Prefácio
Roberto Amaral[1]
Passados cinco séculos de processo civilizatório – da exploração do pau-brasil ao capitalismo rentista, que, na pobreza do país, faz a festa do sistema financeiro globalizado –, passados 200 anos da descolonização (nada obstante a dependência econômico-política que chega aos nossos dias), e após 133 anos, completados em novembro de 2022, de experiência republicana, sem republicanismo e quase sempre sem povo, somos, na imperecível gravura de Darcy Ribeiro, “um país por ser”: a permanente expectativa de um futuro que teima em não chegar, traída a nação pela sua classe dominante, a mesma de sempre, aquela que nasce com os latifundiários da casa-grande colonial e os armadores de navios negreiros para instalar-se hoje na FIESP e na avenida Faria Lima: uma burguesia sem pioneiros, herdeira da lavoura de exportação sustentada pelo braço escravo de africanos e semiescravo de nordestinos e emigrantes sobre explorados; uma “elite” alienada e alienígena, presa, econômica e ideologicamente, aos projetos de dominação das metrópoles; uma elite que pode dizer: “o país vai mal, mas meus negócios vão bem”.
Entender o presente é o desafio que se coloca para a esquerda brasileira.
Como explicar nosso fracasso em construir uma sociedade fraterna em uma das mais ricas e belas províncias do mundo? Como explicar nossa história presente, pautada pela emergência de uma extrema-direita com raízes populares, em condições de fraturar o processo democrático-institucional, sustentado até aqui aos trancos e barrancos, ao preço de tanta dor? Como explicar a resistência política e social à abolição (quase 400 anos de exploração do braço africano)? Nosso país ostenta o miserável título de último bastião escravocrata das Américas, para ao fim do regime condenar suas vítimas ao desamparo e à fome. No segundo decênio do terceiro milênio somos o segundo país mais desigual do mundo.
Como explicar, ainda hoje, a vitória do latifúndio sobre a reforma agrária – um projeto capitalista levado a cabo pelas nações hoje desenvolvidas há algo como dois séculos? Nada mais indicativo do atraso e do reacionarismo de nossa classe dominante. Senão, vejamos: em 1823, em nossa primeira Constituinte, José Bonifácio (o patriarca da Independência, que desejava formar o Reino Unido Portugal-Brasil e Algarves) apresentou um projeto de reforma agrária e abolição gradativa da escravidão; em 1964, a defesa da reforma agrária pelo presidente João Goulart foi uma das razões aventadas pelos militares para sua deposição; na segunda década do terceiro milênio os camponeses do MST (que lutam por terra para nela produzir) são criminalizados pelo aparelho repressor, e os indígenas são assassinados ou expulsos de suas terras por grileiros e garimpeiros , ou simplesmente condenados ao desaparecimento, pela fome, pelas doenças levadas propositalmente pelo branco. O calculado, planejado e lentamente executado genocídio dos ianomâmis é apenas um indicador da degenerescência de nossa civilização.
Como explicar quase 70 anos de apego nacional a um monarquismo nascido arcaico, e a resistência ao republicanismo, a persistência do poder da terra, das oligarquias, do mandonismo, da segregação de classe, do racismo estrutural e da concentração de renda, da pobreza nos níveis de miserabilidade que dão o quadro das grandes cidades brasileiras, a começar por São Paulo e Rio de Janeiro? Pobreza que se naturaliza, como se naturalizam a opressão de classe, o desemprego, a fome (em país que é o terceiro exportador mundial de alimentos), e, até!, o genocídio. Não apenas o genocídio contra as nações indígenas, mas o genocídio naturalizado que Estado e sociedade praticam diariamente contra suas populações pobres, pobres porque majoritariamente negras.
Como explicar a preeminência do agrarismo exportador? Na colônia e no império, dependíamos da exportação de de açúcar, de algodão, ouro e prata e café em grão; chegamos mesmo a exportar indígenas apresados pelos bandeirantes, pioneiros no assassinato em massa dos nossos povos nativos. Em pleno capitalismo pós-industrial-monopolista somos exportadores de grãos, carne e minérios in natura, que reimportamos, por exemplo da China, na forma de trilhos.
Como explicar uma República, esta que sobrevive a ditaduras (como as de 1937-1945 e 1964-1985) e golpes de estado militares sem conta desde 1889, e a putsches (fascistas como o de 1938 e o de janeiro de 2023) descartada dos princípios básicos do republicanismo, privatizada pelo grande capital?
Desamparada do apelo popular, que a desconheceu, porque nasceu de um golpe militar, a República, nesses seus primeiros e dramáticos 134 anos de existência, viveria a curatela da caserna, independentemente do caráter e origem do governo. O agônico momento de hoje não é uma especificidade em leque de experiências autoritárias que conhece ainda golpes de estado e ditaduras militares. A desmilitarização da República, sem a qual ela não sobreviverá e não alcançaremos a democracia, não é tarefa de um governo, mesmo consagrado pelas urnas; precisa ser projeto do clamor nacional, que precisa reunir forças para dizer de que forças armadas carece.
