O Brasil-potência pelo qual anseia o humanismo socialista
Roberto Amaral

 

Chego a esta Tribuna animado por dois dos mais caros sentimentos: a gratidão e a humildade. Assim precatado, não me deixarei contaminar pelo ópio da vaidade, tão consumido por intelectuais e homens de Estado.  Não posso, porém, evitar que, mais forte do que eu, se manifeste o orgulho: o orgulho de haver nascido nesta terra, onde só sobrevivem os fortes, de que são símbolo o jangadeiro dos mares bravios e o sertanejo da caatinga; o orgulho de nesta terra, ‘a loira desposada do Sol’ nos versos de Paula Nei e da bravura do Dragão do Mar, haver cultivado as amizades que justificam minha vida.

Mais do que tudo, somos, os jovens de 1964, um só ente político, uma só existência, uma só entidade, pois nossas histórias pessoais foram reunidas e costuradas pelas lutas sociais que delas nos fizeram um só sujeito. Por isso, não somos mais nossas individualidades, não somos fulano nem beltrano, porque somos a nossa geração, aquela  geração que já se apresta para a saudável troca de guarda.

Saúdo os companheiros de marcha quase concluída, e saúdo os que hoje desvendam novas sendas, abrem novos caminhos e constroem novos projetos.

A todos sou grato.

Aos que dividiram comigo minha formação e minha juventude, e aos que hoje proporcionam esta homenagem, acima de tudo fruto da amizade generosa. Reconheço por detrás de todas as peças que se movimentaram e se movimentam, na realização deste ato, a liderança de Sérgio Novais, presidente do meu partido na minha cidade.

Sou-lhe grato.

Recebo esta medalha com alegria indisfarçável,  e mais me curvo sabendo do apreço que tendes por ela. Instituída em 1988, até esta data só foi concedida uma única vez, a Virgílio Távora, in memoriam, entregue a esta extraordinária mulher que foi, d. Luísa Távora. Agora ela me é concedida por unanimidade, graças à generosidade deste Plenário.

Por tudo isso,  recebo-a com a clara convicção de que ela não me pertence. Sei que esta Casa está, na verdade, por meu intermédio, e isto muito me honra, homenageando minha geração. É a ela que a Medalha é outorgada. Muito saúdo o fato de haverdes escolhido para representá-la neste ato um mero militante da luta social. Eis o que sou. Em nome de minha geração, assim homenageada, eu vos digo: Muito obrigado.

Muito obrigado ao Legislativo cearense, cujo Comitê de Imprensa, ainda estudante, eu frequentava diariamente como repórter do saudoso Diário do Povo, de Jáder de Carvalho e Aquiles Peres Mota, amigo raríssimo. No casarão do velho centro da cidade, ao lado da Praça dos Leões e do quase demolido Palácio da Luz,  conheci jornalistas sem jaça como Moraes Né (de O Povo) e Adízia Sá (da Gazeta de Notícias), nossos decanos, sempre dispostos a ensinar aos que vinham chegando. Na velha Assembleia acompanhei os primeiros passos de Luciano Magalhães, também meu colega de Faculdade de Direito, bravo, inexcedível na lealdade;  ali, tornei-me amigo do deputado José Pontes Neto, orador elegante, culto, debatedor ágil, homem generoso. Tenho orgulho de sua biografia, que também pertence a todos os socialistas cearenses.

 

Agradeço aos bons fados a associação de meu nome à memória de Virgílio Távora. Agradeço aos insondáveis desígnios do acaso a longevidade que me permitiu viver o combate ao golpe de 1964, a resistência ao mandarinato militar, colaborar para sua derrocada e a construção do regime democrático requerido pelo nosso povo. Graças  a essa tessitura histórica, de que fomos agentes e instrumento, posso hoje estar aqui convosco, falar a todos e de particular aos meus companheiros socialistas, e fazê-lo como membro de um governo popular, nacionalista, desenvolvimentista, mentor da emergência das massas e em luta contra as desigualdades sociais, a fonte de todas as injustiças, caruncho insaciável consumindo a democracia. Pois, meus amigos,  e mediteis sobre o carrossel da história, eram essas as bandeiras que animavam nossa juventude, de estudantes e trabalhadores, quando sobre o país se abateu o pesado manto da ditadura, como que decepando o mundo de igualdade social que  então pensávamos estar construindo com nossas mãos de obreiros da História. Fica o ensinamento. Se é possível, e somente é possível pela força, retardar o parto da História, é impossível deter permanentemente o processo social. Aos momentos de compressão se sucedem inevitáveis  fases de expansão que terminam compensando o tempo desperdiçado. Cedo ou tarde, mas inexoravelmente, o progresso se impõe, porque, desde sempre, inventar-se, avançar, revolucionar, fazer o mundo, nele situar-se, e sempre melhorá-lo, é o papel do indivíduo, ser social. Assim, hoje, olhamos para além do horizonte, miramos o futuro e identificamos o papel que decidimos cumprir: fazer avançar as conquistas que timidamente começamos a construir com a redemocratização.

