Roberto Amaral
A “gripezinha” já consumiu meio milhão de vidas brasileiras. O desemprego, até dezembro, é calculado em cifras avassaladoras. É inestimável o prejuízo decorrente da devastação ambiental em curso. Não se sabe quando a indústria manufatureira se recuperará. O Banco Central, temente da inflação, eleva a taxa Selic. A fome é o espectro que ronda a vida de milhões de brasileiros. Nada obstante, a estreita capa dos privilegiados permanece tranquila, como a personagem do conhecido poema de Bertolt Brecht (Intertexto), porque tem onde morar, pode trabalhar e garantir o sustento individual e familiar.
O general intendente (da ativa) impressiona a CPI do Senado pela insuperável capacidade de mentir, deixando atordoados mesmo parlamentares calejados. A Câmara dos Deputados curva-se ao mando do jagunço alagoano, espécime temporã do bagaço da cana, da lavoura estropiada lavrada pelos boias-frias, representante da usina falida pendurada nos empréstimos levantados no Banco Brasil para jamais serem pagos, pois para isso a oligarquia elege seus deputados. O STF, humilhado com a nomeação do primeiro Nunes Marques (outro ocupará a vaga do ministro Marco Aurélio, que se aposenta em junho), silencia quando a PF investiga a conduta do ministro Dias Toffoli, suspeito de prevaricação. O ministro do meio ambiente é acusado de traficar madeira da Amazônia, e o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis é objeto de inquérito pela Polícia Federal, por contrabando de madeira da floresta amazônica sob seus cuidados. O “Posto Ipiranga” faliu, por falta de combustível. Falta-lhe tudo, seja competência, caráter ou credibilidade. Logo mais será um estorvo. No Rio de Janeiro, o ainda presidente comanda uma choldra de motoqueiros e milicianos; o capitão paraquedista, em doce vilegiatura às custas do erário, promove comício eleitoral fora de época, ataca as instituições amesquinhadas e mente sobre a peste. Mente deslavadamente, com desfaçatez que faz corar as pedras do calçadão de Copacabana.
Os conservadores de sempre, no Império e na República ligados à economia agroexportadora, e sustentáculos de uma economia dependente; os social-democratas que votaram no capitão; os “liberais” que foram fazer turismo em Paris entre o primeiro e o segundo turnos de 2018 e os barões da imprensa repudiam tardiamente a figurinha que criaram e cevaram. Mas não têm uma só palavra de censura para a antipatriótica obra de desconstituição do Estado social e da economia do país. Reflexos ideológicos tardios do pensamento metropolitano, professam aqui os mandamentos de um neoliberalismo já revogado em suas raízes. Até no entreguismo nossa casa-grande é retardatária e reflexa.
Como preparando o passeio do capitão com seus motoqueiros, uma outra choldra, em Brasília, bem paga e bem resguardada, aprovava na madrugada do último dia 21 a “privatização” da Eletrobras, dando fim ao projeto brasileiro de autonomia em energia elétrica, negociata que mais empobrece o país quanto mais enriquece uns tantos e quantos “facilitadores”, os que ditam as “políticas” de governo, os que redigem editais, os que organizam os leilões, os que concertam os necessários acordos entre os licitantes, os que elaboram as mensagens e medidas provisórias que as maiorias de plantão na Câmara e no Senado farão aprovadas. Enfim, uma poderosa cadeia de interesses que entre seus muitos anéis tem o capital financeiro internacional e as multinacionais por ele controladas. Assim, atenta ao tráfico das comissões e dos gabinetes, surda para a sociedade, a Câmara dos Deputados dá início à privatização da maior empresa de energia da América Latina, uma holding, responsável pela geração e distribuição nacional de toda a energia elétrica que consumimos. Assim entregue à sanha da aliança entre o capital nacional alienado e a pujança espoliativa do capital internacional monopolista. Aliás, a Eletrobrás é um projeto do segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954), implantado por João Goulart e, cuidem disso os generais de hoje, aprofundado e consolidado pelos militares da ditadura.
Enquanto ainda nos deixamos assustar com as artimanhas circenses do “mito”, seus asseclas paisanos no Congresso desmontam o Estado: desfazem o pacto de 1988 que assegurou a democratização consentida e o texto progressista da “constituição cidadã”. Depois da liberação da privataria – transformados em bilhões de reais, os acervos públicos vendidos na bacia das almas liberam fortunas que circulam nos antros da traficância – já caminha, fatiada, a “reforma administrativa”, que é de fato uma reforma do Estado sem autorização constitucional ou debate público, visando exatamente a desconstituir sua capacidade de ordenação da sociedade, de geração de desenvolvimento e serviços estratégicos, ou essenciais como saúde, educação pública e energia elétrica nos confins de nosso vasto mundo de 8,5 milhões de quilômetros quadrados.
