Para atingir a autêntica democracia não basta derrubar a casa-grande, mas também o bolsonarismo, diz este mestre em Brasil

É como se eu estivesse sentado em um banco escolar quando Roberto Amaral, caríssimo amigo, explica o Brasil. “Bem, eu sou marxista – diz –,­ com o perdão da palavra. Acredito, portanto, no processo histórico, você pode atrasá-lo, mas não impedi-lo.” Ele é um quadro político de altíssimo nível, por isso mesmo de difícil inserção no cenário brasileiro. Como ministro de Ciência e Tecnologia do primeiro governo Lula, não durou mais que um ano. Tinha uma concepção de governo que não coincidia com a dos colegas. Mesmo assim, foi tempo bastante para introduzir várias mudanças que, felizmente, foram confirmadas pelos sucessores.

O ideal de Roberto Amaral é um governo de orientação social-democrática avançada, destinado à conquista da igualdade, sem a qual a democracia não subsiste. Óbvia a aspereza deste momento, com a presença de Bolsonaro a complicar a tragédia da pandemia. Mas há algo que transcende a personagem picaresca interpretada pelo ex-capitão. Infinitamente mais grave da figura caricata é o seu efeito, o bolsonarismo, que assume as feições do seu líder demente, mas representa a extrema-direita no poder, a corresponder com um país desde sempre sujeito ao autoritarismo.

“As eleições de 2022 – afirma – não me empolgam. Trariam benefício ao País se os partidos ditos de esquerda, até hoje desunidos, compreendessem que o fundamental é a denúncia do bolsonarismo para levar adiante uma discussão político-ideológica.” A solução estaria em um pacto capaz de usar as contradições burguesas para utilizar o palanque “e voltar a falar de algo esquecido desde 2002, o socialismo”. Teme Amaral que o bolsonarismo venha a sobreviver para além de Bolsonaro. Um segmento da população está sendo doutrinado política e ideologicamente para semear um sentimento que vai além daquele da casa-grande, de fato um sentimento reacionário, autoritário, sexista, racista, a refletir perfeitamente a nossa formação, em cima da escravidão negra e do genocídio dos indígenas. “São Paulo idolatra os bandeirantes criminosos, promotores da matança de índios e negros, esta é a nossa formação, esta lama, infelizmente, é o nosso chão.”

Deste ponto de vista, a fala de Roberto Amaral bate com a ideia desta revista, de que Bolsonaro e suas consequências caem como luva na fisionomia de um certo Brasil de inegável presença e encontra eco na posição de Guilherme Boulos e Luiza Erundina, candidatos à prefeitura de São Paulo, certos de que a união das esquerdas se recomenda na perspectiva de 2022. A conciliação com as elites que inspirou as políticas petistas enfeita o reino das quimeras. O futuro depende visceralmente tanto da superação da hegemonia da casa-grande quanto do repentino surgimento do bolsonarismo.

Há meses História do Presente – Conciliação, desigualdade e desafios, o livro de Roberto Amaral que tive a honra de prefaciar, está à nossa espera, se já não o lemos. Como prefaciador não passo de quem aprende com o prefaciado. 

Os principais tópicos de uma longa conversa entre amigos.

 

A EXPERIÊNCIA NO GOVERNO

Foi uma experiência completa, enriquecedora, de altos e baixos, de conflitos, muitos conflitos. Conflitos dentro do governo, conflitos dentro do meu partido, conflitos dentro do ministério. Eu tinha uma concepção de governo que não era a da média dos governistas. (…) Eu meti na cabeça que estava num governo de mudanças, e só pensei como ministro e nas mudanças. O que eu entendia como mudança é que éramos um governo de centro-esquerda, uma social-democracia mais avançada, mas, para grande parte do governo, o objetivo era a conciliação. Você pode mexer, pode nadar, contanto que não faça redemoinho. E eu fiz alguns redemoinhos. (…) Essa foi uma experiência muito boa, nós fizemos modificações sérias, que os ministros que me sucederam na equipe do presidente Lula confirmaram. Mas avançamos muito. Avançamos no CNPq, avançamos na política de bolsas, avançamos em uma questão essencial, que era a universalização do ensino e da pesquisa. (…) Nesse ponto também levei muita porrada da direita. Então, toda vez que tinha alguma dúvida se estava no caminho certo, a direita me dizia “você está no caminho certo porque você está errado. A direita me ajudou muito. Ela é minha bússola e se estou incomodando é porque estou cumprindo o meu papel.

