Um programa espacial completo exige estação de lançamentos, foguete e satélites. O Brasil não atende, hoje, a nenhum desses requisitos. Nossos satélites, meteorológicos, são fabricados em colaboração com a China, onde também são montados e de onde são lançados. Assim, de estação chinesa, por foguete chinês. O esforço de mais de 30 anos, voltado à construção do projeto da Aeronáutica – o Veículo Lançador de Satélites (VLS), tecnologicamente superado – , chegara ao fim em 2003, com a terceira e trágica tentativa de lançamento, ceifando, naquele evento, a vida de 21 técnicos e cientistas brasileiros. O projeto da Alcântara Cyclone Space (ACS) – o caminho para ingressar no restrito grupo dos países que exploram o espaço – acaba de fechar suas portas com a denúncia, pelo governo brasileiro, do Tratado firmado em 2003 com a República da Ucrânia, de que resultou a cooperação dos dois países na exploração espacial.
Esses fatos objetivos nos colocam poucas alternativas. Ou nos conformamos com a condição de dependentes de outros países para a construção e lançamento de nossos satélites, ou, finalmente, cederemos nossa soberania para que aqui os EUA instalem sua estação de lançamento, nos moldes de subserviência e renúncia à soberania caracterizados pelo tratado firmado no governo FHC, e cuja tramitação no Congresso Nacional o presidente Lula, em hora sábia, soube paralisar. Com nossa importância territorial (e responsabilidade continental), econômica e estratégica, somos o único país do mundo – dentre os que possuem esse peso geopolítico – sem programa espacial próprio, quando mais crucial se torna o domínio do espaço, instrumento de controle do território, do mares, das riquezas minerais, das florestas e do desmatamento, das comunicações (inclusive militares), das variações meteorológicas, do controle das safras e de nossa segurança.
Qual o objetivo do encontro do Brasil com a Ucrânia na exploração do espaço? Saltar etapas, nos associando a quem detinha tecnologia e com poderia ela construir um projeto de interesse comum. República mais industrializada da URSS, a Ucrânia domina tecnologia de construção de foguetes e lançamentos há quase 60 anos. Desde a Independência (1991) tornou-se importante concorrente no mercado lançador de satélites. Pelo acordo firmado conosco primeiro, lançaríamos o já vitorioso Cyclone IV, construiríamos (como estávamos fazendo) o Centro de Lançamentos em Alcântara com tecnologia ucraniana, e, no segundo momento, projetaríamos e construiríamos, juntos, o Cyclone V. Desde o primeiro momento, as instalações industriais ucranianas estiveram franqueadas aos técnicos brasileiros, inclusive militares. O convívio entre técnicos ucranianos e brasileiros, o aperfeiçoamento em comum do foguete, entre outras atividades, representariam efetiva transferência de tecnologia. O Brasil estaria adquirindo o conhecimento necessário para dominar uma das áreas mais importantes da indústria aeroespacial. Esta a questão.
O encontro de interesses se conjugava na medida em que o Brasil construísse sua própria base (para exploração comum), e a Ucrânia desenvolvesse o veículo, montando a plataforma de lançamentos, em nosso território. Tudo isso no município de Alcântara, Maranhão, a 02º18’ de latitude sul do Equador (Kourou, na Guiana, onde está o centro de lançamento europeu, nosso concorrente comercial, a segunda melhor localização, está a 5 graus ao norte) o que confere a qualquer objeto na superfície uma velocidade tangencial elevada, um impulso inicial muito favorável aos lançamentos equatoriais, como é o caso dos satélites de comunicação. Isso se traduz em aumento de 30% da capacidade de transporte (ou o correspondente em economia de combustível) tornando nossos lançamentos mais competitivos comercialmente.
Estima-se que o mercado global de lançamentos de satélites movimente US$ 6 bilhões/ano, e sabe-se que na disputa de mercado o Cyclone se apresentaria premiado por vantagens comparativas, a começar pelo menor custo de seus lançamentos. A ACS alimentava a expectativa de disputar de quatro a seis lançamentos anuais, ao preço médio de US$ 50 milhões. Nossa posição geográfica privilegiada fazia do Brasil peça-chave no setor. Todos os centros de lançamentos se encontram no hemisfério norte. O Brasil era a única expectativa de sucesso ao sul do equador (tendo, portanto, melhor acesso ao seu mercado), agregando vantagens ausentes, por exemplo, nos EUA e na Rússia.