Esse Estado moderadamente social, porém, é dispensável, porque dele podem prescindir a burguesia e a pequena burguesia, que não carecem de justiça gratuita e muito menos imparcial, pois podem pagar os melhores advogados da praça e são seus filhos – delegados, promotores, procuradores e magistrados de todos os níveis – os juízes de seus pleitos; esse 1% de ricos brancos e assemelhados não precisa de transporte coletivo, nem de ensino público e gratuito, pois pode pagar a escola privada para seus filhos, não precisa de serviços de assistência medica gratuita, como o SUS, pois pode pagar os melhores planos de saúde do mercado e, quando necessário, correr para o Sírio e Libanês ou para o Einstein, ou qualquer outro hospital-hotel das grandes capitais. Não precisa de sistema previdenciário público, porque é sócio dos fundos de pensão. A classe dominante não precisa mesmo de preocupar-se com emprego em país de mais de 14 milhões de desempregados, pois vive de rendas, quando não pendurada nos altos cargos da república, aos quais só ascendem os bem nascidos. Aqueles que podem dizer: “Você sabe com quem está falando?”.
Os mais graves crimes do bolsonarismo, porém, ou foram cometidos por intermédio do poder legislativo, ou, pelo menos, dependeram de sua solidária participação.
As duas casas se vêm esmerando, desde 2016, na impatriótica tarefa de desfazer as esperanças de democracia social com que nosso país começou a sonhar com o projeto nacional-desenvolvimentista que remonta à era Vargas. Sob a régua de Michel Temer o Congresso aprovou a Emenda Constitucional nº 95/2016, que limitou os gastos públicos por 20 anos, e assim inviabilizou por décadas qualquer sorte de desenvolvimento nacional, e no início da regência do capitão, aprovou a Emenda Constitucional que cassou direitos previdenciários dos trabalhadores. Não há, pois, diferença entre uma legislatura e outra, senão o agravamento da decadência política. Neste sentido o congresso de hoje é particularmente especioso, despreparado e venal; nele, porém, ressalta a resistência de uma minguada e brava oposição diante do rolo compressor do situacionismo cevado com verbas públicas. Sob os protestos da oposição, a MP do Apagão (privatização da Eletrobras) foi aprovada na Câmara por 313 x 166 votos.
Na sequência do ataque à Eletrobras, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados abriu as porteiras para a tramitação e, por sem dúvida, aprovação, da chamada “PEC da rachadinha”, mediante a qual será destruído o serviço publico brasileiro, cujas bases, responsáveis em parte pela modernização do Estado brasileiro, remontam à criação do Departamento Administrativo do Serviço Público – DASP, em 1938. Entre os propósitos da reforma arcaizante estão o fim da estabilidade do servidor púbico concursado e a redução de salário com redução arbitrária de jornada. Obstinadamente, põe em risco o SUS, compromete a segurança pública, aumenta a letargia da justiça, prejudicando ainda mais os direitos dos pobres.
Nesse cenário catastrófico, somam-se os pedidos de impeachment do capitão. Os crimes que lhe são atribuídos, conhecidos de todo o povo, tipificam claramente as hipóteses de cassação de mandato estabelecidas pela Constituição. A fundamentação é justa, a proposição adequada. O erro está na eleição do destinatário, a presidência da Câmara dos Deputados (onde dormitam cerca de 170 outros pedidos), quando o tribunal apropriado é o da opinião pública. Sem as ruas ocupadas pelo povo – como até há pouco no Chile e ainda na Colômbia, como no ano passado nos EUA nas insurgências contra o racismo larvar de uma sociedade socialmente doente –, nenhum avanço político será possível. Sem o levante popular vencerá o statu quo, o governo da casa-grande, cujo interesse é deixar tudo como está para ver como é que fica, pois até agora não se sente ameaçada em seus privilégios. Se o delfim que pôs no planalto não a deixa de todo tranquila (e qual tranquilidade pode inspirar um sociopata?), a classe dominante ainda rejeita a perspectiva do retorno de um governo de centro-esquerda. A resistência é declaradamente grande na Faria Lima e entre os fardados engalanados. Para romper com o bloqueio e garantir a continuidade da mudança alcançada, só o povo, organizado e nas ruas.
O povo está onde sempre esteve. Faltam-lhe, porém, o aceno de um programa unificador (que aponte um rumo) e uma liderança capaz de conduzi-lo na travessia do Rubicão, em cujas margens estancou.
****
A direita festeja o desemprego – Um tal de Daniel Silva, consultor de uma tal de Novus Capital, festeja o desemprego, por contribuir para “manter a inflação de serviços bem ancorada e comportada, o que ajuda a compensar a alta dos bens industriais” (Valor26/5/2021).
Privataria – Preparando a privatização, o governo empreende a política de vender a preço de banana subsidiárias das estatais posta no index. Assim, doou por Cr$ 500 milhões o Complexo Eólico Campus Neutrais, que havia custado Cr$ 3,1 bilhões à Eletrobras.