Roberto Amaral*
“A mim preocupa o povo, durante três séculos capado e recapado, sangrado e ressangrado…” – Capistrano de Abreu, Correspondência, vol. III. Instituto Nacional do Livro. Rio de Janeiro, 1954.
“Não há, nunca houve, aqui, um povo livre, regendo seu destino na busca da própria prosperidade. […] Nós, brasileiros, somos um povo em ser, impedido de sê-lo.” – Darcy Ribeiro, O povo brasileiro. Ed. Companhia das Letras. São Paulo, 2010.
A busca do novo, a revolução nacional – que tantos povos experimentaram nos primórdios de sua formação – foi sempre, entre nós, uma aventura banida. Mesmo as reformas as mais superficiais, foram e são admitidas tão-só quando estritamente necessárias para que tudo permaneça como está. Ou seja, se destinadas a preservar o mando, que é o mesmo em 500 anos. A busca pela estabilidade como um objetivo em si, cerceia o movimento; a ordem impede o progresso. A vida social é condicionada pelo passado que se projeta na história como ameaça ao futuro. A conciliação como alternativa a qualquer crise, é o outro lado da moeda que estampa o medo à ruptura.
A independência de 1822 não poderia deixar de ser uma transação burocrático-autoritária, negociada à distância mediante um concerto no qual o grande ausente é o povo brasileiro. Não ousamos a revolução nacional pela independência, saga que caracterizaria, por exemplo, as histórias estadunidense e hispano-americana. Coube-nos um golpe de Estado consolidado em concílio liderado pelos interesses do Império Britânico.
Os donos do poder, portugueses, brasileiros e ingleses, nutriam verdadeiro pavor do mau exemplo que chegava dos nossos vizinhos. Mas, para a tranquilidade dos senhores da terra, no evento da Independência não proclamamos a temida República, nem muito menos decretamos a abolição da escravatura. Vencia a terra. Venceria sempre.
Nossa carta de maioridade e autonomia política, a Constituição de 1823, será lavrada e promulgada pelo Príncipe herdeiro. Assim, sem povo, sem opinião pública, sem noção de nacionalidade, tornamo-nos livres das peias de colônia e inauguramos a monarquia absolutista, que nasce consagrando a grande conciliação com o latifúndio. Nascíamos condenados a viver no passado. Permanecia o governo da casa-grande. Não havia, não há, espaços para a ruptura, ainda quando caminhamos da Colônia ao Império, do império arcaico à República de 1889, sustentada pela lavoura paulista e a agropecuária mineira.
As diferenças entre as lideranças liberais e conservadoras eram exclusivamente nominais e todos se uniam, inclusive os interesses portugueses, na defesa do latifúndio e salvação da monarquia, e caminhavam para o rompimento com Lisboa em 1822 mais preocupados em evitar o surgimento de algum pleito ou de alguma liderança como aquelas que, ao arrebatar para a independência política as colônias espanholas do continente, haviam instalado regimes republicanos. A possibilidade de um Bolívar ou de um San Martin aterrorizava e unificava. A manutenção da ordem, via monarquia absolutista e a grande propriedade, garantia a unidade política, e, seu objetivo, o mando das elites. Daí havermos alcançado o rompimento político com a Corte portuguesa sem havermos levado a termo a ruptura com o regime colonial. Na primeira oportunidade, os interesses portugueses são reconciliados com o golpe de 1831.
O Brasil que despertava para a maioridade política era o encontro do deserto cívico com o deserto demográfico descrito por Thomas Lindley, viajante-comentarista inglês: “Vida social não existia porque não havia sociedade; questões públicas tampouco interessavam, e mesmo não se conheciam: quando muito sabiam se há paz ou guerra”[1].
Ao fim e ao cabo a casa dos Bragança estará sentada nos tronos do Brasil e de Portugal. ambos dependentes dos empréstimos extorsivos devidos à família Rothschild. Ao invés de ruptura, composição.
