Roberto Amaral*
“No Brasil não se organiza exército contra o estrangeiro; desenvolvem-se as instituições militares contra a ordem civil”.
Rui Barbosa. Discursos parlamentares
Rui Barbosa. Discursos parlamentares
Advertindo-nos sobre o desfecho previsível, embora indesejável, da crise político-estratégica que divide o mundo — de forma mais aguda do que aquela dos anos da Guerra-fria –, o historiador e cientista político Manuel Domingos Neto (O que fazer com o militar) lembrava, recentemente, em palestra no Instituto Brasileiro de Estudos Políticos-IBEP, a inexistência de registro histórico de desfecho de conflito hegemônico, como o que vivemos presentemente, fora do duelo militar. É suficiente percorrer o currículo do Ocidente, nosso espaço cultural, desde quando se fez conhecer como civilização em busca do mando. A última lição vem das duas disputas do século passado, determinando duas guerras que se prorrogaram, chegando aos dias presentes mediante formas as mais variadas, mantida, porém, a essência: o embate pela hegemonia. Porque, desde sempre, é a força que dita o domínio. Na paz e na guerra.
Em 1945, vencida a chamada segunda guerra mundial pelos “Aliados”, as bombas jogadas contra o Japão (70 mil civis mortos) eram, do ponto de vista exclusivamente militar, absolutamente desnecessárias e, do ponto de vista humano — portanto do ponto de vista ético, segundo uma suposta ética ocidental, própria, nossa –, uma imoralidade, ademais de um crime monstruoso. Politicamente, porém, o genocídio pareceu necessário aos EUA, empenhados em demarcar o território sobre o qual passaria a exercer seu projeto de senhor do mundo, na busca de realização de seu alegado “destino manifesto”, impondo seus valores específicos a todo o mundo, por variados instrumentos, com realce para o fuzil. Os cruzados da contemporaneidade estavam voltados ao desafio (visto como imperativo) de estabelecer limites políticos e espaciais ao inimigo que sua visão de mundo elegera. Little Boy e Fat Man, as bombas de 6 e 9 de agosto de 1945, antes de Hiroshima e Nagasaki, miravam Moscou, ao tempo em que estabeleciam um novo conceito de guerra, ao qual o restante do mundo, inclusive a União Soviética, a arqui-inimiga, haveriam de se adaptar.
As bombas sobre as populações civis do Japão não apenas apressaram por uns poucos dias a rendição de um Império de joelhos (as tropas soviéticas já se haviam instalado em Berlim), como alteraram substancialmente a estratégia da guerra, ao tempo em que, igualmente, determinavam a logística de seu adversário: a URSS de então, acossada, ingressou na corrida pela bomba atômica. Era a alternativa, para sobreviver diante do inimigo luciferino. Para muitos analistas de hoje a expectativa do armagedon, anunciada pela ameaça atômica, evitou, ou mais precisamente adiado, a terceira guerra mundial, esta que já se trava, como as que se sucederam à vitória dos aliados: mediante terceiras forças, subsidiadas, assistidas, financiadas. As guerras contra os palestinos e a invasão da Ucrânia, põem nas mesmas posições tático-políticas os exércitos que lutaram na Coréia e no Vietnam, como na China, cuja revolução maoísta foi decisivamente apoiada pela URSS. Este apoio, porém, não seria suficiente para evitar as difíceis relações entre a China de Mao e a URSS, acusada de imperialismo pela vizinha, o que valeu a associação dos chineses ao Pentágono em projeto de desestabilização da URSS (v. Sobre a China, Henry Kissinger).
Os blocos políticos eram, assim, necessariamente blocos de guerra, e jamais politica e guerra estiveram tão atadas. A Conferência de Ialta (1945), quando Churchill, Roosevelt e Stálin, nessa altura já não tão aliados, redesenharam o mundo seguindo as rotas traçadas pelas suas tropas, teria atrás de si a inauguração, pelos EUA, da era nuclear.
