “Em Guimarães Rosa abundam palavras empregadas uma única vez, palavras que criou e não repetiu, e aqui entra o ponto a meu ver básico – o de que são palavras tão inúteis que ele mesmo não as empregou outra vez. São palavras ad hoc, feitas para aquele instante”.
O estilo Houaiss
A afeição de Antonio Houaiss pelo vocábulo inusitado e precioso, que às vezes nublava a compreensão, deu motivo a algumas piadas. Uma delas conta que, quando saiu Seis poetas e um problema, o crítico Agripino Grieco, conhecido pela verve, saiu-se com essa: “Os seis poetas eu ainda não sei quem são, mas o problema só pode ser o Houaiss, o estilo do Houaiss”. Dizem também que a carreira de editorialista no Correio da Manhã começou a declinar quando ousou escrever “linfa potável” – em lugar de “água” – num editorial.
Tinha um curioso cacoete de expressão: “Não sei se me entende”, costumava repetir. Certa vez, José Guilherme Merquior, um tanto irritado, retrucou: “Ora, Houaiss, eu entendo Kant, por que não entenderia você?” Em 20 de abril de 1975, em conversa com Carlos Drummond de Andrade no pequeno escritório de seu apartamento da rua Conselheiro Lafayette, em Ipanema, comentei que não compreendera inteiramente o prefácio de Houaiss à sua Reunião –Dez livros de poesia. E o poeta respondeu, singelo: “Não se preocupe, eu também não entendo tudo que ele escreveu ali”.
Sem medo da morte
Muitas mortes recentes abalaram Houaiss. A da mulher, Ruth, em 1988, foi certamente a mais dolorosa: como não tiveram filhos, ela se tornou o grande esteio de sua vida. Ao saber do falecimento de Houaiss pelo jornalista Alcino Leite Netto, minha primeira reação foi abrir uma garrafa de vinho em homenagem a quem considerava beber e comer com amigos a suprema forma de confraternizar a vida.
Na verdade, a morte que o levou na manhã do dia 7 já o rondava há tempos. Pouca gente conheci que tratasse hospital e cirurgia com tamanha naturalidade. Uma vez almocei com ele e depois caminhamos até o seu escritório, então na rua Erasmo Braga, centro do Rio. Quando nos despedimos, disse-me : “Bem, até daqui a um mês, porque vou me internar hoje.” Um tanto perplexo, perguntei: “Pra quê?” Respondeu-me com naturalidade: “Uns quistos que teimam em retornar, e que já me levaram ao hospital inúmeras vezes”. Antonio Houaiss foi um ser gregário, que prezava as convocações da sociedade e da vida pública. Apesar de franzino, era enérgico nas atitudes e capaz de atos de coragem e solidariedade humana. Verdadeira máquina de trabalho, esgrimia como poucos a arte da conversação, e consumiu-se por inteiro em defesa da língua e de seus ideais. Um quase príncipe árabe, com tudo o que isso significa de finesse e também, algumas vezes, de irredutibilidade. Talvez não tenha conseguido realizar a obra para a qual estava capacitado. Mas quem o consegue, em plenitude?
(José Mario Pereira é jornalista e editor da Topbooks.)