por Roberto Amaral*
(Autor de História do presente- conciliação, desigualdade e desafios. Ed. Expressão Popular e Books Kindle)

Deve-se a Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, 1936) esta frase lapidar que resume a formação autoritária de nosso país: “A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido”. A assertiva permanece dolorosamente atual. A classe dominante brasileira jamais se conciliou mesmo com a democracia clássica das liberdades formais, puramente política, à qual se referia Sérgio Buarque.  Assim a casa-grande, que fez o império e proclamou a república, assim seus herdeiros de hoje, o agronegócio primário-exportador, e os especuladores da Faria Lima, o chamado “mercado”, que controla o mais reacionário Congresso de quantos tem notícia a historiografia brasileira. Golpear a democracia,  qualquer, quando ela logra sobreviver, é a alternativa de que os donos do poder sempre lançam mão (e muitos são os instrumentos de que dispõem) quando lhes parece que as nuvens no horizonte longínquo insinuam a formação de governos (logo classificados de “populistas”) preocupados ora com o desenvolvimento nacional soberano, ora com a simples proteção dos deserdados do capitalismo, e assim buscando promover algum trabalho, alguma previdência social, alguma valorização dos salários, um pedaço de terra para nele o sem teto e sem terra trabalhar e matar a fome.  O varguismo juntou essa duas pontas, e é conhecida a safra que colheu.

Do mal-entendido apontado por Sérgio Buarque se desdobra a intermitência democrática, relembrada recentemente por José de Souza Martins (“O país dos intervalos democráticos”. Valor, 6/10/2023). As experiências democráticas, no Brasil, são sempre pro tempore. A análise se conforma na república, pois seria de serra acima pensar em algo não autoritário, não reacionário, seja na colônia seja no império, fundado no latifúndio e no escravismo, no voto censitário e no poder moderador do monarca, que a caserna tenta tomar para si. Mas na República dos fardados e da lavoura mineiro-paulista, aquela que chega aos anos 1930, algo com ares de ordem democrática (na sua estrita acepção política, anos-luz distante de avanços sociais) apenas se pode considerar o regime nascido com a efêmera constituição de 1934, incompatível, porém, com o projeto do caudilho que já habitava o Palácio do Catete. A promessa weimariana é devorada pelos oito anos da ditadura do “Estado Novo”, nascida em 1937 e derruída em 1945 pelas mãos dos mesmos generais que a haviam instituído e sustentado. Finalmente nos encontrávamos próximos de um processo eleitoral (ainda que eivado da fraude que o deslegitima), e teríamos uma constituinte, em 1946, substituindo a outorga de príncipes e ditadores. É a nossa intermitência democrática, limitadamente formal, mas que, aos trancos e barrancos, atravessando golpes e tentativas de golpes de Estado,  nos conduz até 1964, e ao reencontro com  a realidade de nosso atraso político: o golpe militar de 1º de abril, que nos impôs 21 anos de ditadura com seus torturadores impunes e os cadáveres insepultos de suas vítimas, e a tragédia política que ainda hoje nos afeta, como mostra a história recente.
De uma forma ou de outra pode-se dizer que o intervalo que vem da constituinte de 1988 aos dias de hoje consigna 35 anos de algo muito semelhante a um período democrático,  que nos pede um brinde na próxima virada de ano. Mas a história não é linear.