Ainda não haviam se dissipado os cogumelos atômicos, e ao mundo era apresentada uma nova realidade geopolítica, imperativa. Para além dos conflitantes notórios, os líderes dos dois polos administravam em consórcio o projeto estratégico, que ficou mais claro com o ingresso da URSS no clube atômico (1949), quebrando o monopólio dos EUA. Os dois países se fazem por muito tempo os xerifes da nova ordem, na qual deveriam ser respeitados os respectivos projetos de expansão, condicionados por um pacto: as duas potências, sem renunciarem à disputa acirrada, evitariam o conflito direto e reconheceriam as áreas de controle de cada um. Esse entendimento foi posto às claras quando da invasão, da Hungria (1956) pela URSS da Thecoslováquia (1968). Entramos na fase da guerra fria sob condições ditadas pela corrida nuclear, presente ainda hoje, apesar da autodissolução da URSS e sua renúncia ao experimento comunista.
O adversário dos EUA, hoje, e talvez definitivo, é a Eurásia, onde pontificam a potência chinesa e o arsenal nuclear da Rússia.
Mas essas não foram as únicas guerras, digamos guerras regionais ou localizadas ou terceirizadas, nas quais os interesses dos EUA e da URSS eram defendidos por outras formas. O confronto era a opção mais radical, a que se valeu seguidamente o Pentágono, complementando a intervenção nos embates puramente políticos que assolaram — com ditaduras pró-americanas e golpes de Estado contra governos esquerdistas ou simplesmente democráticos todo o mundo –, mas especialmente na Ásia, no continente africano, e na América Latina. No Brasil, principalmente após 1945 com o retorno dos oficiais que estagiaram com as tropas americanas no final da segunda guerra mundial.
A característica nodal da segunda metade do século é essa: o intervencionismo acompanhando as guerras por procuração. Ainda é a fase de hoje, embora cada vez mais se distanciando do conceito estrito de Guerra Fria.
Onde houvesse qualquer sinal de emergência de algo que sugerisse um movimento comunista, seja nos limites do processo político institucional, seja já no campo do conflito armado, os EUA se faziam presentes, para seu combate, e essa era, ipsis litteris, a lógica de enfrentamento da URSS, o apoio às insurgências de esquerda e aos movimentos de libertação nacional.
Assim seguia a história, repetindo quase sempre o mesmo enredo com os EUA frequentando com suas tropas o teatro da guerra, que a URSS, até o desastre do Afeganistão, procurava evitar. Exemplar é o permanente choque entre os povos árabes, apoiados pela URSS e agora pela Rússia, e o governo sionista de Tel Aviv, com poderosas forças armadas e avançada indústria bélica e armamentos fornecidos pelos EUA e a OTAN, fez-se, a um tempo, protetorado dos EUA e seu posto avançado no Oriente Médio, onde prossegue o conflito que vem da segunda metade do século passado, na sequência do esquartejamento imposto pela Inglaterra, nas pegadas da primeira guerra mundial e do colapso do Império Otomano. Certamente era a tudo isso que se referia o secretário-geral da ONU, António Guterres, ao lembrar, no Conselho de Segurança, que o ataque do Hamas a Israel deveria ser considerado numa visão histórica, irritando como vimos o sionismo.
O conflito segue no Oriente, de onde jamais se afastou, e se instala na Europa, emprestando sua marca ao novo século.
