Roberto Amaral*

Estamos  condenados  a conviver com espectros. Uns, desejados e ao mesmo tempo temidos, como o espectro do comunismo a que se referia Marx em 1890. Cansado de tanta luta,  resguarda-se em demorada reflexão (ou autocrítica) mas seu retorno, sem data aprazada com a História, é esperado. De cara nova, mas sempre temido e sonhado. Esta é uma das promessas do capitalismo monopolista financeiro. Até lá, la nave va…, ensinou Felini, o cientista político que se valeu do cinema para nos ajudar a compreender a vida e seus espectros:  das peste e  das epidemias antigas e contemporâneas, à tragédia ambiental. E,  “naturalizados”, reinam aqueles espectros com os quais a humanidade resolveu conviver: as guerras, a fome, as desigualdades sociais.

Rondando o mundo como um projeto e uma ameaça, o espectro de hoje é o avanço do pensamento e da ação protofascistas, que já avançam em perigoso número de grandes potências. Exemplo paradigmático vem dos EUA, caminhando com botas de sete léguas para o que  pode ser o governo prometido pelo candidato do Partido Republicano. Como nenhuma desgraça é solteira, a guerra, estimulada pela incontornável disputa de hegemonia (Ocidente-Eurásia) —  já deu seus primeiros e firmes passos. Doutro modo não pode ser visto nem o conflito Rússia x OTAN (essa a composição de fato), nem muito menos o genocídio do povo palestino levado a cabo por Israel, graças ao apoio militar e financeiro dos EUA e seus aliados, notadamente, a comunidade europeia.

O avanço da direita traz consigo, como irmão siamês, o recesso da esquerda, tanto do ponto de vista do controle de poder político, quanto na formulação doutrinária: o recuo se revela no pensamento e na ação, o que se reflete na crise existencial dos partidos comprometidos com os interesses da classe trabalhadora, como os partidos trabalhistas, socialistas e comunistas. Grandes e poderosos partidos, como  PCF, o PCI, os PS francês e italiano, são condenados à irrelevância, enquanto outros transitam para  socialdemocracia como o Partido Trabalhista inglês. O Partido da socialdemocracia alemã (SPD) se confunde com a União Democrática Cristã (CDU, de Konrad Adenauer e Angela Merkel. (Registre-se, uma reação: no contrapelo da vitória fascista na Itália, as esquerdas francesas, reunidas em uma frente, contribuíram decisivamente para deter a ameaça totalitária nas últimas eleições).  O declínio da esquerda, como poder e expectativa de poder, como projeto revolucionário, como movimento de ideias e organização popular, se permite inumeráveis especulações, tem um marco histórico: o suicídio da URSS em 1991,  com todos os seus ingredientes conhecidos, como o fim do “socialismo real” das repúblicas do Leste Europeu, e,  na sua cauda a ascensão dos EUA como potência hegemônica.

Há uma relação estreita entre o avanço progressivo das formações de direita e a crise dos partidos que integram o campo das esquerdas, uma referência ideológica que compreende um leque de variações determinadas por fatores históricos e culturais, condicionadas  pelas circunstâncias de luta e mesmo  pelo  caráter do adversário. Em qualquer xadrez, porém, o outro lado do avanço da direita, ou, dito em outra ordem, a outra margem do recuo da esquerda, é o recesso democrático com o eclipse daqueles regimes que, mesmo sob controle dos aparelhos do Estado de classes, possibilitam a organização popular. O rompimento da ordem democrática é, sempre, a resposta das forças conservadoras e de direita — sempre vinculadas ao grande capital e aos interesses estratégicos da hegemonia estadunidense – em todas as oportunidades nas quais o processo social sugere o avanço político ou político-eleitoral da forças progressistas e de esquerda. A América Latina, ao lado de outros teatros, registra um sem-número de golpes de Estado. Duas dolorosas lembranças: o golpe de 1º. de abril de 1964, que derrubou o governo democrático-progressista de João Goulart, e o golpe militar que em 1973, operado pelos militares mas dirigido pelos EUA, pôs por terra a experiência de socialismo democrático de Salvador Allende.

Os tempos presentes ainda assustam, embora não sejam novos em nossa história os assaltos da reação à democracia, nem estejam distantes de nosso dia-a-dia. Recuperada formalmente a democracia,  com a Constituinte de 1988, o regime decaído sobreviveria na ordem que o havia derrocado:   sobreviveria e sobrevive ainda hoje a  preeminência militar,  e é  crescente o predomínio, sobre os negócios do Estado,  dos interesses do capital financeiro. A Faria Lima é reconhecida como um dos “poderes” da República, como a caserna e  os barões da economia primário-exportadora.

É nesse contexto que, dos desvãos do  “baixo clero” e dos porões da ditadura, emerge o bolsonarismo, uma força de direita apoiada nas grandes massas e setores destacados das forças armadas do Estado brasileiro.

Mesmo setores ponderáveis do pensamento progressista, desprovidos porém daqueles recursos metodológicos  que ajudam a compreender a natureza dos fenômenos históricos,  não conseguem  encontrar o caminho de saída
do impasse.

“O que fazer” permanece como perigosa esfinge.

