É grave a saúde da República cujo povo não pode confiar nos Poderes que deveriam protegê-lo
Os analistas do quadro internacional são unânimes no registro do avanço político do conservadorismo, com seus ingredientes clássicos, que incluem a xenofobia, o racismo e algumas formas de nacionalismo. O processo não é novo, mas, por óbvias razões, só se tornou preocupante a partir do Donald Trump presidente, visto pela grande imprensa como um ‘populista de direita’. Até aqui o adjetivo populista, adotado de forma depreciativa, era reservado pela mídia aos governos populares e de esquerda da América Latina. Ou seja, era uma especificidade da periferia.
O fato objetivo é o registro, presente, de algo como uma onda reacionária que percorre o mundo a partir da Europa, relembrando a história da primeira metade do século passado. Naquele então, quando os EUA rooseveltianos simbolizavam a democracia clássica, tivemos formas variadas de ditaduras e nazismo dominando a Alemanha e suas adjacências, ao lado do fascismo italiano, da ditadura japonesa (constituindo os três o famoso Eixo militar que promoveu a II Guerra Mundial), o stalinismo, o salazarismo e o franquismo, com suas repercussões entre nós, pois eram também esses, no Brasil, os tempos do Estado Novo varguista.
A História registra o preço pago pela humanidade.
As ditaduras e os Estados autoritários, de fonte militar ou não, frequentemente se instalam na sucessão de reiterados fracassos da política como instrumento eficaz para enfrentar os problemas propostos para as crises econômicas e sociais consequentes.
Onda similar parece renovar-se, em nossos dias, principalmente após o colapso da URSS em 1991, o desmantelamento das repúblicas populares do Leste e o fim da polaridade político-militar.
Nos anos presentes assistimos à crise – econômico-política da União Europeia, ameaçada de desagregação. O fracasso rotundo do capitalismo, da globalização e do neoliberalismo, ao invés de abrir espaços a seu antídoto, prepara o terreno para o fim das experiências socialdemocratas.
No rasto do fracasso da política clássica emerge a ameaça do chamado ‘populismo de direita’, com toda a sua carga de reacionarismo, anunciando um retrocesso político-ideológico cujo desenvolvimento deve ser temido pelas forças populares e democráticas de todo o mundo.
A ascensão de Donald Trump, representando a emergência do pensamento xenófobo e reacionário da maior potência econômica e militar de nosso tempo, não é um fenômeno irrelevante e suas consequências são ainda imprevisíveis.
A derrota de Geert Wilders, na Holanda, pode ser lida como um tranco no nacionalismo xenófobo. Mas não é tudo. Vencedor, o partido do conservador Mark Rutte sofreu drástica redução de sua bancada e o grande derrotado foi o Partido Trabalhista, de centro-esquerda, que de 38 cadeiras no Parlamento caiu para nove.
Marine de Le Pen (seguida de dois concorrentes de direita) lidera o pleito numa França que, no século XVIII, ofereceu aos povos de todo o mundo as esperanças de liberté, igualité, fraternité! As sondagens de opinião sequer se referem ao candidato socialista. O Brexit inglês é apenas o indicador de um nacionalismo redivivo, em conflito com as expectativas de convívio entre os povos. Frauke Petry, na Alemanha (à direita de Angela Merkel e empurrando para trás a socialdemocracia), é outro exemplo paradigmático da tragédia político-ideológica representada pelo avanço do pensamento de direita.
Ao lado desses poucos exemplos do atraso também caminham a Áustria, a Polônia e, significativamente, todas as antigas repúblicas do Leste europeu.
Não são acasos o Congresso brasileiro, majoritariamente conservador e cassador de direitos nem o governo Temer. Muito menos é acaso, fruto do nada e sem significado e consequências a emergência, em nosso cenário, de um Bolsonaro.
Nas chamadas democracias ocidentais não há substituto para a política, e sua desmoralização é a porta aberta por onde chegam os salvadores da pátria e as ditaduras. Assim foi no passado e assim está sendo no presente. De outra parte, em democracias representativas, e pretendemos ser uma, não há alternativa à representação popular, fonte única do direito e da legitimidade do poder.
Esse fenômeno não nos é estranho, calcada que é nossa História por crises políticas e, delas derivados, por golpes de Estado e aventuras autoritárias. É que nas oportunidades da crise a classe dominante brasileira investe maciçamente na desmoralização da política, na sua desqualificação e na desqualificação de seus agentes, o vestibular dos golpes institucionais. É também nesses momentos que surgem e são aclamados ‘os salvadores da Pátria’, e muitos os tivemos e muitos devem estar sendo gestados ainda hoje, prontos para saltar do ovo da serpente para, em nome da democracia, assaltar a democracia e os interesses do povo.
Esses personagens, na sua emergência, encantam a classe dominante e sua mídia, pois fazem sempre o discurso da austeridade, da restrição de direitos trabalhistas e populares, pintam-se como anti-populistas.
