07.08.24

“Não são apenas os vivos que nos atormentam, os mortos também. Le mort saisit le vif!”. Karl Marx. Prólogo à primeira edição de O capital. (1867)

Roberto Amaral*

A história – consabidamente algo muito distinto das coleções de datas e biografias  — se não define o futuro, nem o antecipa,  ajuda-nos a compreender o presente, ensejando as condições  necessárias  para a intervenção na realidade. É quando assumimos o papel de sujeito-histórico. Como considerar a chamada primeira guerra mundial sem ter presente o conflito de hegemonia que opunha o expansionismo da Alemanha industrializada ao Ocidente europeu, ainda dependente de suas fontes coloniais? A segunda guerra mundial é curialmente citada como herança mal resolvida do conflito 1914-1919, por seu turno um desdobramento de seguidos confrontos, comerciais, políticos e bélicos, entre as potências europeias, senhoras de baraço e cutelo do mundo de então. Travava-se, naquele teatro, como se travaria em 1939, como se trava nos dias presentes, uma disputa de vida ou morte em torno da hegemonia mundial. E a história não conhece uma só hipótese de resolução desse impasse sem o apelo ao embate armado.  A guerra, nunca será demais repetir, é a continuação, por outros meios, da política (Clausewitz), e quase sempre se segue ao fracasso das negociações. Exemplo é oferecido pela  paz de Versalles: fruto da guerra, imporia uma outra, ainda mais violenta, para consertá-la.

Nenhum grande impasse se apresenta em sua feição completa no início das hostilidades. Semelham  um quebra cabeça, que se vai montando peça por peça, até sua configuração plena. A invasão da Sérvia pelo Império Austro-Húngaro,  em julho de 1914, é consignada como o ato inaugural do primeiro grande conflito do século. Mas o cenário daquela altura havia sido antecipado, para quem quis vê-la,  por uma significativa política de acordos militares, como a Tríplice Aliança (Áustria-Hungria, Alemanha e Itália) e a Tríplice Entente (França, Rússia e Reino Unido), que começam a tomar corpo nos finais do século XIX, para adquirir sua compleição final em 1907. Não se pode falar em surpresas. Nesse tempo, as forças de direita (então como agora) estimulam o nacionalismo –gênero de que a xenofobia  é sua doença mais perniciosa –,  enquanto exacerba-se  a disputa por colônias e  cresce a rapina de recursos naturais e a disputa de mercados em todo o mundo (uma inevitabilidade do desenvolvimento capitalista), alimentando o militarismo, a alma mãe das guerras, no qual se sustenta.

De igual modo,  a segunda guerra mundial não se apresentou  como um raio em céu azul, e muito se afirma como resposta incontornável às condições leoninas que os vencedores decretaram  contra os vencidos quando da assinatura incondicional do Tratado de Versalles: a imposição à Alemanha de impagáveis indenizações  financeiras, confisco de parte do território e limitações ao seu aparato militar. Às represálias dos vencedores, soma-se, com peso incomparável, a crise de 1930. Mas a hecatombe social alemã remonta a  pelo menos 1923, quando se abraçam hiperinflação, desemprego massivo e recessão. Por sinal, registra-se em novembro desse ano a primeira tentativa de tomada do poder,  por Hitler e pelo Partido Nazista:  o  frustrado “putsch da Cervejaria” de Munique, como seria registrado pela história. O objeto da fúria era a Republica de Weimar, espremida entre o fim da primeira guerra e a abdicação de Guilherme II,  e a ascensão de Hitler. O interlúdio democrático, desgraçadamente, colecionaria um rol de frustrações palmilhando as sendas que serão percorridas  pelo projeto totalitário, que em poucos anos manchará o mapa europeu e se espalhará pelo mundo.

A ascensão dos regimes totalitários foi, naquela altura, como parece ser ainda agora, ignorada em suas consequências, embora os sinais de mau tempo fossem assinalados sem parcimônia, um após  o outro. A história nos lembra a Itália fascista invadindo  e anexando a Etiópia em 1935, quando, do outro lado do mundo, o Japão, em 1931, dera asas ao expansionismo territorial (a pedra de toque do militarismo alemão) com a invasão da Mandchuria, peça preparatória da invasão da China em 1937. Da mesma forma, o acirramento racista contra emigrantes, em toda a Europa, e mais precisamente, hoje, nos EUA (atingindo igualmente afrodescendentes e latinos) e na Europa de um modo geral  e particularmente na  França e na Inglaterra. Nada de novo.  Na Alemanha, as perseguições aos judeus, comunistas e ciganos e aos intelectuais progressistas, antecedem e preparam  a tomada do poder: as organizações paramilitares do Partido Nazista, como os  Camisas Pardas,  datam de 1920.

A historiografia, em sua unanimidade, guarda a invasão da Polônia (1939) pela Alemanha como o ponto de partida da II Guerra Mundial. Para isso passa batida pela remilitarização da Renânia em 1936 e a anexação da Áustria em 1938. E, sobretudo, ignora a essência do nazifascismo, e os desdobramentos das reclamações por “espaço vital”.