A pré-independência
Desde o descobrimento, o Brasil tem sua história vinculada a fatores de ordem mundial. A terra achada de há muito era conhecida pelas potências marítimas. Consabidamente, as tropas de Junot determinaram a transmigração da família real portuguesa, fato que tornaria inevitável a imprevista independência de 1822, dispensando o concurso das tímidas forças sociais; a preeminência inglesa (que se abatia sobre Portugal e a colônia) impusera a abertura dos portos sob o monopólio do tráfego inglês; as pressões das Cortes portuguesas determinaram o retorno do Rei e a resistência do Fico, calçando a ascensão de D. Pedro I e o gesto do 7 de setembro.
As condições objetivas de um Portugal empobrecido condicionam sua intervenção no vasto território por conhecer e explorar. Não podendo empreender o desafio colonizador, empenha-se Lisboa em garantir a posse, assegurada, naquela altura, apenas, e assim fragilmente, do ponto de vista jurídico, pelo Tratado de Tordesilhas, que a futura colônia, a despeito da metrópole, cuidaria mais tarde de ultrapassar como primeiro sinal de uma nacionalidade que demora em construir-se. Será obra mameluca, de paulistas e nortistas, caminhando para o Sul e para o Oeste, correndo os sertões com o boi, e deixando em seu rasto aldeias e vilas. A breve união de Portugal e Espanha, por fim, facilita a expansão territorial brasileira.
A viagem foi longa. Primeiro as feitorias, os pequenos núcleos populacionais espargidos segundo uma estratégia militar[2] cujo escopo é a proteção do território vastíssimo às margens de litoral imenso à mercê da pirataria e das belonaves inglesas, francesas e holandesas e, até, espanholas; daí, não raro, as povoações apegadas a fortes e fortificações erguidas às custas do etnocídio indígena. Uma logística determinada por critérios militares de segurança, não de exploração da terra[3].
Frei Vicente do Salvador, autor de nossa primeira História do Brasil, é certamente o primeiro crítico da fragilidade da política portuguesa de além-mar, sempre mais voltada para a reiteração da posse jurídica, e sempre longe da empresa colonizadora. Escrevendo em 1627 profligaria: “Da largura que a terra o Brasil tem para o sertão, não trato, porque até agora não houve quem a andasse por negligencia dos portugueses, que, sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejos!”[4].
As capitanias hereditárias conservam o poder soberano reafirmado nos governos-gerais e depois no Reino; a organização política precede a organização social, a cidade se antecipa à nação, a população nasce já sob prescrições administrativas. O país se antecipa à nação.
O sistema militar fixa o caráter que imperará por todo o período – a farda afidalga e a batina facilita o diálogo com Deus –, antes dos títulos nobiliárquicos, organizando um estamento aristocrático quando não havia ainda Corte, premonição de muitos feitos da história brasileira escrita nos séculos seguintes.
As exportações do pau-brasil, a lavoura e a indústria do açúcar criando o engenho e a casa-grande, a extração do ouro, e, já no Império, a exportação do café, transferindo do Nordeste para o Sudeste e o Sul (Rio de Janeiro e depois São Paulo), a hegemonia de baianos e pernambucanos – donde constituírem mais tarde o cenário em que se decidiria a Independência – são economias fundadas no latifúndio e no braço escravo, de vida curta, tão brutal era a exploração no eito, o que explica a importância do tráfico negreiro, e a resistência de Lisboa às pressões do império britânico, incomodado com a concorrência do açúcar brasileiro à produção de suas colônias nas Antilhas. Nascíamos e crescíamos como economia primária agroexportadora dependente, destinada a suprir as necessidades demandadas pelo mundo de então.
Fenômeno econômico e político colonial que marcará o primeiro e o segundo impérios, a escravidão está no eixo de nossa política externa, participará das negociações para a Independência e será um dos pontos nodais das permanentes dificuldades da diplomacia brasileira com o Império Britânico e sua preeminência sobre Portugal e a colônia de que Lisboa se tornara dependente.
