Há muitos equívocos, a meu ver, nos comentários aos primeiros quatro meses do novo regime, por si só uma entidade à procura de definição.  Ouso identificar como principais as percepções de que o governo: 1) está parado; 2) é imprevisível e 3) não aponta para o autoritarismo sem disfarce.

Sobre tais equívocos sobreleva como erro básico a redução do novo regime ao governo que o expressa, e este à figura do capitão, como se em 2018,  em pleno desenvolvimento de um processo que teve como ponto de partida o impeachment de Dilma Rousseff, tivéssemos vivido uma corriqueira transição de governo.

Por antonímia, o bolsonarismo é privatista, americanista, entreguista e repele mudanças sociais. É a voz da extrema-direita contemporânea que, do ponto de vista ideológico, não é “um ponto fora da curva”, nem representa uma especificidade brasileira. Experimentamos o que  alguns observadores denominam “democracia illiberal” e mesmo anti-iluminista. Na verdade, um regime autoritário bifronte, caracterizado pela convivência de restrições a direitos individuais com um ultra liberalismo econômico, sustentado pelo sufrágio popular. O mesmo processo levou ao poder Tayyip Erdogan e Viktor Orbán.

O neoliberalismo econômico (o amálgama que, com o anti-lulismo,  consolida a aliança dos militares com o mercado) pede um governo autoritário (às favas o liberalismo politico, como diria o cel. Jarbas Passarinho), porque sua efetividade requer medidas antipopulares. A reforma que o “Posto Ipiranga” patrocina com o apoio da unanimidade da grande imprensa, da Avenida Paulista e suas adjacencies, nos chega como aquele experimento dos Chicago boys que vicejou na sangrenta ditadura de Pinochet.

Só um governo autoritário – e mesmo protofascista – pode assegurar a implantação de uma política que desencadeia o desemprego, desampara pensionistas e protege os mais ricos em momento de crise econômica profunda. Crise alimentada pelos desarranjos estruturais conhecidos, e agravada pela crise internacional que, depois da quebra do sistema financeiro norte-americano, nos revisita com o esperado aumento  do preço do petróleo, fruto da política trumpiana na Venezuela, no Oriente Médio e, sobretudo, no Irã, forçado a retomar seu programa nuclear. 

Tenho, neste espaço, insistido na tese de que estamos sob um novo regime que se auto-conserva como uma ‘nova ordem’, a qual, gerada na antiga ordem e filha do sistema, se volta contra uma e outro, procurando negá-los, num regressismo inaudito.

Assim se explica como o campeão da antipolítica carrega consigo mais de 30 anos de mandato parlamentar e, fruto da “velha política”, reivindique o posto de arauto de uma “nova” política.

Mas isso que estou denominando de novo regime se alimenta, mais profundamente, na  negação do regime instaurado pela Constituição de 1988 e, mais precisamente, nos anos de preeminência do petismo e do lulismo que os generais apoiaram, sem haver sido conquistados para suas teses.  

Sem autonomia doutrinária, o bolsonarismo converte-se numa proposta de pura negação. Contrapõe-se à modernidade, com a qual identifica um tal de  “marxismo cultural” e o lulismo, que aponta como síntese dos males do país. 

O autoritarismo está, pois, na gênese do novo regime; atende a uma necessidade interna e se precata contra os novos ventos da conjuntura internacional. 

De outra parte, o novo regime, por intermédio de sua representação atual que é o governo bolsonaro, vem realizando todas as ameaças de campanha. Uma vez mais lembremos: jamais tivemos um governo e uma política tão previsíveis. Sua pauta está em dia, como atestam os avanços na “reforma” da previdência, a nova política externa fundada na dependência abjeta e na aliança – por razões estritamente ideológicas – com governos de direita e extrema-direita, a desmontagem de direitos sociais e individuais e seu empenho na luta contra o conhecimento e a reflexão.

Neste cenário de coerência entre fins e meios, estratégia e métodos, se os atos do novo regime são  previsíveis, como já vimos, igualmente previsível é o Estado que está por vir, quando a conjuntura nacional, reproduzindo o quadro internacional, nos acena com aguda crise econômica associada à crise da democracia representativa que embute a crise dos valores da democracia liberal, a falência dos partidos políticos e a desmoralização da política como instância de solução dos problemas do povo e do país.