A delimitação dos campos prossegue. É assim que se preparam as grandes guerras, pois nenhuma é improvisada. O mundo assistiu, sem dar-se conta do que via, ou fingindo não ver a realidade para melhor conviver com ela, o rearmamentismo da Alemanha, como estamos vendo, hoje, a arquitetura de um amanhã que não nos pode atrair. Para a humanidade seria de bom proveito conhecer a alteração de objeto e sujeito da guerra fria contemporânea, desde o suicídio da URSS, a ascensão da China e a crise do capitalismo de nossos dias, posta a nu principalmente com a crise sistêmica deflagrada em 2008 com a debacle financeira dos EUA que atingiu todo o mundo. Esses movimentos se conjugam, pois correm, em paralelo às dificuldades dos EUA, com o crescimento continuado da China. Os novos tempos impuseram uma nova guerra fria, esta de hoje. Não há mais por que falar em defesa da democracia, nem em ameaças do comunismo, posto que o conflito, a rigor, é intercapitalista e seu objeto vem das calendas gregas: a disputa da hegemonia econômica e politica que depende da hegemonia militar. Como toda grande guerra, a que se aproxima não chega pronta. Sua infantaria é, como sempre, a batalha ideológica abrindo a trilha para os primeiros choques de interesses, os bloqueios de toda a ordem, até os primeiros conflitos, que são sempre operados por outras forças. Refiro-me às guerras ou conflitos por procuração. Nas estepes russas e ucranianas não há hoje combatentes nem chineses nem norte-americanos, embora os EUA, liderando a OTAN, participem intensamente do conflito, tanto quanto estão decisivamente presentes em Israel, e, portanto, em Gaza.
A segunda guerra mundial tem-se como iniciada em setembro de 1939, com a falsa surpresa da Inglaterra diante da invasão da Polônia, escancaradamente anunciada pela Alemanha, com reiteradas ações de beligerância, além de discursos grandiloquentes diante de massas hipnotizadas: em1936 a remilitarização da Renânia; em 1938 a anexação da Áustria; ainda em 1938 a anexação dos Sudetos da Tchecoslováquia e, em março, a ocupação do que sobrara daquele país. Nada obstante tanta clareza, o primeiro ministro inglês, Arthur Neville Chamberlain, em setembro desse assustador 1938, regressa da “Conferência de Munique”, onde negocia com Mussolini e Hitler, proclamando que havia alcançado “a paz para o nosso tempo”. E é mantido no cargo até 1940! Os EUA — acossados pelo ataque nipônico a Pearl Hambourg (1941) — só entrariam no teatro da guerra em abril de 1942, com um bombardeio de efeito psicológico e poucos danos materiais sobre Tóquio.
Hoje, o que desponta no horizonte a olho nu é o conflito entre um Ocidente em crise contínua (crise política com o avanço da direita e a extrema-direita, e crise econômica crônica, mas ainda fortíssimo no plano militar, pois sua cabeça está em Washington) e uma Eurásia liderada por uma China em permanente crescimento, tendo à sua ilharga o paiol atômico da Rússia. Por sem dúvida, a realidade não se conforma com o congelamento e todos sabemos que o processo histórico é um composto de variáveis, muitas imprevisíveis. Mas consideremos o que os números podem sugerir.
Nos últimos 10 anos, o crescimento médio do PIB dos EUA ficou em torno de 1,5% e 2,5% ao ano. No mesmo período, a China apresentou um crescimento médio do PIB entre 6% e 7% ao ano. A tradução dominante desses números é que que a China vem, há anos, apresentando indicadores de crescimento contínuo, candidatando-se a, na margem de 10 a 20 anos, superar os EUA como a maior economia do mundo. O imasse está exposto e muito depende de como se encaminhará o Pentágono: esperará o maior crescimento do adversário para então enfrenta-lo?
De uma forma ou de outra estará pressente a questão crucial da hegemonia, da qual nenhum líder, ou candidato a líder, pode abrir mão.
O que temos com isso? Tudo, porque, independentemente de nossa vontade, seremos afetados. O que nos resta, nas circunstâncias, é ter careza sobre nsss interesses, e nos prepararmos para sua defesa.
Somos o maior país da América do Sul, a noma economia e a sétima população do mundo, a maior da AL. Somos grandes importadores de manufaturados, e produtores e exportardes de alimentos e commodities. Precisamos ter conscência de que não somos parte na disputa hegemônica, e zelar pela nossa autonomia. Para tanto, porém, carecemos de uma politica nacional de soberania, um projeto claro de país que fale à sua população e não só à Faria Lima, e, principalmente, carecemos de forças armadas bem treinadas, bem aparelhadas, com o máximo de nacionalização de seus equipamentos, e, mais do que tudo, apartadas dos interesses hegemônicos em jogo.