 

PRÍNCIPE DOS CÍNICOS

FHC é um dos piores quadros… Eu quero explicar o seguinte, vou recomeçar a frase. Ele fez a transição da centro-esquerda para a direita, sabendo que a direita é uma merda, alguns fizeram isso inconscientemente, fizeram por erro, por incapacidade de reflexão, de interpretação do processo histórico. Ele não, ele fez conscientemente. Ele fez conhecendo o mecanismo capitalista, sabendo da casa-grande no Brasil, sabendo o que é o monopólio da informação, sabendo o que é o monopólio do sistema financeiro. (…) Houve outros que foram enganados, ou por interesse, ou por isso, por aquilo, mas ele fez por safadeza. Ele sabe que tudo que diz está errado. Ele tem consciência que age contra o país dele, mas que se há de fazer? São os nossos intelectuais. (…) Hipócrita? Não, ele é cínico. A propósito do ex-príncipe da sociologia brasileira, não sei se vocês viram o artigo dele, de domingo no Estadão? O título, a propósito do nosso querido amigo Florestan Fernandes e do Celso Furtado, três quartos e mais um pouco do artigo são sobre ele. Um autocentrado que só consegue dialogar quando está no espelho.

 

O PT TRAIU A SI PRÓPRIO

A situação do PT hoje é um ponto crucial não apenas para a esquerda, mas também para a democracia brasileira, e isso me aflige muito. O primeiro partido do nosso país que nasceu de uma base, todos os nossos partidos, desde o Império, a partir de uma liderança messiânica, ou de um grupo. O trabalhismo, o PTB, que era um grande partido, o Varguismo, o partido de Vargas, como ele tem de sobreviver? A partir de Brizola. Mesmo o nosso Partido Comunista se estrutura a partir do prestismo, o partido do Cavaleiro da Esperança. O PT, não, nasce do movimento sindical, do líder sindical, das lideranças comunitárias populares, que cons­troem de dentro para cima. Talvez o PT seja ainda o único a dispor de uma militância que interfere na sua vida. Os nossos outros partidos não têm militância, mas líderes, têm chefes, mas não militância.

 

AS DUAS VIDAS DO PT

Acho que o PT tem duas grandes demarcações: um é o PT da oposição, o outro é o PT do governo. O PT que em 1989 lidera um dos mais belos movimentos políticos que este país já teve, da campanha de Lula, e o PT da carta aos brasileiros em 2002. A partir daí, temos um novo PT, o que leva –­ eu estou querendo pesar as palavras – muito a fundo a concepção da governança, que ficou mais grave a partir da tentativa de golpe contra Lula. (…) Ele sai do palácio e começa a rodar o País e reverte o curso. A mobilização popular impediu que o PSDB desse continuidade ao golpe, mas aí veio o projeto da conciliação. Já estava na porta dos brasileiros, o capitalismo domesticado, a possibilidade de um capitalismo civilizado. Amigável. O que significa? Dar um pouco para a senzala, enquanto dizia à casa-grande que não ia tirar nada dela. Lula pensou que o acordo estava feito, mas foi rompido porque a casa-grande tem uma coisa muito mais aperfeiçoada, muito mais firme do que nós: a consciência de classe. Ela sabe onde estão seus interesses. (…) E tivemos uma grande dificuldade que acho que chega até aqui, que foi não compreender 2013. Até 2013 tínhamos uma onda favorável aos movimentos populares. Nós, intelectuais de esquerda, temos muita dificuldade de compreender o processo social quando ele está em andamento. Somos muito bons em interpretar o fato, em explicar o fato. Mas, enquanto ele está germinando, a gente tem dificuldade de compreender.