Jânio Quadros, incensado pela plutocracia paulista, pelos partidos conservadores e pela unanimidade da grande imprensa, foi um desses salvadores da Pátria, fenômeno grotesco que se repetiria, quase quarenta anos passados, com a eleição de Fernando Collor, o enfant gâté da família Marinho. Ambos fizeram do moralismo tacanho suas bandeiras, o primeiro empunhando uma vassoura com a qual limparia a ‘sujeira que emporcalhava o Brasil’, o outro, sua versão decaída, se auto-apresentando como ‘caçador de marajás’. Todos nos recordamos dos epílogos (e suas dramáticas consequências) dessas duas aventuras.
Essas reflexões me chegam trazidas pela análise do comportamento geral da imprensa a propósito das revelações da Operação Lava Jato e, mais recentemente, do alcance da festejada lista nº2 do Procurador Geral da República, pedindo a abertura de inquérito para mais de uma centena de políticos de todos os matizes partidários, e atingindo em cheio o núcleo mais fechado e íntimo do poder, do ainda presidente Michel Temer, pois atinge seus ministros, palacianos ou não, os presidentes das duas Casas legislativas e seus líderes. Eis o que foi revelado de uma lista posta sob sigilo seletivo, e o mais pode ser imaginado.
As generalizações, tão fáceis nessas oportunidades, confundem a todos e tornam todos iguais, construindo a ideologia da anti-política, pois a política torna-se sinônimo de corrupção e a corrupção é a mãe de todas as mazelas de que padecemos.
Desta feita, porém, as apurações não perseguem, apenas, os chamados corruptos passivos, mas, tanto quanto, os corruptores, o que enseja e justifica número tão elevado de empresas e empresários entre os acusados, simplesmente revelando a essência moral do capitalismo, aqui, na Coreia do Sul e em toda parte. Este aspecto do fenômeno, nada irrelevante, não interessa à grande imprensa e seus áulicos.
Mas esta não é a revelação única.
A sequência das listas (a última diz respeito exclusivamente às delações da Odebrecht, a maior das empresas acusadas como agente de suborno, mas ainda assim apenas uma das muitas que optaram pela deleção premiada), termina por revelar o comprometimento do governo – por seus personagens e sua índole – no esquema de corrupção, e revelam o comprometimento do Congresso Nacional, de particular da maioria parlamentar que votou pelo impeachment e hoje assegura maioria à súcia instalada no Planalto.
São esses os ingredientes fundamentais da crise política que, tendo como pano de fundo a crise econômica – uma recessão, a maior nos últimos 40 anos– se agrava em face da ilegitimidade da presidência da República, ilegitimidade que salta do Executivo para sentar-se nas cadeiras dos presidentes da Câmara e do Senado.
Doutra parte, mas não menos nocivamente, o Poder Judiciário – desde juízos de piso aos tribunais superiores – transforma-se em instrumento de insegurança jurídica ao julgar contra a Constituição, o que faz com alarmante frequência. O STF extrapola de sua competência para invadir atribuições privativas do Executivo e do Legislativo.
Este é um dos indicadores da transição da crise político-econômica para a crise institucional.
O atual presidente do TSE, ministro Gilmar Mendes – que não esconde sua vinculação partidária, antes a alardeia – trabalha para impedir o julgamento da impugnação da chapa Dilma-Temer, que levaria à cassação o espúrio mandato do presidente em exercício. Trabalha ostensivamente na tentativa de decepar a chapa (evidentemente una) para dela excluir o vice, seu cupincha, e assim poupá-lo da condenação; trabalha para alterar a composição do pleno do TSE; trabalha, enfim, para levar o julgamento para depois de 2018 – quando a ação perde objeto, com o fim do atual mandato presidencial. Empurrando com a barriga o julgamento, Mendes conta ainda com o fato de que, dos sete membros do TSE, um sai logo em abril e outro em maio. Temer nomeará seus sucessores.
E, finalmente, saindo de convescote palaciano com Temer, Rodrigo Maia, Moreira Franco e outros acusados que irá julgar no TSE e no STF, Gilmar Mendes passa a defender que a Justiça Eleitoral, no caso, deve votar ‘pensando na estabilidade politica’ e deita falações sobre reforma política. Se, por hipótese, nada der certo, o ministro Mendes – ou qualquer preposto seu –certamente lançará mão do expediente de pedir vistas e sentar-se em cima do processo, como fez, no STF, no julgamento da ação da OAB contra o financiamento empresarial das eleições.
Até o reino animal sabe que a ação impugnatória não será julgada antes do término do mandato presidencial, e, assim, será extinta.
É grave a saúde da República cujo povo não pode confiar nos Poderes que deveriam protegê-lo.
Que fazer?
A resposta está nas manifestações de quarta-feira 15, em todo o país, escondidas pela ação concertada dos meios de comunicação. Elas apontaram o caminho.
Roberto Amaral
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