O Brasil se insere na rota geral da crise dos partidos de esquerda e das organizações que em tempos passados se distinguiam como revolucionárias, no simples sentido de propugnarem pela revogação do Estado de classe. Aqui uma nova conjunção: muitos dos partidos do campo da esquerda, cristãos novos do legalismo e do eleitoralismo, conquistados pela miragem do poder imediato,  renunciaram à batalha ideológica, esqueceram o esforço da organização popular, desestimularam a formação de quadros e militantes.  Os sindicalistas abandonaram  chão de fábrica. Do nosso dicionário foram deletadas expressões como luta-de-classe. Não se fala mais em socialismo. Sem pretender alterá-lo,  optamos por bem cuidar um aparelho de Estado estruturado para garantir a continuidade do sistema. Renunciando à nossa própria imagem, terminamos por assumir as feições do adversário. As ruas vazias, os sindicatos esvaziados (aqui erros crassos de condução  agravados pela crise do trabalho),  a academia em silêncio, as chamadas entidades de classe consumidas na administração de sua domesticidade, as militâncias partidárias desmobilizadas, os bairros proletários abandonados, eis como o território da política  foi cedido à ação das milícias, do tráfico e da repressão. O silêncio da esquerda aumenta o espaço e a intensidade  da pregação dos aparelhos ideológicos da classe dominante. A religião é utilizada como eficaz instrumento de tranquilização das massas. O homem deixa de ser agente histórico, e sua responsabilidade é transferida para Deus, pois foi ele que lhe deu o emprego, a casa, o carro, foi ele e não a assistência médica  que o salvou da doença. O homem deixa de ser responsável por si e pelo mundo, pelo que faz e deixa de fazer: o ser é marioneta dos desígnios divinos.  A dor, a miséria, os males que o assolam, tudo o que de indesejável e ruim  que se abate sobre o ser humano (sempre em dívida porque é um pecador), tudo  o que penaliza o mundo, como as tragédias, é obra do diabo. A arma do bom cristão, cujo dever é oferecer a outra face à ofensa,  não pode ser a revolta. Cumpre-lhe resignar-se diante dos desígnios de Deus e preparar-se para a salvação. Orando e doando parte de seu salário para a poupança do pastor.

Ao fim e ao cabo, nossos teóricos e nossos práticos não encontram explicações para o avanço do pensamento e da ação da extrema-direita, que conquista os corações e as mentes dos desvalidos, dos excluídos, dos explorados pelo capital, dos desassistidos pelo Estado de classe, ou seja, conquistam a alma de suas vítimas.

Dir-se-á que a crise não é especificidade nossa, posto que muito do afirmado pode ser referido ao panorama internacional, no que diz respeito ao avanço da extrema-direita protofascista. A crise na matriz, pois a extrema direita caminha com botas de sete léguas nos EUA,  se reproduz na periferia, graças ao denodado esforço de nossa classe dominante.

O mundo contemporâneo lembra (atenção: lembra, mas não repete) os tensos anos 30 do século passado, com um diferencial: enquanto  hoje,   entre nós, a apatia — doutrinária, organizacional e política – domina a esquerda orgânica – na Europa de então a resposta à bota fascista foi  a intensificação  da luta de classes, e, com ela, o revigoramento da batalha ideológica. A  expectativa de construção de uma nova sociedade  estava na raiz da resistência política e armada a Mussolini e Hitler. O enfrentamento fortaleceu os fundamentos  teóricos e doutrinarios da esquerda, a ascensão dos partidos ligados aos interesses da classe operária. A organização popular seria uma consequência, sobrevivendo às violentas formas de repressão.

Em Pele negra, máscaras brancas (1952), Franz Fanon observa a internalização, pelo colonizado, da ideologia do colonizador. Esse fenômeno, porém,  se observa igualmenteno plano das instituições.  Refiro-me especificamente a partidos de esquerda, que, ingressando na institucionalidade,  ao invés de intentar alterá-la, terminaram por absorver seu caráter, de que resultou um mundo de desvios ideológicos que, como sempre, transitaram da teoria para a prática. Um desses efeitos é a contaminação, do pensamento originalmente de esquerda,  com formulações liberais, a incorporação, como suas, de teses e conceitos construídos exatamente para preservar a ordem que os socialistas pretendem demolir. Assim a esquerda, que já se fizera reformista, é condenada a transformar-se em esquerda sem política.

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Placar hediondo – A história desconhece uma só guerra (se assim podemos batizar o ataque de uma só  força) em que 80% do país tenha sido destruído, 100% da população deslocada e que 50% das mortes sejam crianças. Netanyahu e Biden alcançaram o hediondo placar de 40 mil mortos. Como Truman, Reagan, Nixon, o Bush filho, Madeleine Albright,  Kissinger e outros criminosos de guerra,  certamente morrerão impunes.

Ainda a consagração post-mortem do ministro da ditadura – É compreensível que o presidente Lula lamente a morte de um interlocutor assíduo, com quem chegou a estabelecer  laços de amizade; é admissível seu  reconhecimento nesse interlocutor – representante de vida inteira dos interesses das oligarquias brasileiras – um economista acima da média. Porém, equiparar Antônio Delfim Netto a Maria da Conceição Tavares, — nossa última grande e penosa  perda–,  extrapola qualquer limite de bom senso.   Além de  constituir  ofensa descabida,  trata-se  de desserviço, do ponto de vista pedagógico, que uma liderança como Lula não pode se permitir. Comparar Delfim — prócer de um “milagre” consabidamente falso e pernicioso para os interesses nacionais, defensor   do homicida AI-5, que assinou — a uma lutadora como Conceição,  é um desrespeito a quantos sofreram com o arbítrio.  Como o próprio Lula.


* Com a colaboração de Pedro Amaral