Como explicar que, a esta altura do caminhar da humanidade, o projeto da classe dominante brasileira seja uma “paz” que exclui a justiça social e admite renunciar à soberania? Como explicar que o mantra do “equilíbrio fiscal” seja reclamado como prioridade sobre o desenvolvimento, que gera emprego e renda e é o único antídoto conhecido no capitalismo contra o desemprego e a fome? Como explicar a ausência de um projeto nacional para além dos interesses da classe dominante?
Segundo o professor Lincoln de Abreu Penna neste seu oportuníssimo Qual república queremos? vamos encontrar as razões desse desarranjo – político, econômico e social – em nossa formação social, consabidamente dominada pelo escravismo, pelo patrimonialismo, pelo autoritarismo, e em nossa incapacidade histórica de remover o legado escravocrata que em muitos aspectos condiciona o racismo estrutural e a prática da conciliação de classes, de que resultou o que somos: uma grande periferia na periferia do capitalismo.
Se passado explica o presente e os mortos reinam entre os vivos, nossa tragédia é fruto da traição de suas classes dominantes, herdeiras da casa-grande, desde o traficante de africanos escravizados aos bilionários da avenida Faria Lima. O que poderia ser uma grande potência econômica (apta portanto ao desenvolvimento social) é um projeto de dependência fundado na subordinação política e estratégica nacional (subordinação, portanto, das atuais forças armadas do estado brasileiro) à lógica econômico-militar dos EUA, como já fomos da Inglaterra, como já fomos de Portugal.
Se estamos diante do legado de um passado que se faz tão atual, é preciso estudá-lo. Conhecer as raízes de nossa formação para compreender o presente, estudar o passado para impedir sua sobrevivência no presente, e assim abrir caminho para a construção de um novo pacto social de que poderá resultar uma sociedade fundada na democracia, na participação popular na construção dos destinos da nação, e, finalmente, e no socialismo – cuja defesa, por sinal, foi esquecida pela esquerda brasileira organizada. Daí o fim dos projetos revolucionários, a vitória de um reformismo cada vez mais bem comportado, os receios diante das possibilidades de ruptura, o desaparecimento dos partidos revolucionários, subsumidos pela institucionalização acrítica e por um eleitoralismo que assimilou as táticas e as práticas do conservadorismo. Por fim, o que deveria ser instrumento de conquista do poder, a via revolucionária pacífica, se transforma no próprio fim. Fenômeno que, lembra Lincoln, remonta à Guerra Fria e à opção prioritária comunista pela luta anti-imperialista, de que resultou o abandono da denúncia do capitalismo e da sociedade fundada na exploração de classe, e, ao fim e ao cabo, o abandono da defesa do socialismo. A consequência de tanto desvio ideológico seria a invenção, entre nós, de uma burguesia nacionalista à qual os comunistas ofereceriam aliança, de resto rejeitada. O que temos é uma burguesia simplesmente aqui instalada, e não necessariamente aqui vivente, ideológica e economicamente vinculada com os interesses econômicos, políticos e geopolíticos do grande capital.
A renúncia à batalha ideológica chega aos nossos dias, com as consequências consabidas. O pleito da revolução tout court transitou para o reformismo, a esquerda transitou para a socialdemocracia, que transitou para o centro, que transitou para a direita, que transitou para a extrema-direita que adota o fascismo. A crise brasileira reproduz com suas próprias explicações a crise da esquerda ocidental, pontuada pela decadência dos partidos de esquerda tradicionais (como exemplificam os desastres do Partido Comunista Italiano e do Partido Comunista Francês), a crise geral da socialdemocracia europeia, a vitória da extrema-direita na Itália e, em aliança com a direita, na Suécia, após o surto trumpista nos EUA.
A crise estrutural dos partidos comunistas e de esquerda de um modo geral foi uma das muitas consequências, no Brasil e no mundo homogeneizado pelo ditado tático-ideológico do PCUS, da paralisia do pensamento e da teoria revolucionária, estancando a ação.
Se não há reflexão, não há possibilidade de interpretação do processo histórico; sem reflexão não há teoria, e sem teoria não há nada: não há tática, nem estratégia, nem ação.
O conhecimento da formação social brasileira, escreve Lincoln Penna, é, de substancial importância para desvelarmos as razões de todos os males que têm coexistido com nossa fragilíssima república, “uma solução das elites dominantes depois de abolida a escravidão”, operada pelo seu braço armado, a oficialidade do exército sediada na Corte: “Sua inautenticidade [da República] se explica pelos rumos traçados por quem sempre deteve o poder de mando, desde os tempos das feitorias do início da empresa mercantil que nos acomodou no império colonial português”.
Conseguimos, ao cabo de 500 anos, construir um país, estruturar um estado que hoje aspira à modernidade, ao preço de uma histórica marcada pela violência e extrema desigualdade social: do genocídio das populações originais, da escravidão dos negros, à miséria de um capitalismo concentrador de renda e produtor de pobreza. Se fizemos o país, “aos trancos barrancos”, fracassamos principalmente na construção de uma sociedade fraterna. Segue longe de nós a Roma sonhada por Darcy Ribeiro. (Rio, fevereiro de 2023)
[1] Roberto Amaral é professor, escritor e foi ministro de Estado da Ciência e Tecnologia no primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.