A lição do passado é o farol que abre sendas, ilumina os novos caminhos, e nos orienta na construção do futuro. Daí a evocação, sem lamúrias, do golpe e do mandarinato militar, hoje um passado vencido emocional e politicamente, mas que jamais esqueceremos. Não é mais a hora de reviver as dores. Não se trata mais de lamentar o país  que deixamos de ser. Cumpre-nos refletir, e refletir com alguma dose de autocrítica, pois aquela insurgência reacionária não foi fruto de si mesma, nem muito menos fenômeno autônomo. Nossa tarefa de hoje, de militantes sociais,  é saudar o país que fizemos depois da redemocratização e o país que queremos fazer a partir de agora.

Nossa missão é defender e aprofundar os avanços.

A evocação à Medalha Virgílio Távora leva-me de volta ao hoje já distante março de 1964.

Seu assessor para assuntos estudantis e sindicais,  já discriminado como subversivo e comunista num ambiente pequeno, irremediavelmente dividido pelo conflito ideológico acirrado, acirrado inclusive por nós,  fui chamado ao gabinete do então governador Virgílio Távora  no dia seguinte ao polêmico discurso do presidente João Goulart aos sargentos, no Automóvel Clube do Rio de Janeiro. Dele ouvi um resumo do quadro nacional, mais militar do que político, e o anúncio – já não era mais mera previsão–  do golpe inevitável, pronto para desabar. Virgílio despediu-se de mim – era realmente uma despedida– com essa recomendação: – “Diga tudo isso aos seus amigos e saia de cena com eles“. Dei o recado aos meus companheiros. As precauções possíveis nas circunstâncias foram tomadas de maneira absolutamente anárquica, desprevenida, voluntarista e desorganizada, relutante, porque, ao contrário do que supúnhamos, ou daquilo que nos fizeram acreditar, não havia organização alguma. Mas, contrariando a recomendação, resolvi ficar ainda algum tempo na cidade.

Apesar de haver sido eleito por um coalizão conservadora liderada pela aliança PSD-UDN, derrotando o candidato das forças progressistas, Adail Barreto,  e ainda apesar  de governar apoiado em um esquema político que já apontava para a conspiração, seu governo, o governo de Virgílio Távora, era penetrado por intelectuais e técnicos de esquerda, no planejamento e mormente na sensível área da educação. Nenhum de seus auxiliares foi perseguido, mesmo quando já eram crescentes as pressões militares com vistas à deposição do governador, justificadas essas pressões pela conhecida amizade que o ligava ao presidente deposto, responsável pela chegada da energia da CHESF a Fortaleza, acalentado projeto de Virgílio e ponto de partida da construção do Ceará moderno.  Eu estava em sua residência — eis de novo o acaso brincando com a tessitura histórica, e dou este testemunho pela primeira vez – eu lá estava, era  provavelmente o dia 31 de março– quando chegou uma vetusta e rica, riquíssima, delegação de empresários cearenses, naquele então se intitulavam de ‘classes produtoras’, para cobrar do governador uma declaração de apoio ao golpe. Ouviram dele apenas o compromisso de ‘garantir a ordem’. Estava comigo, entre outros amigos de Virgílio, o saudosíssimo  Pontes Neto. Lembro-me quando, naquela tarde, contrariando minha interpretação simplista de que estávamos apenas diante de mais um golpe, como o 24 de agosto de 54, o 11 de novembro de 1955, e mesmo o golpe-conta-golpe de agosto de 1961, Pontes me advertia, tragicamente premonitório, e suas palavras ficaram gravadas em meu espírito como maldita sentença: “Isso é coisa para 20 anos“. Foi o meu encontro com a realidade que até então recusava reconhecer, uma realidade  que se revelava ameaçadora e terrivelmente insondável, porque eram escuros os tempos que nos aguardavam. Vivíamos a sensação de estar ingressando em um túnel do qual não podíamos conhecer o chão, nem adivinhar a saída.