A administração monopolista e predatória desconhece a manufatura. Mais ainda, proíbe-a de forma mais radical possível[5], na colônia em benefício da metrópole, e impossibilita-a, mais tarde, depois do Reino, da abertura dos portos e da Independência, pela via do livre-cambismo que expunha nossos produtos a uma concorrência letal com os ingleses.
Descompassado no mercantilismo, havendo perdido a primeira Revolução Industrial de certa forma financiada na Inglaterra e na França com as reservas minerais das colônias da Península Ibérica, Portugal limita-se ao monopólio do transporte e comércio de matérias-primas fornecidas pela colônia. É apenas um entreposto. Lisboa converte-se em empório importador-reexportador de madeira, açúcar, tabaco e ouro, destinados à Inglaterra, de quem o antigo império marítimo, já satélite e impedido de industrializar-se, importa tudo de que carecia, manufaturados de um modo absoluto, tecidos, manteiga e, até, água mineral.
O Brasil, colônia de Portugal – já de sua parte virtual colônia do Império Britânico — , tem seu destino de economia exclusivamente agrícola determinado ainda pela preeminência inglesa, sucessora do domínio espanhol (mais tarde submetido a Napoleão), sob o qual padecerá a metrópole. Portugal vive do monopólio da concorrência da colônia, que sustenta a Corte e a economia reinol parasitária: é o preço do monopólio do comércio e dos impostos, crescentes, cobrados da colônia, impedida de industrializar-se ou de comerciar com o mundo, proibida mesmo de ter prensas para reproduzir os catecismos dos padres. O Reino passa a depender de sua colônia.
A Revolução Industrial, todavia, era incompatível com o monopólio do transporte e com os mercados fechados. Onde quer que se tenha estabelecido, para instalar-se e desenvolver-se, revolucionando os instrumentos de produção e as relações sociais mesmas, a burguesia rompe com a economia e a política fechadas; ela necessita de mais mercados, necessita de um mundo maior, necessita de estabelecer-se onde quer que seja, explorar onde quer que seja, produzir em centros privilegiados e comercializar em todo o mundo.
Uma antecipação do imperialismo vai suceder a uma forma de colonialismo. Para a Europa que se moderniza é insuportável o gueto escravagista brasileiro. Azar de Portugal, que haverá de ater-se om as tropas de Junot e a diplomacia bélica de Canning.
No desenvolvimento dessa lógica, a transmigração da família real, e, consequência dela, a abertura dos portos – a primeira, em 1808 – dera-se como fato inevitável, porque não podia ser de outra forma, como observa o Marquês de Sapucaí, para quem aquele ato dependia dos acontecimentos e não da vontade humana ou de sua intenção[6]
Enquanto na Europa, de particular na França, Inglaterra e Holanda, a burguesia lança as bases daquele mundo econômico que a história cunhou como Revolução Industrial, raiz de sua hegemonia política, no mundo periférico, Áustria, Espanha, Rússia e Países Baixos (a Santa Aliança com a qual, após a derrota de Napoleão, D. João tentará coligar-se como forma de fortalecer-se contra a Inglaterra) e sobretudo em suas colônias, e em Portugal consolida-se o poder do senhor da terra, entre nós senhor de terra e de escravos, negros africanos e indígenas preados.
Aqui, o monopólio que mais se fecha num esforço de isolamento e autoproteção: a Santa Aliança quer parar o tempo, a Europa industrializada quer avançar os ponteiros, o Portugal agrário é aliado sem escolha da Inglaterra, que mais ambiciona as potencialidades da colônia americana. Lá, a liberdade de produção a reclamar por mercados sem peias; em Portugal, a sobrevivência dos Bragança depende da exploração monopolista da colônia, e mais tarde do Vice-Reinado e do Reinado.
A burguesia, repita-se, precisa aumentar o mundo e tornar todo ele livre para si, para o tráfego livre de suas mercadorias. A metrópole quer suas colônias fechadas à produção externa que não seja a sua, donde o monopólio do mercado, necessidade portuguesa, e a abertura dos portos brasileiros, exigência inglesa. Abertura que, consabidamente, não passava de consolidação do monopólio inglês.
