O vice-presidente tem plena consciência de suas palavras, e sabe que seus discursos estimulam a onda pela remoção de Dilma
O vice-presidente Michel Temer não pode ser acusado de inexperiente. Sua carreira política já percorreu dezenas de anos, e foi construída nos gabinetes e nas negociações de cúpula que cobram sagacidade, matreirice e astúcia. No PMDB é um antigo pessedista mineiro e está mais para Tancredo Neves do que para Ulisses Guimarães, respeitadas as diferenças de estatura política.
Se nesses ambientes o espírito público é descartável por despiciendo, deles só se salvam os hábeis negociadores, os articuladores, os estrategistas, a saber, os que são capazes de atirar e acertar o alvo ainda invisível aos olhos da maioria.
Por outro lado, Temer não é um boquirroto (como os temos mesmo na mais alta corte), tampouco um desprovido de espírito. Domina o vernáculo, conhece as palavras e não discursa em vão. Quero dizer que tenho na justa medida as palavras que dita, e plena consciência do juízo de seu discurso.
Por isso mesmo levo em conta o que diz e muito me preocupa a última série de pronunciamentos, nenhum deles condizente, seja com seu cargo na República, seja com sua forma tradicional de fazer política. Seja, e agora entra em jogo a sempre incômoda questão ética, com o dever de aliado.
Posto que todas essas falas, quando lidas tendo como pano de fundo o quadro politico brasileiro – e só assim têm significado – contribuem para a onda golpista que pervade o contaminado cenário brasileiro, atingindo Congresso, imprensa e mesmo tribunais superiores.
Suas declarações são em si graves, mas ainda mais preocupantes se tornam quando considerado seu autor, pois não se trata de um personagem qualquer, mas nada mais nada menos que o vice-presidente da República, o presidente do maior partido do Congresso, que ocupa vários ministérios importantes e as presidências da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Não é um bolsonaro qualquer.
Ora, faz um mês, o vice Michel Temer (eleito, como todo vice, pelos votos da titular), então coordenador político do governo, cobrava a necessidade de surgir “alguém com capacidade de unir a todos”. A simples proposição implicava o reconhecimento da incapacidade de a presidente Dilma cumprir esse papel, intrínseco ao exercício da presidência. O vice e aliado na verdade indicava a função vaga e de pronto apresentava um candidato para preencher o espaço vazio. Não precisou dizer ‘esse alguém sou eu’, pois toda a imprensa e o chamado mundo político assim entenderam.
Mais recentemente, em animado convescote na mansão de uma socialite paulistana defensora do impeachment, o vice declara, sem rodeios, e num estímulo mais do que claro às ações anti-Dilma de seus interlocutores, que a presidente não concluiria seu mandato, se mantidos seus atuais baixos índices de popularidade. Dito de outra forma: se vocês pretendem (e sabidamente pretendem) vê-la fora do Planalto, basta continuarem a campanha de descrédito que imobiliza o governo. Até por que, acrescentou, não esperem que ela renuncie. Melhor discurso não poderia desejar ouvir a oposição. Refletindo seu significado, as palavras do vice-presidente dominaram as manchetes e foram objeto de comentários de todo jaez.
Nenhum veio em socorro ao governo.
Ao contrário, a declaração do ex-professor animou os cenários golpistas de maior e menor densidade, levando o ex-presidente e ex-sociólogo FHC a, segurando a peteca levantada, propor em seu artigo semanal veiculado pelos jornalões um novo “bloco de poder” incluindo todas as forças político-sociais do País, excluídas a presidente e aquelas forças que venceram as eleições de 2014, com mais de 54 milhões de votos, cifra que não é nem poderia ser desprezível.
É inteiramente irrelevante conhecer os propósitos íntimos do vice-presidente e as elucubrações do ex-presidente, como é de igual modo irrelevante perquirir se esses pronunciamentos integram uma maquinação golpista. O fato objetivo é que o conluio existe, com ou sem a participação desses atores. O fato objetivo é, finalmente, que tanto as declarações do vice quanto a coluna de FHC servem ao projeto golpista.
Do ponto de vista tático agiu acertadamente o Planalto ao minimizar as declarações do vice-presidente, até por uma razão muito simples: não dispunha de alternativa. Mas errarão profundamente os estrategistas do governo se menosprezarem a profundidade da orquestração golpista, que não se encerra na alucinação demo-tucana, e já se faz e já se divulga à luz do dia.