O perigoso pano de fundo, entre nós,  é a erosão das instituições democráticas e dos poderes da República, com destaque  para  a crise de legitimidade do Congresso e a crescente desmoralização do Poder Judiciário, bem como – consequência e jamais causa – a apatia, o desinteresse e o desencanto das grandes massas, desorganizadas e desmobilizadas, o que quase sempre se converte em  perigoso estímulo a desastrosas aventuras.

Partidos de quase todos  os naipes se revelam agônicos,  as organizações sociais  – à frente de todas os sindicatos, sem capacidade de mobilização mesmo reativa, mesmo quando os direitos dos trabalhadores são diretamente atingidos, como atingidos estão sendo. 

Na linha do horizonte não se veem barreiras de defesa da sociedade para fazer frente a eventual maré montante autoritária gerada no seio do poder, hipótese que, por mais  indesejável, não deve ser descartada de nossas análises.

Como pensar em processo democrático e sua progressão quando o presidente da República estimula o dissenso (mesmo em suas hostes) e a violência, o armamento e a licença para matar, ao tempo em que investe contra as manifestações da inteligência, do conhecimento, da cultura e do ensino, da produção cientifica e do desenvolvimento tecnológico? Como cogitar de normalidade democrática e em sua continuidade quando o governo  investe contra a educação básica  e  universitária, contra a liberdade de cátedra e o pensamento crítico e inovador que caracterizam a Filosofia e as Ciências Sociais?  

Sinal dos novos tristes tempos: alentado pela onda autoritária e perversa em que pegou carona para ascender do anonimato ao poder, o governador do Rio de Janeiro – eleito com a promessa de patrocinar execuções sumárias, ao arrepio da lei – se permitiu, recentemente, sobrevoar aglomerados urbanos a bordo de helicóptero policial que disparava tiros de fuzil. 

A transição para um regime autoritário, ou totalitário, ou mesmo ditatorial que, uma vez instaurado, percorrerá todos os escaninhos da vida nacional, não depende, como causa e efeito, necessariamente, da ruptura institucional clássica, como em  1937 e em 1964, posto que pode operar dentro da ordem constitucional vigente, maleável e remodelável segundo os interesses que se fazem majoritários na crista  dos impasses. A transição, muitas vezes, se opera ‘na forma da lei’, o que admite, até, mudança de regime, como vimos na crise de 1961, quando se consumou um golpe de Estado parlamentar. Outras tantas vezes o processo se dá de forma gradual, como vem ocorrendo desde a parlamentada que derrubou Dilma Rousseff.

A tendência antidemocrática é o fenômeno à vista e se repete aqui, como sempre, no cume de uma onda que percorre o mundo  hoje como nos anos 1920-30 do século passado, de que nosso Estado Novo (1937-1945) foi herança que logo medrou, porque entre nós encontrou terra fértil.

No Brasil não se  teme a reprodução da  dinâmica que operou na Turquia e na Hungria (nem na Polônia, nem na Itália, nem em parte alguma), por uma razão acaciana: não somos nem Hungria nem Turquia, somos sociedades diversas, derivamos de formações históricas diversas, como diversas eram entre si as sociedades italiana, alemã, espanhola, portuguesa e japonesa da primeira metade do século XX, o que, todavia, não as livrou do comum fascínio pelo totalitarismo. Nossas experiências guardam distinções, as quais, porém, por maiores ou menores, não nos vacinam contra a onda autoritária, aquela mesma que floresceu na ditadura Vargas e renasceu na ditadura militar instaurada em 1964. E permanece latente, pronta a aflorar, no primeiro descuido dos mecanismos de defesa da democracia. 

Herdeira do escravismo e do genocídio, nossa sociedade é majoritariamente conservadora, desafeita às opções políticas, programáticas ou partidárias, sensível às pregações messiânicas, sempre à procura de um líder pai-salvador do qual exige como dotes força e autoridade. Trata-se de um autoritarismo larvar que pervade todas as manifestações da vida nacional, saltando do convívio social para a esfera política, onde se institucionaliza. 

Bolsonaro é o símbolo reacionário com o qual a parcela mais conservadora da sociedade se identifica na ressaca do desalento político. Ao seu apelo popular as forças do novo regime devem a conquista do poder pelo sufrágio eleitoral.

O capitão conservará  a presidência – apesar de tudo o que testemunhamos – até o momento em que se constituir em estorvo ao projeto de poder que o catapultou em 2018, para o qual  o inimigo comum são as esquerdas e tudo o que com elas se identifique.