 

DOGMAS ESQUERDISTAS

A primeira questão é que confundimos o prestígio de Lula com o avanço das esquerdas. Nós confundimos o apoio popular, quando ele o tinha, como um apoio popular às nossas ideias, aos nossos projetos, mas não era. Era uma relação mito e povo, nós não tínhamos avançado politicamente. Por quê? Porque o nosso governo recusava a politização. Não tem sentido você simplesmente colocar uma torre transmissora para que o brasileiro do século XVIII, que está no interior do Pará, no interior do Ceará, assista à Rede Globo. Não tem sentido dar ao Bolsa Família mais 10 reais, mais 20 reais, tem de explicar por que o capitalismo alavanca essa miséria. Mas não politizávamos nada, para não acirrar os ânimos. Em vez de estar discutindo como estava o País, discutindo a desigualdade social, essa imoralidade absurda em um dos paí­ses mais ricos do mundo, e nós sofremos a maior desigualdade social do mundo. (…) Nós deixamos de discutir a desigualdade social, deixamos de discutir o desenvolvimento nacional e passamos a falar em ética, passamos para uma discussão despolitizada, quando se tratava de discutir a condição do Estado. Do Estado e do governo do PT. Nós não compreendemos isso. A Lava Jato não é uma jabuticaba em pé de goiaba, na goiabeira, ela nasce de um projeto, uma concepção, e como projeto era impossível a Lava Jato ser um grande acordo nacional, era impossível a Lava Jato contar com a Fiesp e com a Rede Globo. A Lava Jato ser como os nossos generais, era impossível a Lava Jato ser um império. Não compreendemos o desafio, fomos aos trancos e barrancos para 2014, e de novo nós não entendemos 2014, aquela diferença mínima que apontava para uma mudança. Não precisávamos esperar o tsunami, a onda já estava à vista. E o que fizemos? Anunciamos o neoliberalismo e instauramos a administração do austericismo, foi um estelionato. (…) Você deve se lembrar quando Juscelino enfrentou cerca de dez pedidos de impeachment. Deu a todos uma banana. Nós ficamos 13 anos no governo e não conseguimos. Tem que estudar isso, nós ficamos 13 anos no governo estando nas ruas, de certa forma politicamente, desde 1989, discutindo as campanhas anteriores e não conseguimos mobilizar vivalma em defesa do mandato legítimo da presidenta Dilma. Foram 13 anos de governo e não conseguimos eleger o presidente da Câmara. Tem algo errado.

 

AS DUAS TRAGÉDIAS

Nós temos duas grandes tragédias que acompanham este país desde o seu nascimento: a conciliação pelo alto e o papel trágico das Forças Armadas. Se não enfrentarmos isso, nós não avançamos. Nós não nascemos de revoluções nacionais e guerras de libertação. Nós nascemos do golpe de Estado dado pelo filho do rei, e a República de um golpe militar. Começamos a modernizar o País em 87, a partir de um golpe militar. Nós fomos pensar em democracia em 46, depois de outro golpe militar, um golpe em 64, dois golpes em 65, um em 61, e por aí vai. O povo deste país é plateia. (…) Em 61, talvez tenhamos assistido à maior mobilização popular da nossa história, as unificação da direita à esquerda, a favor da legalidade. O povo está na rua, é meia dúzia de Tancredos com meia dúzia de generais, e eles traficam dentro do Congresso a emenda parlamentarista. É assim em 85, o povo foi para a rua na campanha das Diretas Já, o povo foi para a rua na campanha pela Anistia, e o general Pires Gonçalves, Sarney, Fernando Henrique, uma dúzia de príncipes, se reúnem, fazem a conciliação e nós aceitamos não ter Constituinte exclusiva, aceitamos não mexer na anistia imposta, aceitamos não rever os crimes, não punir, hoje estamos pagando o preço disso tudo.

 

MUITO RUÍDO POR NADA

Nós, a esquerda, não o PT, entregamos o Estado, o governo em 2016, assim como o recebemos em 2003. Não fizemos nenhuma reforma, nenhuma reparação essencial. Não fizemos reforma tributária, não fizemos reforma política. Não fizemos a reforma agrária. Começamos por aquelas mais fáceis e não fizemos a reforma dos meios de comunicação eletrônicos. Estamos agora sem entender por que a Record e a Globo estão batendo na gente. A diversão do ex-marido da Gleisi, Paulo Bernardo, era fechar as tevês comunitárias. Este governo que está aí já abriu tantas tevês comunitárias, bem mais que os nossos três governos. Como vamos fazer transformações, como podemos avançar na questão das Forças Armadas? Em 1962, eu estou na Granja do Torto com um grupo de estudantes e líderes sindicais para uma conversa política com o então presidente João Goulart. Um negócio maluco, nós estávamos lá para pedir três coisas, de duas delas eu me lembro. Uma era pedir a transferência do general Castelo Branco do quartel de Recife para qualquer lugar, e a outra era pedir legenda para Miguel Arraes, que era candidato a governador, porque o PTB, comprado por não sei quem, tinha negado legenda a ele. A certa altura, ele se virou para mim e disse: “Lidar com as Forças Armadas é igual a lidar com política, tem de manejar. Você não acha importante eu ter o general Amaury Kruel aqui do meu lado? Enquanto o Kruel está aqui, tenho que manter lá o general Castelo Branco, lá. Não é melhor o Castelo Branco lá e o Kruel aqui?” (…) Então, ele fez observações sobre o Arraes, mas sabia que ele não queria lhe dar apoio algum. E o Jango pensando que, manobrando os botões, transferindo generais de um comando para outro, estava interferindo no poder interno das Forças Armadas.