A Inglaterra industrial quer e obterá o que almeja: o livre mercado (que é o mercado cativo para seus produtos no Brasil); em suas terras o liberalismo; na colônia da colônia (com a Independência de 1822 o Foreign Office dispensará a mediação de Lisboa), as vantagens da economia fechada.
O Brasil transforma-se em mercado prioritário de absorção comercial, principalmente depois do controle francês sobre a Espanha. Tratava-se, assim, fundamentalmente, de assegurar o comércio com o Brasil, mas com o Brasil importador de manufaturas e exportador de matérias-primas in natura demandadas pela Europa, Inglaterra à frente. O Corso podia ficar com a metrópole esvaziada. Por isso a Grã-Bretanha forçou a transmigração da família real, e tentará apressar seu retorno quando D. João é chamado de volta pelas Cortes e reluta; no regresso, e no Fico, tomará o partido dos brasileiros, aos quais o príncipe se alia até o rompimento de 1823, a primeira estação de 1831.
A transferência do reino para a antiga colônia se consumou com dois atos decisivos: a primeira abertura dos portos e os tratados de 1810 – um de comércio e navegação, um outro de aliança e amizade, e uma convenção disciplinando o serviço de navios entre o Brasil e a Grã-Bretanha, que deixam a colônia – tanto quanto já o era a metrópole – cativa dos interesses ingleses.
Por isso será ainda a diplomacia inglesa, ou o poder persuasivo de sua armada, que presidirá as negociações de reconhecimento da Independência, contra restando o reacionarismo da Santa Aliança, demolindo as resistências portuguesas, administrando as aspirações brasileiras. É tal a preeminência que, no episódio da Independência de 1822, Portugal far-se-á representar diante do Brasil por um súdito inglês, Charles Stuart, também representante pessoal de George Canning. Como é sabido, será alta a conta cobrada por tais serviços. Desse preço consta a manutenção dos privilégios comerciais britânicos e o pagamento das dívidas inglesas contraídas por Portugal, as quais compreendiam, até, o empréstimo tomado por Lisboa para financiar o esforço militar de combate à Independência brasileira.[7]
A esses empréstimos Felisberto Caldeira Brant, nosso negociador, acrescentará mais um, necessário ao governo brasileiro para suprir o déficit público decorrente da crise, agravada com o saque promovido pela corte retirante. Mas acrescentará outro custo, abrindo triste e bem seguido precedente na história das negociações de nossas dívidas externas: sua própria comissão.
O acordo negociado com a Inglaterra termina por conceder a D. João o título de imperador. Essa cláusula é da maior importância para que se compreenda a história imediata de Portugal e a futura luta de nosso Pedro para retomar a Coroa ameaçada por D. Miguel e a direita absolutista.
A concessão do título pessoal de imperador a D. João VI dava à separação política do Brasil o caráter de uma transferência de soberania, pelo que a eventual transformação de D. Pedro I em futuro rei de Portugal já era preparada do ponto de vista legal, medida mediante a qual D. João se antecipava à guerra de sua própria sucessão tomando o partido do primogênito contra as articulações da rainha e do filho Miguel, instrumentos dos interesses espanhóis, do Império Austríaco e da França.
Canning estava atento.
No plano econômico, o acordo assegurava ainda a vigência no Brasil das garantias comerciais portuguesas e, finalmente, exigência inglesa, a promessa do governo brasileiro de não aceitar a incorporação ao seu território de qualquer colônia de Portugal, cláusula mediante a qual a Inglaterra esperava impedir o tráfico, especialmente com Angola, cuja burguesia comercial fornecedora de escravos desejava manter a região politicamente unida ao nosso país.
Para Portugal, a transmigração representa a salvação da monarquia, lá e cá; para o império britânico, o acesso monopolista ao mercado consumidor brasileiro; as vantagens extorsivas da metrópole feudal são agora privilégio da parceira “liberal” industrializada. O açambarcamento da colônia pelos interesses britânicos, com a incorporação dos portos brasileiros ao comércio inglês, constitui o pacto mais desigual entre nações independentes.