Há transformações sociais e econômicas que perfuram a superfície conhecida, ameaças que falam à qualidade do regime, exigindo denúncia e combate que começa com sua análise, e o ponto de partida é a tomada de consciência do refluxo do pensamento e da ação dos partidos de esquerda, uma crise que não é de nossos dias, pois remonta à fratura do socialismo real, mas que se agrava entre nós a partir dos primeiros sucessos eleitorais de centro-esquerda, que levaram nossas organizações e nossas lideranças a confundir tática eleitoral (transformada em técnica mercadológica comum à esquerda e à direita) com estratégia. Ao fim e ao cabo, nos tornamos todos “social-democratas”, porque à noite todos os gatos são pardos. Com o recuo dos socialistas de um modo geral, dos comunistas e dos trabalhistas, das organizações políticas e dos movimentos sociais, das chamadas forças progressistas e democráticas, e do sindicalismo,  estávamos de fato renunciando à batalha político-ideológica. No geral renunciamos às políticas de organização e à militância. E na política, como na guerra, como na vida, não existe vácuo. Deixada vazia, sem mobilização, à margem de qualquer proselitismo, a vida real – o chão de fábrica, as organizações sindicais e populares, as favelas e as periferias das cidades – abriu-se à pregação unilateral da direita, ainda mais instrumentalizada, acionando  seus aparelhos de sempre, o púlpito e as carteiras dos bancos, o neopentecostalismo e as milícias. Companheiros de boa cepa se dizem surpresos com o mundo que se revela a seus olhos como a mudança brusca de cenário em peça trágico-cômica. Esquecem-se  de que em política, e certamente em tudo o mais, não há almoço grátis.

O ponto de advertência, para a centro-esquerda e a esquerda orgânica, poderia ter sido os idos de junho de 2013, mas as ilusões das aparências não nos permitiram conhecer movimentações tectônicas que, silenciosas, alteram a formação política da sociedade, que supúnhamos cristalizada desde as eleições de  2002.

Assinalo o ano de 2013 como o início de um período  novo, ou próprio, uma identidade em face daquele período maior, já referido, de intermitência democrática, aberto com a reconstitucionalização de 1988. É o período que chega aos nossos dias com indicadores de seu agravamento . Nele contamos a difícil eleição de Dilma Rousseff em 2014, a ditadura da Câmara dos Deputados em 2015 inviabilizando o segundo mandato de Dilma Rousseff, o golpe de 2016, o governo preâmbulo de Michel Temer, a Lava Jato e sua sequência de golpes jurídico-políticos, a eleição e o governo Bolsonaro, as eleições de 2022, a posse de Lula e a intentona de 8 de janeiro deste ano. No momento, uma expectativa: o governo Lula, um projeto ainda por ser que a direita intenta inviabilizar. Como se nota, são muitos fatos e mutas transformações políticas num espaço de tempo irrelevante do ponto de vista histórico: dez anos!  E nessa curta e turbulenta jornada o elemento mais destacável, pelas suas consequências (de toda ordem), é essa emergência da extrema-direita, como ação, como partido, como grupo de pressão, alterando profundamente a aquarela política brasileira, e as promessas possíveis da democracia, tão jovem quanto frágil e ameaçada.

Não há como identificar o apogeu da emergência dessa direita, e muito menos é razoável estimar seu declínio, senão dando asas ao subjetivismo. Sem maiores riscos, porém, podemos dizer que seu ápice ainda não foi a eleição de Bolsonaro e o retorno do mando da caserna, com seus quatro anos de ignomínia impostos ao povo brasileiro; de outra parte seu declínio não deve ser identificado com a derrota nas eleições de 2022. O fato objetivo é este: a extrema-direita, lavrando em solo conservador de fundas raízes religiosas e primitivas, caminhando sob ventos favoráveis soprados pela conjuntura internacional, encontra-se, entre nós, fortalecida e organizada como jamais esteve em toda a vida republicana. Supera o apogeu dos tempos do mandarinato militar, pois hoje é força político-econômica que, se no plano internacional mantém vínculos com poderosos grupos econômicos reacionários,  militares e civis, no plano interno é a força política da classe dominante, com notórias ramificações na caserna e inegável apoio nas grandes massas. A direita com seus penduricalhos, aos quais se somam os velhos quadros do velho centrão (velhos reacionários, assistencialistas, negocistas, despachantes de altos interesses) e os “novos” empreendedores, controla com mão de ferro o Congresso Nacional. Trata-se de um partido no rigor do termo, ente orgânico com objetivo e interesses claros; impõe ao país uma pauta reacionária, conservadora, regressiva, empenhada em impedir avanços sociais, quaisquer, e impor retrocessos. E, para não fugir à sua natureza, os avanços políticos se dão em meio a barganhas.