 

PRIMITIVISMO FARDADO

Pensávamos que liberando verbas e mais verbas, avião, isto ou aquilo, para as Forças Armadas elas ficariam caladinhas, mas estávamos enfrentando um problema. Nunca mexemos na questão principal, que é a formação dos oficiais. É uma fábrica de fascistas. Não tinha um general que tivesse lido Os Sertões. (…) Nós regressamos a 1984, na Escola Superior de Guerra, os militares brasileiros com exceções que não enchem uma mão são conhecidos até hoje. Sem Fidel no horizonte, consideram inevitável o confronto Oriente e Ocidente. O nosso guarda-chuva são os Estados Unidos.

 

O RIDÍCULO 9 DE JULHO

O Brasil moderno está na concepção do getulismo, com a ideia do desenvolvimento, dos investimentos em infraestrutura, em estrada, em eletricidade e em indústrias. E uma coisa que não entendo é a burrice dos paulistas, pois o maior beneficiário da política getulista foi o estado de São Paulo, e os malucos fazem o que eles chamam de Revolução de 32. (…) É a única derrota que é comemorada todos os anos. Não entendo que comemoração é essa, é impressionante que o povo paulista não tenha entendido o que era a proposta getulista. Começa a ser desmontada com Fernando Henrique Cardoso. O papel do estado desenvolvimentista, o papel­ do estado como distribuidor de renda, o papel do estado minimizando as diferenças regionais, isso tudo começa a ser destruí­do com Fernando Henrique Cardoso, conscientemente. (…)

Em relação às Forças Armadas, pela primeira vez estou otimista, porque elas estão passando por uma lavagem, por uma reflexão que não experimentaram em 85, pois esse diálogo que estamos tendo não havia em 85, elas se desnudaram. (…) Estamos passando a limpo o papel das Forças Armadas. E não é possível que isso não chegue às bases dos militares, o militar mesmo, aquele que vai para o quartel de manhã, que faz a Ordem do Dia, que salta de paraquedas etc. Esse camarada vê que está sendo utilizado, e esse é o ponto básico. Acredito que grande parte da nossa tragédia de hoje é não termos passado a limpo 84. Não termos levantado os crimes contra as pessoas, os crimes contra o País, e punir, indicar as pessoas. Nesse ponto eu sou otimista.

 

A AUTOCRÍTICA NECESSÁRIA

Precisamos de muita humildade para rever tudo o que fizemos, ou seja, uma autocrítica. Há pessoas que não gostam de autocrítica e vão dizer que é coisa de comunista, de cristão, de confessionário. Na minha cabeça, a gente tem de voltar para a organização da base. Mas os nossos partidos e as nossas lideranças não estão à altura do desafio. O movimento sindical está esvaziado por muitas razões, há muita culpa nossa, mas também pelo inevitável desenvolvimento do capitalismo e da introdução da robótica e da informática. Nós temos de retomar o convívio com as massas, com as periferias, nós saímos da periferia e sabemos que não existe espaço vazio na política. Saímos nós e foi a vez da milícia e do narcotráfico, dos evangélicos. (…) Nós estamos fazendo política para nós mesmos. No nosso governo, tiraram as lideranças do chão de fábrica e espalharam pelos gabinetes na Esplanada dos Ministérios. Quando nós precisamos mobilizar o sindicato, não tínhamos mais massa para mobilizar.

 

Texto publicado na Carta Capital. Rio, 10 de agosto de 2020: https://www.cartacapital.com.br/politica/nos-da-esquerda-nao-fizemos-nenhuma-reforma-nenhuma-reparacao-essencial-avalia-roberto-amaral/