O resto é História e dentro dela variam os destinos pessoais, irrelevantes diante do processo social. Fui forçado ao exílio dentro de meu país, como muitos amigos que aqui não puderam continuar; outros aqui permaneceram lutando e resistindo, cada um a seu modo, e todos de forma digna.

Virgílio Távora salva seu mandato e inicia a modernização política e administrativa de nosso Estado, obra continuada por Ciro e consolidada na administração de meu querido correligionário Cid Gomes. Os quadros de esquerda ou simplesmente progressistas, eleitos em 1962, são cassados e perseguidos — e lembro aqui Adahil Barreto Cavalcante, Moisés Pimentel, Pontes Neto, Aníbal Bonavides, Luciano Magalhães, Xico Arruda e Blanchard Girão, todos mortos, e Manuel Arruda, Tarcísio Leitão e Luciano Barreira, felizmente todos vivos. Lideranças estudantis e populares como José de Moura Beleza, intelectuais e professores universitários como Lauro Oliveira Lima, conhecem a mão pesada do novo regime. Mas a ordem natural das coisas dizia que o natural era a absorção de Virgílio pelo novo sistema, onde emergia seu tio Juarez, e isso foi bom para o Ceará, que se livrou de um interventor de japona.

Integrado à nova ordem, Virgílio, desenvolvimentista e planejador,  conclui seu governo, ao cabo do qual é eleito senador da República, e na Câmara Alta esculpiria a justa imagem de um dos mais brilhantes e dedicados parlamentares brasileiros, naquela difícil quadra de nossa história política.  Deve-se, por exemplo, ao seu denodo e à sua competência como parlamentar  respeitado por seus pares a salvação do Acordo Brasil-Alemanha, de 1975, Acordo que foi a matriz, o ponto de partida, a semente do Programa Nuclear Brasileiro autônomo, autonomia ainda hoje sustentada com múltiplas dificuldades externas, naturais, e internas, essas insuportáveis.

Aproveito a remissão para tratar de tema que tem sido alvo de minhas preocupações presentes. Refiro-me às dificuldades brasileiras de enfrentar seus projetos estratégicos, como o nuclear, o espacial e o cibernético,  como tantos outros colidindo com  estruturas burocráticas despreparadas para o avanço.   Em todas essas áreas, nas quais já estivemos quase acompanhando o desenvolvimento das grandes potências, isto nos anos 60, hoje estamos lamentavelmente atrasados,  bastante atrasados, atraso o qual só tende a aprofundar-se se novas políticas de Estado não forem adotadas, políticas continuadas de verdadeira proteção de nossa soberania e de construção de nosso futuro.

Essas e outras questões estão a reclamar um Projeto Nacional construído de baixo para cima, livre de dictaks e pleno de consenso, ou hegemonia no bom sentido gramsciano, reunindo num pacto os sentimentos de nosso povo, o que se pode chamar de nacionalidade, nossos valores, e acima de tudo nossa vontade coletiva expressa no projeto de uma grande nação, próspera, democrática, participativa, em luta permanente contra a desigualdade social e a fome, a tragédia que desafia a modernidade tecnológica.

A miséria que nos cerca, agredindo nossos brios, é moralmente inaceitável. Do ponto de vista político é uma violência inominável; economicamente uma burrice mesmo nos termos do capitalismo que a produz, pois afasta da cidadania e da produção, todo dia, milhares de jovens brasileiros.

Este Projeto Nacional pelo qual propugna a esquerda socialista, não se assemelha nem ao Estado Novo nem ao vencido projeto de 1964, pois não é engenho de governo ou de déspotas esclarecidos, mas projeto de toda a nação, do povo, de todo o povo, o povo-massa, o povo como sujeito.

Este projeto, construído de forma democrática porque participativa, haverá de transformar o Estado herdado do neoliberalismo predatório, restituindo-lhe as usurpadas condições de intervir na economia e promover o desenvolvimento sustentado, cujo objetivo final só pode ser a defesa do Planeta ameaçado pelo consumismo obsceno das grandes potências, e a construção, em nossas terras, e se possível para o usufruto já da próxima geração, de uma sociedade que, elegendo a igualdade como fim, tenha a liberdade como meio.