Todo grande conflito se anuncia mediante tensões políticas que se desenvolvem em um crescendo como ondas que propagam segundo os ventos soprados pelas estratégias geopolíticas. Ademais, esses conflitos revelam uma tessitura lógica que vejo na antessala das duas guerras, como igualmente o identifico na crônica dos dias presentes.  Varia o modus faciendi, mas o significado e o desdobramento das tensões se repetem, como se repete nossa desatenção.

Vencida a segunda grande guerra, dividido o mundo nos termos da Conferência de Ialta (1945), seguiu-se a “guerra fria”, assim nomeado o conflito político, militar e ideológico entre o Ocidente, liderado pelos EUA,  e a URSS, cabeça do que se identificara como “leste europeu”.  Os dois polos se guerreiam mediante confrontos levados a cabo por procuradores. Trata-se de história conhecida, como capítulo de uma novela sediça.  A URSS se espalha no mundo, principalmente emprestando força política e militar às guerras de libertação nacional que tomam conta principalmente da África e da Ásia. As grandes potências ordenariam a política de confrontos fora de seus territórios. Nessa quadra,  quase tudo é permitido,  contanto que seja evitado o embate direto. E assim  chegámos  a uma lista de centenas de conflitos, insurgências, invasões, revoluções civis, lutas de liberação nacional e golpes de Estado que percorre o planeta e não poupa a América Latina. O Brasil jamais se esquecerá do 1º. de abril de 1964, e do papel nele exercido pelos EUA.

O quadro de nossos dias não é diverso, se considerarmos que no posto antes ocupado pela URSS se encontra a China.

A transição da guerra por meios tradicionais para eventual duelo  nuclear,  assustava a todos, com a hipótese   do apocalipse. Esse é o quadro até o suicídio da URSS e o fim do que se chamava “socialismo real”. Cessa a “guerra fria” e se instala a hegemonia política e militar dos EUA. O fim do unilateralismo, porém,  dar-se-ia,  já nos tempos presentes, com a ascensão da Eurásia, liderada pela China, com seu espantoso desenvolvimento econômico, tecnológico e, consequentemente, industrial e militar. As contingências geopolíticas fazem da Rússia capitalista, em guerra sem fim previsível,  uma aliada  de primeira linha, levando consigo o maior arsenal de ogivas nucleares do mundo. O unilateralismo  cede ao multilateralismo (ao lado da China emergem novos atores, caso que é o da Índia), e uma vez mais se coloca para o mundo, como se colocara lá atrás na primeira linha das duas guerras mundiais, uma nova disputa de boco pela hegemonia. Voltamos a conviver com tensões, desta feita ainda mais graves do que as anunciadoras dos dois conflitos mundiais do século passado. Os confrontos,  diretos ou operados por procuração,  se instalam em todos os continentes, e a crise do capitalismo financeiro monopolista (um indicador são os atuais temores de recessão nos EUA, a longa recessão japonesa e o crash da bolsa de Tóquio) deve reacender-se em tempos próximos, convivendo com uma era de guerras jamais conhecida no passado recente, guerras só aparentemente localizadas, pois, ao fim e ao cabo, cruzam  interesses que dizem respeito às potências em duelo. Não é possível ignorar o cenário de guerra, nem a linguagem belicista da OTAN e da Comunidade Europeia. Depois da África, do Oriente e da Ásia, com sparrings escolhidos e que servem para manter os marines em forma, a guerra chega à Europa, com a invasão levada a cabo pela Rússia contra o território da  Ucrânia (por seu turno defendida com armas da OTHAN e recursos financeiros e equipamentos dos EUA e da comunidade europeia) e promete incendiar o Oriente Médio. Mais do que pura loucura, há muito de consciência política e estratégia no  genocídio dos palestinos pelo Estado sionista de Israel e suas provocações ao Irã e seus bombardeios no Líbano. Trata-se de  esforço  por  alastrar o cenário da guerra, que, por outras formas, encetam os EUA e a Comunidade Europeia.

Associada às formas clássicas da guerra, sempre vigentes, ingressamos, o mundo como vítima, em uma nova modalidade de combate, insidioso, definido como Guerra híbrida, que o professor Manuel Domingos Neto  define como “o confronto em que um vasto leque de operações não necessariamente letais ganham precedência sobre os procedimentos militares convencionais”. Essas operações compreendem, entre outras medidas,  embargos comerciais  e tecnológicos, e a  inafastável batalha político-ideológica.  Entram em cena, como  expedientes de guerra, ataques cibernéticos, ações dirigidas de hackers, desinformação, guerra econômica, etc. No governo  de Barack  Obama o telefone da presidente Dilma Rousseff foi grampeado, e invadidos por espiões cibernéticos os computadores da Petrobrás. E não estávamos e não estamos em guerra com o império.

Como a guerra é  anunciada por sinais aparentemente isolados entre si, a boa cautela nos aconselha tentar decifrar a esfinge.

* Com a colaboração de Pedro Amaral