Portugal renuncia à autonomia e à recuperação econômica, conforma-se como pensionista do comércio brasileiro; o Brasil tem perdida por um século a expectativa de industrialização; há que prevalecer a ideologia do livre-cambismo e do “livre-comércio”, derrogadas as esperanças de proteção alfandegária, que teria papel relevantíssimo na industrialização dos EUA independentes e republicanos, cujo rompimento das amarras políticas e econômicas com a metrópole inglesa encontrara na República sua consolidação institucional.
O conflito já resolvido entre o mercantilismo e o capitalismo liberal, e os benefícios proporcionados à Grã-Bretanha pelas tarifas de 1810, retiram do Estado – na tradição portuguesa e na vida brasileira autoritário e centralizador – o controle da economia, reduzindo o governo a mero cobrador de impostos, tornando inevitável a Independência.
A Independência, a grande obra de conciliação da monarquia com o poder da terra e sua representação jurídico-política, é também a concordata do Estado absolutista de 1808 com um projeto de liberalismo condicionado à manutenção das grandes propriedades escravistas.
Nessa contingência, tornaram-se inevitáveis a abertura dos portos de 1808 e os tratados de 1810 e 1814, efetivos instrumentos preparatórios de um 1822 também inevitável, uma Independência prevista e esperada de há muito até pelos portugueses, que, temendo-a, terminaram por precipitá-la, graças ao comportamento hostil das Cortes de Lisboa.
As consequências da presença da família real, a condição de Vice-Reinado e do Reinado; o desenvolvimento urbano (sem embargo do fracasso da tentativa de industrialização); o crescimento das grandes cidades, principalmente do Rio de Janeiro; a fixação dos comerciantes brasileiros, portugueses e ingleses; o desenvolvimento, inclusive rural, consequente da abertura dos portos (nada obstante os privilégios britânicos)… tudo isso construindo um país para o qual o retorno à condição colonial, ameaça com a qual acenavam as Cortes, era simplesmente inaceitável, transformando a Independência, gestada desde anos, em remédio inafastável. De preferência com o príncipe, mantida a monarquia e as boas relações com a metrópole.
E, assim, mudamos para que a ordem fosse mantida: troca-se João por Pedro, a colônia pelo império carente de autonomia, e conserva-se a dinastia dos Bragança lá e cá. Troca-se Portugal pela Inglaterra e permanece a dependência.
O início do século XIX assiste à emergência de um personagem novo, o senhor rural autenticamente nacional, senhor de uma economia da qual havia conseguido manter afastado o português, visto como intruso, limitado à burocracia e ao comércio. Produto de uma conciliação, é ele próprio um projeto de conciliação, pois pretende, num bifrontismo aparentemente paradoxal, conciliar o liberalismo das cidades com a economia dominial fechada de suas fazendas, verdadeiros burgos autônomos no meio do sertão, tanto quanto procurar conciliar a Independência e a monarquia absolutista com as liberdades decantadas pelo liberalismo europeu, o livre-comércio com a economia fechada.
Nunca será demais lembrar que a revelação passado-presente é a melhor forma de estudar História: os que mais de um século e meio depois fariam a Nova República veriam os derrocados de ontem recompostos no novo sistema. A obra encetada pelo Partido Brasileiro, em 1822, daria o poder real ao Partido Português. Na verdade, a Independência de 1822 vai se consolidar em 1831, na Regência, com a definitiva tomada do poder pelos donos de terra e de escravos.
De 1822 a 1831 assistimos à luta dos nacionais pela extinção da influência dos portugueses (que se haviam recomposto aliando-se a D. Pedro I) na política da Corte. Demonstração deste fenômeno foi a postura do Partido Brasileiro que, havendo defendido a Independência, passaria quase todo o período na oposição.
Na Independência, uma transação toma o lugar da revolução, acomodando o liberalismo de índole jacobina e o absolutismo.