Precisamos, pois, discutir de que forças precisamos para assegurar nossa soberania à margem do jogo das grandes potências e blocos. Um sistema no qual o poder civil não seja, como hoje e em toda a historia republicana, manietado pelo fuzil. Como conditio sine qua non para a afirmação de nossa soberania – e retorno ao professor Manuel Domingos –, precisamos “de uma nova Defesa, que revise o papel, a organização e a cultura das Forças Armadas”.
Finalmente, precisamos, passado mais de um século, dar uma resposta repubicana à denúncia de Rui Barbosa, tristemente atual.
Em 1945, vencida a chamada segunda guerra mundial pelos “Aliados”, as bombas jogadas contra o Japão (70 mil civis mortos) eram, do ponto de vista exclusivamente militar, absolutamente desnecessárias e, do ponto de vista humano — portanto do ponto de vista ético, segundo uma suposta ética ocidental, própria, nossa –, uma imoralidade, ademais de um crime monstruoso. Politicamente, porém, o genocídio pareceu necessário aos EUA, empenhados em demarcar o território sobre o qual passaria a exercer seu projeto de senhor do mundo, na busca de realização de seu alegado “destino manifesto”, impondo seus valores específicos a todo o mundo, por variados instrumentos, com realce para o fuzil. Os cruzados da contemporaneidade estavam voltados ao desafio (visto como imperativo) de estabelecer limites políticos e espaciais ao inimigo que sua visão de mundo elegera. Little Boy e Fat Man, as bombas de 6 e 9 de agosto de 1945, antes de Hiroshima e Nagasaki, miravam Moscou, ao tempo em que estabeleciam um novo conceito de guerra, ao qual o restante do mundo, inclusive a União Soviética, a arqui-inimiga, haveriam de se adaptar.
As bombas sobre as populações civis do Japão não apenas apressaram por uns poucos dias a rendição de um Império de joelhos (as tropas soviéticas já se haviam instalado em Berlim), como alteraram substancialmente a estratégia da guerra, ao tempo em que, igualmente, determinavam a logística de seu adversário: a URSS de então, acossada, ingressou na corrida pela bomba atômica. Era a alternativa, para sobreviver diante do inimigo luciferino. Para muitos analistas de hoje a expectativa do armagedon, anunciada pela ameaça atômica, evitou, ou mais precisamente adiado, a terceira guerra mundial, esta que já se trava, como as que se sucederam à vitória dos aliados: mediante terceiras forças, subsidiadas, assistidas, financiadas. As guerras contra os palestinos e a invasão da Ucrânia, põem nas mesmas posições tático-políticas os exércitos que lutaram na Coréia e no Vietnam, como na China, cuja revolução maoísta foi decisivamente apoiada pela URSS. Este apoio, porém, não seria suficiente para evitar as difíceis relações entre a China de Mao e a URSS, acusada de imperialismo pela vizinha, o que valeu a associação dos chineses ao Pentágono em projeto de desestabilização da URSS (v. Sobre a China, Henry Kissinger).
Os blocos políticos eram, assim, necessariamente blocos de guerra, e jamais politica e guerra estiveram tão atadas. A Conferência de Ialta (1945), quando Churchill, Roosevelt e Stálin, nessa altura já não tão aliados, redesenharam o mundo seguindo as rotas traçadas pelas suas tropas, teria atrás de si a inauguração, pelos EUA, da era nuclear.
Ainda não haviam se dissipado os cogumelos atômicos, e ao mundo era apresentada uma nova realidade geopolítica, imperativa. Para além dos conflitantes notórios, os líderes dos dois polos administravam em consórcio o projeto estratégico, que ficou mais claro com o ingresso da URSS no clube atômico (1949), quebrando o monopólio dos EUA. Os dois países se fazem por muito tempo os xerifes da nova ordem, na qual deveriam ser respeitados os respectivos projetos de expansão, condicionados por um pacto: as duas potências, sem renunciarem à disputa acirrada, evitariam o conflito direto e reconheceriam as áreas de controle de cada um. Esse entendimento foi posto às claras quando da invasão, da Hungria (1956) pela URSS da Thecoslováquia (1968). Entramos na fase da guerra fria sob condições ditadas pela corrida nuclear, presente ainda hoje, apesar da autodissolução da URSS e sua renúncia ao experimento comunista.