As novas vivandeiras têm tribuna, púlpito, toga, e a voz dos grandes meios de comunicação. Têm, ademais, apoio de setores consideráveis da classe-média (sempre contou com a pequeno-burguesia), mobilizados pela campanha contra a corrupção, produto da conspiração de empresários, políticos e servidores públicos. Agora, como sempre, explorada de forma enviesada, escancaradamente seletiva, partidarizada.
Além das tradicionais tratativas de cúpula nos antros do poder real, a direita brasileira de hoje conta com apoio mediático que lhe confere visibilidade e amplia o alcance de sua mensagem reacionária. A esse seu poder tradicional e de sempre associa hoje uma agressiva presença nas ruas, ocupando espaços deixados pelos partidos progressistas e forças populares, essas à espera de um comando que tarda em assumir seu papel histórico.
O governo por seu articuladores e as forças que o apoiam precisam superar o restrito mundo das articulações clássicas – Congresso e o que resta de partidos e suas lideranças –, precisam considerar outros braços do Estado e seus estamentos, como os meios de comunicação de massa e a alta burocracia, e nesse plano incluo os tribunais superiores. Mas isso ainda não é tudo, nem será suficiente. Pois não é aí que reside sua base política de sustentação. Reorientando a política econômica, o governo precisa dialogar com as forças produtivas e com elas estabelecer alianças conjunturais que visem à recuperação da economia para além do déficit fiscal, sem prejuízo nem da soberania nem da economia nacional, e, sempre, sem prejuízo dos de baixo, exatamente os que estão dispostos a ir às ruas em sua defesa, os trabalhadores e assalariados de um modo geral e os movimentos sociais
Indicador ainda tênue dessa alternativa e de seu potencial foi oferecido pelo lançamento em Belo Horizonte, sábado último, da Frente Brasil Popular, movimento que se organiza nacionalmente tanto em torno da defesa da democracia e da integridade do mandato conferido a Dilma pela vontade eleitoral em 2014, quanto em defesa da soberania nacional, do desenvolvimento com distribuição de renda, da reforma do Estado e nela da reforma política. Em defesa dos interesses das grandes massas. A Frente é movimento que visa a barrar o avanço do pensamento conservador e reacionário, hoje tão bem vocalizado pelo PSDB e seus sócios menores, dentre os quais se destaca o presidente da Câmara dos Deputados.
A Frente não nasceu no sábado último. Ali simplesmente tivemos sua apresentação pública. Ela vinha sendo gestada havia meses pelo movimento social, sem a ingerência de partidos – embora a eles aberta –, sem compromissos eleitorais e sem aparelhismos, discutida em todo o País, nas redes sociais, e antecedida por eventos regionais, que percorreram praticamente todos os Estados.
À Conferência popular que aprovou seu Manifesto, em Belo Horizonte, acorreram militantes de todos os quadrantes do País, sob as lideranças da UNE, do MST, da CUT e da CTB, dentre outras muitas entidades populares e de classe.
Essa Frente Brasil Popular é ampla mas não pretende ser única. Paralelamente, muitos outros movimentos de origem vária – frentes, grupos de trabalho, grupos de reflexão, todos autônomos mas todos voltados para a defesa da democracia e da economia nacional – se estruturam em todo o país.
É a grata promessa de povo na rua.
A mobilização popular é fundamental. Ao retornarem às ruas em apoio ao governo, as massas espantam o golpismo e ao mesmo tempo alteram, podem alterar substancialmente, a atual correlação de forças, que, em prejuízo dos compromissos populares da presidente, assumidos pela sua biografia, faz do atual governo uma presa do sistema financeiro.
Sem o dever de emprestar apoio ao governo, o rentismo – com prejuízo inclusive do capital produtor que precisa ser estimulado, e da recuperação econômica – impõe uma política recessiva que exige ainda mais sacrifícios das grandes massas, de cujo seio tem o governo a expectativa de recolher o apoio de que carece.
A superação do paradoxo só se dará com a mobilização das grandes massas. Alterando a correlação de forças, o movimento social oferecerá ao governo condições de enfrentar a reação, e a nova política daí resultante fortalecerá a retomada do desenvolvimento nacional, sem inflação, sim, mas, igualmente, com redistribuição de renda e desenvolvimento econômico, mediante a proteção dos interesses dos que trabalham e produzem.
Roberto Amaral