O projeto foi, desde sempre, furiosamente combatido por forças internas e externas. A começar (eles sempre) pelos EUA, que em 1997 impediram a FIAT de empreender uma joint venture com o Brasil (então representado pela Infraero) e a Ucrânia (representada pela Yuzhnoye) para o lançamento desse mesmo Cyclone-4 a partir de Alcântara.
Os EUA tentaram ainda nos impor um acordo de subalternidade para instalar sua própria estação em Alcântara (tratado de lesa-pátria firmado no governo FHC, relembro) e em memorandum, atendendo a consulta, dizem à República da Ucrânia ‘continuarem entendendo que o Brasil não deve ter programa espacial’. São os mesmos EUA que, com o objetivo claro de prejudicar nosso projeto, proíbem (comunicado do Departamento de Estado a um cliente) o lançamento por Alcântara de quaisquer satélites contendo componente de sua fabricação. Milita ainda contra o projeto Cyclone a Rússia, que, para além das mais que explícitas disputas com a Ucrânia, pretende vender-nos seu próprio lançador.
Foram incontáveis as pressões de grupos ditos ecológicos/fundamentalistas, a ação de órgãos governamentais, como a Fundação Palmares, açulando quilombolas contra o investimento, a incompreensão de setores da FAB que entendiam que os recursos gastos deveriam ser alocados na ressurreição do VLS, de dirigentes do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), órgão do próprio Ministério da Ciência e Tecnologia, que entendiam que todos os recursos deveriam ser carreados para o acordo com a China, e incompreensões dentro do governo, como resistências da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, aquela querendo tratar a ACS como se uma sociedade anônima fosse, esse deixando de repassar recursos autorizados pela Presidência da República. A estrutura burocrática não consegue, e não deseja, entender o significado de um programa estratégico.
A ACS se instala em dezembro de 2007 e logo no início de 2008 é surpreendida por decisão judicial proibindo a ação de seus técnicos em Alcântara. A sentença, lavrada sobre ‘laudo antropológico’, dizia que aqueles técnicos, com suas ações (coletas de exemplares da fauna e da flora e amostras do terreno, requeridas pelo IBAMA para avaliar a licença de instalação) haviam incomodado os antepassados dos quilombolas. Essa interdição, cretina e impune, consumiu 14 meses de despesas e inatividade. A licença de instalação, atribuição do IBAMA, levou nada menos que 461 dias para ser concedida. Na sequência, o INCRA, por meio de portaria, condenada pelo Presidente da República, mas nem por isso revogada, declara território quilombola 68% do município de Alcântara, deixando a salvo apenas o distrito-sede e a área já ocupada pelo Centro de Lançamentos do VLS, da FAB. A ACS não tinha mais onde instalar-se! Foi salva, após meses de negociações, pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, que determinou seu acolhimento, sob aluguel (!), em área do Centro de Lançamentos de Alcântara-CLA, sob comando da Aeronáutica. Em setembro de 2010 o IBAMA emite a licença que permite o início das obras do sítio de lançamentos da ACS. A construção do Centro de Lançamentos da ACS é iniciada em outubro de 2010 e finalmente interrompida em março de 2013 para nunca mais ser retomada.
A questão central, não é o fim do programa espacial, em si grave, mas a dificuldade brasileira de acompanhar o progresso tecnológico de seus parceiros, principalmente nas chamadas áreas sensíveis, ou que requerem alta tecnologia, como a cibernética e a nuclear, ao lado do Programa espacial as áreas declaradas como prioritárias pela Estratégia Nacional de Defesa (Decreto nº 6.703, de 18 de dezembro de 2008) onde se lê (item 6)
“(…) Como decorrência de sua própria natureza, esses setores [o espacial, o cibernético e o nuclear] transcendem a divisão entre desenvolvimento e defesa, entre o civil e o militar. Os setores espacial e cibernético permitirão, em conjunto, que a capacidade de visualizar o próprio país não dependa de tecnologia estrangeira e que as três Forças, em conjunto, possam atuar em rede, instruídas por monitoramento que se faça também a partir do espaço”.
Parece sem remédio a inaptidão da sociedade brasileira para desenvolver projetos estratégicos, aqueles que definem os grandes objetivos que concertam os valores nacionais e condicionam os planos e as ações governamentais, a saber, as táticas necessárias para atingir tais objetivos.
Roberto Amaral