O adversário dos EUA, hoje, e talvez definitivo, é a Eurásia, onde pontificam a potência chinesa e o arsenal nuclear da Rússia.
Mas essas não foram as únicas guerras, digamos guerras regionais ou localizadas ou terceirizadas, nas quais os interesses dos EUA e da URSS eram defendidos por outras formas. O confronto era a opção mais radical, a que se valeu seguidamente o Pentágono, complementando a intervenção nos embates puramente políticos que assolaram — com ditaduras pró-americanas e golpes de Estado contra governos esquerdistas ou simplesmente democráticos todo o mundo –, mas especialmente na Ásia, no continente africano, e na América Latina. No Brasil, principalmente após 1945 com o retorno dos oficiais que estagiaram com as tropas americanas no final da segunda guerra mundial.
A característica nodal da segunda metade do século é essa: o intervencionismo acompanhando as guerras por procuração. Ainda é a fase de hoje, embora cada vez mais se distanciando do conceito estrito de Guerra Fria.
Onde houvesse qualquer sinal de emergência de algo que sugerisse um movimento comunista, seja nos limites do processo político institucional, seja já no campo do conflito armado, os EUA se faziam presentes, para seu combate, e essa era, ipsis litteris, a lógica de enfrentamento da URSS, o apoio às insurgências de esquerda e aos movimentos de libertação nacional.
Assim seguia a história, repetindo quase sempre o mesmo enredo com os EUA frequentando com suas tropas o teatro da guerra, que a URSS, até o desastre do Afeganistão, procurava evitar. Exemplar é o permanente choque entre os povos árabes, apoiados pela URSS e agora pela Rússia, e o governo sionista de Tel Aviv, com poderosas forças armadas e avançada indústria bélica e armamentos fornecidos pelos EUA e a OTAN, fez-se, a um tempo, protetorado dos EUA e seu posto avançado no Oriente Médio, onde prossegue o conflito que vem da segunda metade do século passado, na sequência do esquartejamento imposto pela Inglaterra, nas pegadas da primeira guerra mundial e do colapso do Império Otomano. Certamente era a tudo isso que se referia o secretário-geral da ONU, António Guterres, ao lembrar, no Conselho de Segurança, que o ataque do Hamas a Israel deveria ser considerado numa visão histórica, irritando como vimos o sionismo.
O conflito segue no Oriente, de onde jamais se afastou, e se instala na Europa, emprestando sua marca ao novo século.
A delimitação dos campos prossegue. É assim que se preparam as grandes guerras, pois nenhuma é improvisada. O mundo assistiu, sem dar-se conta do que via, ou fingindo não ver a realidade para melhor conviver com ela, o rearmamentismo da Alemanha, como estamos vendo, hoje, a arquitetura de um amanhã que não nos pode atrair. Para a humanidade seria de bom proveito conhecer a alteração de objeto e sujeito da guerra fria contemporânea, desde o suicídio da URSS, a ascensão da China e a crise do capitalismo de nossos dias, posta a nu principalmente com a crise sistêmica deflagrada em 2008 com a debacle financeira dos EUA que atingiu todo o mundo. Esses movimentos se conjugam, pois correm, em paralelo às dificuldades dos EUA, com o crescimento continuado da China. Os novos tempos impuseram uma nova guerra fria, esta de hoje. Não há mais por que falar em defesa da democracia, nem em ameaças do comunismo, posto que o conflito, a rigor, é intercapitalista e seu objeto vem das calendas gregas: a disputa da hegemonia econômica e politica que depende da hegemonia militar. Como toda grande guerra, a que se aproxima não chega pronta. Sua infantaria é, como sempre, a batalha ideológica abrindo a trilha para os primeiros choques de interesses, os bloqueios de toda a ordem, até os primeiros conflitos, que são sempre operados por outras forças. Refiro-me às guerras ou conflitos por procuração. Nas estepes russas e ucranianas não há hoje combatentes nem chineses nem norte-americanos, embora os EUA, liderando a OTAN, participem intensamente do conflito, tanto quanto estão decisivamente presentes em Israel, e, portanto, em Gaza.