O Brasil-potência pelo qual anseia o humanismo socialista, e é dele que vos falo, é o país que associa desenvolvimento com fraternidade e que a pratica na sua domesticidade e em suas relações internacionais, na amizade, cooperação e solidariedade com todos os povos e de particular com  seus vizinhos, na busca do consenso como alternativa ao big stick; a igualdade nas relações internacionais substituindo a prepotência e o intervencionismo do terrorismo de Estado impune,  a comunhão ao invés do cisma, o entendimento como substituto do conflito.

O humanismo socialista não se conjuga com  opressão, por isso mesmo é incompatível com a exploração de classe e a ditadura das minorias poderosas. A igualdade de todos não será letra morta na retórica constitucional, mas regra vivida diariamente no vai e vem das relações sociais.

O Estado socialista é laico para estar acima de todas as crenças, e nenhuma será oficial ou oficiosa ou protegida, e nenhuma perseguida. O Estado socialista, democrático por definição, busca a democracia participativa — este sonho há tantos anos alimentado pelo pioneirismo doutrinário de Paulo Bonavides.  Democracia participativa na qual, crescentemente, o poder é exercido pelas grandes massas, livre da ditadura do representante sobre a vontade do representado, estabelecendo a sincronia entre a vontade da cidadania e a ação política.

Neste mundo globalizado pelos interesses das últimas grandes potências, neste mundo sem paz que transitou da polaridade para o regime da unipotência onipotente, arrogante, erga estados, erga direito, erga soberania; no mundo da unipotência guerreira que trata os demais países como províncias de seu império econômico, tecnológico e militar; neste mundo insustentável, de riqueza concentrada e fome distribuída, países como o Brasil têm um inafastável papel histórico, preparatório do regime de multipolaridade em lenta construção.

Somos um país rico embora nosso povo ainda seja pobre, somos um povo em paz consigo e com sua história, sem conflitos étnicos ou religiosos, somos uma rara unidade territorial, linguística e cultural, somos um povo que soube fazer crescer seu território e desenvolvê-lo sem o apelo à guerra de conquista, e, mercê de seus valores, construiu uma sociedade, a qual, embora ainda profundamente desigual, está unida no amor nacional e na paz.

Somos um povo que soube vencer a ditadura e construir a democracia, e na democracia está construindo uma grande potência.

Por mais que o desejem as poderosas forças do atraso, o Brasil jamais será um país pequeno. Seu destino é o de grande potência, de grande e pacífica potência, potência que jamais será imperialista, porque será justa e democrática. Seu destino é irrecusável porque não será obra de milagres, de dádivas divinas, nem de determinismos sociais, econômicos ou históricos, nem será fruto de concessão dos poderosos. Seu destino é  palpável porque não dependerá de suas elites pervertidas, descomprometidas com o nacional e o popular, desinteressadas de sua gente e de seu país. Este destino depende daquilo que o Brasil tem de melhor: o seu povo. O povo que se reencontrou com seu país, tem razões para amá-lo e defendê-lo, ama o progresso e detesta o pessimismo dos derrotistas.

A força imbatível do homem comum, a força telúrica que grita pela vida quanto mais ela é difícil, de que é símbolo a resistência de nosso sertanejo, está na biografia do vice-presidente José Alencar, na vida e na morte exemplo que não esqueceremos. A história é feita pelo povo conduzido por lideranças que em determinado momento se identificam com a alma de sua gente. São intérpretes, e mais bem sucedidos na medida em que compreendem seu papel na história. E ninguém hoje melhor simboliza a capacidade realizadora de nosso povo do que o presidente Lula, que vai para a história como exemplo de estadista que, num momento luminoso de nossa história, nos fez sentir como um grande povo que conhece o caminho para o futuro e vai percorrê-lo de cabeça erguida. Precisava ser um simples homem do povo, nordestino emigrante, passageiro de pau-de-arara, operário e mestiço para realizar o governo que nenhum representante das classes dominantes ousaria.

E porque somos e pensamos como um grande povo, temos tudo para acreditar no Brasil que já se levantou da letargia do berço esplêndido  e se volta para a construção de seu  futuro de nação rica, socialmente justa e politicamente  soberana.

 

Discurso pronunciado em Fortaleza, no dia 6 de maio de 2011, ao receber da Assembleia Legislativa do Estado a Medalha do Mérito Parlamentar Virgílio Távora, concedida por unanimidade.