Esse mencionado caráter de arranjo ou conciliação, ou negociata, ou concordata, da Independência, proclamada pelo próprio ministério que estava no poder, configura-se mais como um golpe de estado do que uma revolução, posto que não ocorreram quer ruptura de poder, quer mudanças nas relações sociais e econômicas. Continuamos como santuário das oligarquias, e seu melhor indicador é a permanência econômica e ideológica da casa-grande. Uma vez mais nos distinguimos não só da América hispânica, mas igualmente das experiências europeias e norte-americana. Aqui estão a fonte, a raiz e a matriz de um movimento cujas rédeas estiveram sempre nas mãos dos senhores da terra. Fonte e raiz, mas principalmente matriz, posto que o modelo se reproduzirá.
A vitória secular da sociedade colonial, tradicionalista e conservadora, é também a derrota do progresso, é a derrota do povo, o futuro pária urbano, o futuro operário desempregado, o mameluco, sacrificado na educação, na saúde, no bem-estar; é a fonte da violência silenciosa, da mortalidade infantil, do analfabetismo larvar, da vida subumana dos cortiços e nas favelas, da quase-vida do lavrador alugado no campo, do boia-fria. É a vitória da conciliação que garante o statu quo que se mantém sufocando os interesses das maiorias.
No Brasil, a conciliação é o pacto de elite que visa a preservar os privilégios de classe. Ela foi fundamental na Independência e na regência da história que se segue.
A conciliação não abole a violência
O sangue e a violência não são estranhos à história brasileira, na Colônia, na Independência, no Reinado dos Bragança e na República; já não se fala na revolta surda, na violência silenciosa da fome, na estrutura social iníqua[8]. Não se trata mais de referir, tão-só, sem com isso diminuir seu significado, à violência que é a privação do bem-estar, da vida ou da segurança, ou mesmo o monopólio da violência estatal “legítima” a que se refere Max Weber. A tradição da história não-violenta se esboroa em face da sequência de conflitos que vêm da Colônia à República. O Império apresenta sua força repressora em 1824, com a violência que esmaga a Confederação do Equador. A República se apresenta com o massacre de Canudos (1896-1897). O desfecho de todas as insurgências é o mesmo, seja na colônia, no império, na república: o povo é sempre o grande perdedor, e quanto mais de origem popular a insurgência, maior é o peso da repressão implacável. Em toda a nossa historia, um só levante foi vitorioso: o movimento civil-militar que a historiografia grafou como “Revolução de 1930”: uma dissenção inter-oligárquica comandada por três governadores de Província apoiados por setores majoritários das forças armadas.
Para enfrentar os focos de resistência portuguesa à Independência, o novo império moveu guerra sem quartel. Mas o que eram, nesse então, o exército e a armada de D. Pedro I, senão uma legião de mercenários irlandeses, ingleses, franceses e alemães, para não falarmos do grosso da oficialidade portuguesa incorporada às nossas fileiras após a rendição de Madeira (1823), provocando e precipitando a crise de dissolução da Constituinte? São os mesmos mercenários que sufocarão a Confederação do Equador. Serão eles que apagarão os focos de resistência.
Foi o mercenário francês Pierre Labatut o general que expulsou os portugueses na Bahia (comandava 11 mil mercenários) ; foi o Lord Thomas Crochane (também Conde de Dundonald e Marquês do Maranhão), o mestre dos mares, contratado por nosso monarca como primeiro almirante brasileiro e comandante da armada, quem rechaçou as tropas portuguesas do Maranhão (comandava oito mil mercenários); Finalmente, Jorge Canning (ministro inglês dos Negócios Estrangeiros), que levou Portugal à resignação, efetivando a Independência e tornando possível a futura obra de consolidação que a Regência encetaria..
A preeminência inglesa e o preço da Independência
Por largos 116 anos, a Inglaterra dominou o mercado importador-exportador brasileiro, seu comércio e sua economia, interferiu em sua política, influiu em seu destino de povo, nação e Estado. Isso desde 1808, sobretudo, quando determinou a transmigração da família real para o Brasil. Seu papel na preparação da Independência – pela via da transmigração e, por consequência, a abertura dos portos e ativação do comércio – e, principalmente, no reconhecimento internacional da soberania, foi igualmente decisivo para seus próprios interesses comerciais e militares, interesses que a ligam desde muito ao passado europeu da Aliança Anglo-Portuguesa.