A segunda guerra mundial tem-se como iniciada em setembro de 1939, com a falsa surpresa da Inglaterra diante da invasão da Polônia, escancaradamente anunciada pela Alemanha, com reiteradas ações de beligerância, além de discursos grandiloquentes diante de massas hipnotizadas: em1936 a remilitarização da Renânia; em 1938 a anexação da Áustria; ainda em 1938 a anexação dos Sudetos da Tchecoslováquia e, em março, a ocupação do que sobrara daquele país. Nada obstante tanta clareza, o primeiro ministro inglês, Arthur Neville Chamberlain, em setembro desse assustador 1938, regressa da “Conferência de Munique”, onde negocia com Mussolini e Hitler, proclamando que havia alcançado “a paz para o nosso tempo”. E é mantido no cargo até 1940! Os EUA — acossados pelo ataque nipônico a Pearl Hambourg (1941) — só entrariam no teatro da guerra em abril de 1942, com um bombardeio de efeito psicológico e poucos danos materiais sobre Tóquio.
Hoje, o que desponta no horizonte a olho nu é o conflito entre um Ocidente em crise contínua (crise política com o avanço da direita e a extrema-direita, e crise econômica crônica, mas ainda fortíssimo no plano militar, pois sua cabeça está em Washington) e uma Eurásia liderada por uma China em permanente crescimento, tendo à sua ilharga o paiol atômico da Rússia. Por sem dúvida, a realidade não se conforma com o congelamento e todos sabemos que o processo histórico é um composto de variáveis, muitas imprevisíveis. Mas consideremos o que os números podem sugerir.
Nos últimos 10 anos, o crescimento médio do PIB dos EUA ficou em torno de 1,5% e 2,5% ao ano. No mesmo período, a China apresentou um crescimento médio do PIB entre 6% e 7% ao ano. A tradução dominante desses números é que que a China vem, há anos, apresentando indicadores de crescimento contínuo, candidatando-se a, na margem de 10 a 20 anos, superar os EUA como a maior economia do mundo. O imasse está exposto e muito depende de como se encaminhará o Pentágono: esperará o maior crescimento do adversário para então enfrenta-lo?
De uma forma ou de outra estará pressente a questão crucial da hegemonia, da qual nenhum líder, ou candidato a líder, pode abrir mão.
O que temos com isso? Tudo, porque, independentemente de nossa vontade, seremos afetados. O que nos resta, nas circunstâncias, é ter careza sobre nsss interesses, e nos prepararmos para sua defesa.
Somos o maior país da América do Sul, a noma economia e a sétima população do mundo, a maior da AL. Somos grandes importadores de manufaturados, e produtores e exportardes de alimentos e commodities. Precisamos ter conscência de que não somos parte na disputa hegemônica, e zelar pela nossa autonomia. Para tanto, porém, carecemos de uma politica nacional de soberania, um projeto claro de país que fale à sua população e não só à Faria Lima, e, principalmente, carecemos de forças armadas bem treinadas, bem aparelhadas, com o máximo de nacionalização de seus equipamentos, e, mais do que tudo, apartadas dos interesses hegemônicos em jogo.
Precisamos, pois, discutir de que forças precisamos para assegurar nossa soberania à margem do jogo das grandes potências e blocos. Um sistema no qual o poder civil não seja, como hoje e em toda a historia republicana, manietado pelo fuzil. Como conditio sine qua non para a afirmação de nossa soberania – e retorno ao professor Manuel Domingos –, precisamos “de uma nova Defesa, que revise o papel, a organização e a cultura das Forças Armadas”.
Finalmente, precisamos, passado mais de um século, dar uma resposta repubicana à denúncia de Rui Barbosa, tristemente atual.