Em um de seus muitos golpes e tentativas de golpe de Estado, os militares, não podendo impedir a posse de João Goulart, impuseram ao país (1961) (um parlamentarismo de fancaria rejeitado pela soberania popular em plebiscito. Agora, a partir dos ensaios de Eduardo Cunha, o êmulo moral e político de Arthur Lira, o Congresso faz mais, impõe um parlamentarismo de fato (assim imune a plebiscito revocatório), que manieta o executivo ao limite de impedi-lo de governar; transfere para a Câmara dos Deputados funções de governança, rejeita as propostas do Planalto sancionadas pela soberania popular nas eleições que elegeram o presidente da república, elege despesas sem o ônus da responsabilidade executiva, impõe o ajuste fiscal na mesma medida em que aumenta os gastos com as campanhas dos atuais parlamentares, em busca de reeleição, valendo-se dos recursos negados ao erário para alimentar o clientelismo depravado e os currais eleitorais.

Após a “democracia à brasileira”, inventada pelo general Castello Branco, o presidente da Câmara nos impõe um “presidencialismo à moda alagoana”, no qual o presidente da república não governa e o deputado Arthur Lira,  bedel da Câmara, trafica: com os poderes ensejados pelo Regimento, decide o que entra e o que não entra na pauta das votações, escolhe os relatores a seu bel talante  e decide o que pode e o que não pode ser aprovado, segundo o catecismo da direita decifrado ao ritmo de negociatas. Para cada votação importante, se a quiser ver aprovada, o governo deverá ceder o cangote para a sangria vil: uma vez é uma diretoria do Banco do Brasil, outra um certo ministério, depois outro. De outra vez a prenda é a Caixa Econômica Federal (R$ 16 bilhões em depósitos); no dia seguinte, não conseguindo o controle do FNDE (R$ 84 bilhões), opta por uma sua diretoria. Ora isso, ora aquilo, e assim vai sendo destratada a república, segundo o jogo dos mercadores.

O presidente da Câmara dos Deputados, apoiado no silêncio da cidadania país, está revogando a república que subiu a rampa do Planalto no dia 1º de janeiro. Será que ninguém se dá conta disto e de seu significado? O presidente da república não pode deixar-se imolar, e terá todas as condições de  reverter o quadro pernicioso, se falar ao país que deseja ouvi-lo.

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Caos nas escolas e na Câmara dos Deputados – Tema de vital importância para a Educação brasileira – e o futuro do país e  de milhões de jovens – vive momento decisivo na Câmara dos Deputados: a reforma do Ensino Médio. Aproveitando  a hesitação do MEC, jogando na ampliação do domínio do Centrão sobre o FNDE, especula-se, Arthur Lira entregou a relatoria do PL 5230/23 para ninguém menos que Mendonça Filho, pai da “reforma” privatizante e precarizante imposta por Temer e abraçada por Jair Bolsonaro. Na última quarta-feira  (13), lixando-se para o repúdio dos educadores à proposta, o plenário da Câmara aprovou requerimento de urgência para que o Projeto fosse votado a toque de caixa. E nessa noite fatídica alguns certos dados chamaram a atenção: apenas a Federação PSOL-Rede e a Federação PT-PCdoB-PV orientaram voto contrário – mas no PT alguns deputados, como o Líder do Governo, divergiram dessa orientação. Por sinal, a Liderança do Governo, pela voz de Pedro Campos (PSB-PE), orientou voto favorável à urgência para a apreciação do Substitutivo de Mendonça Filho, que desconstrói a proposta do MEC. O que de certa forma surpreende, pois há poucos dias o presidente Lula solicitou a retirada da urgência constitucional com que a matéria chegara ao Congresso.

Ora, o projeto da nossa direita para a Educação brasileira – retrógrado de fio a pavio – é deveras conhecido, e Mendonça, Temer e Bolsonaro o representam de modo exemplar. O que não parece claro é o que a centro-esquerda pretende de fato.

* Com a colaboração de Pedro Amaral