Quando D. Pedro I procurou o reconhecimento da Inglaterra e seu patrocínio internacional, e procurou porque não dispunha de alternativa em face da recusa portuguesa de aceitar a declaração unilateral de soberania, foi forçado a ratificar as estipulações negociadas antes com o vice-reino e que davam à Inglaterra condições excepcionais em suas relações comerciais com Portugal, e, agora, com o Brasil que renunciava a qualquer possibilidade de industrializar-se. Ganhava a Inglaterra, perdia o Brasil como um todo, mas ganhavam os senhores da terra, beneficiados com a associação da abertura dos portos ao sistema primário de exportação. Estava aberto por inteiro o mercado brasileiro ao capitalismo inglês. E se efetivava o projeto de Caninng, que visava a afastar a América do Sul da esfera de influência francesa.
À classe dominante brasileira (os herdeiros da casa-grande) não interessa a consulta histórica. Satisfaz-se na firme convicção de que o relevante é o puro e simples exercício do mandonismo; daí o acachapante desprezo pela educação e pela cultura em todas as suas dimensões, temerosa da elevação da consciência das massas.
É o aqui e o agora da mediocridade e do atraso. Mas não há de ser fruto do acaso estarmos, nos primeiros anos da terceira década do terceiro milênio, patinando na periferia do capitalismo. E mesmo no capitalismo permanecemos órfãos de um projeto de país. Criamo-nos e formamo-nos sob o signo da dependência ideológica, a marca colonial que presidiu o império e chega à República dos nossos dias. Caminhávamos e caminhamos no contrapelo daquelas sociedades que, ousando mesmo a aventura do desconhecido, puderam construir seu destino.
* Com a colaboração de Pedro Amaral
[1] Lindley, Thomas. Narrativa de uma viagem ao Brasil. Companhia Editora Nacional. São Paulo. 1969, p. 76; Abreu, Capistrano. Capítulos da história colonial – Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. Editora Universidade de Brasília. 1963, p. 228.
[2] Esta estratégia revela-se clara no Foral de Duarte Coelho e no Regimento de Tomé de Souza, in Bonavides, Paulo e Amaral, Roberto. Textos políticos da História do Brasil. Edições Sendo Federal. Brasília. 2002
[3] Exemplar dessa política é a Fortaleza de São José de Macapá, construída por ordem do Marquês de Pombal na cidade de Macapá, capital do atual Estado do Amapá, no extremo norte do país, em 1782. O forte foi erguido com o objetivo de proteger a região contra invasões estrangeiras e controlar o tráfico de escravos na área. Não se contam quantos indígenas morreram nos 18 anos consumidos em sua construção, de 1764 a 1782.
[4] Salvador, Frei Vicente do. História do Brasil. (Edição revista por Capistrano de Abreu). Irmãos Weiszflog Editores. S. Paulo e Rio. 1918. P.19
[5] Cf. Alvará da rainha D. Maria, de 15 de outubro de 1785 determina a extinção e abolição de todas as fábricas do Brasil in Bonavides, Paulo- Amaral, Roberto. Ob. Cit. Pp 282-3
[6] Marquês de Sapucaí. “O Sr. José Bonifácio Patriarca da Independência” apud Mercadante, Paulo. A consciência conservadora no Brasil. Rio de Janeiro. Ed. Saga.1965. p 67
[7] Sobre os custos da Independência ver Amaral, Roberto. “Introdução à Independência”, apud Bonavides, Paulo e Amaral, Roberto. Ob. Cit. Vol. I, p. 208
[8] Sobre as insurgências populares pontuando a história do Brasil ver Penna, Lincoln Abreu. República e insurgências-lutas de classes na cidade e no campo. Ed. Autografia. Rio de Janeiro. 2021.