Roberto Amaral
“O povo alemão é um só corpo, mas sua integridade está ameaçada. Para manter a saúde do povo, é preciso curar o corpo infestado de parasitas.” – Adolf Hitler, Minha Luta
“Nem eletricidade, nem comida, nem água, nem gás. Estamos lidando com animais humanos e agindo de acordo.” – Yoav Gallant, Ministro da Defesa de Israel
Concerto de elos, a História é tecida por fatos que se explicam uns pelos outros, como as ondas do mar, que se parecem autônomas, quando toda vaga é a sequência da anterior e ao mesmo tempo o impulso da onda seguinte. Um feito, um evento, uma transformação social, uma ruptura ou uma composição explicam outros sucessos, numa cadeia de interdependência causal em que atuam elementos políticos, econômicos, culturais e sociais, em níveis que não podemos estabelecer É essa correlação sequencial que dá sentido aos acontecimentos e à vida política, o produto dialético do encontro do conflito com a harmonia, entre racionalidade e irracionalidade, arbítrio e necessidade, força e debilidades, contradições e antíteses.
O fato histórico é sempre contingente, fixado em espaço certo, fungível e irrecuperável, não repetível senão nas clássicas formações de farsa e tragédia. Assim se explica porque o processo social é um continuum: os mortos acicatam os vivos, e o passado não reconhece seu lugar; está sempre presente. Descurar a história é a opção certa para o erro de avaliação, ou a medida certa para a intervenção distorcida.
Uma das formas mais corriqueiras de fugir da realidade, e assim fugir de seu significado para emprestar-lhe outro, é tratá-lo como fenômeno isolado, autônomo, desistorizado. É o que faz a grande imprensa ocidental soi dissant livre e isenta, embora dependente do grande capital internacional, que lhe fornece sumo e ideologia, e dita sua versão particularíssima dos fatos, quando, sabidamente, a história é uma sequência de causalidades. Como na ciência, a história não conhece efeito sem causa: a “paz” só se proclama depois da guerra.
A política, porém, pode guardar conceitos distintos para fenômenos semelhantes. A chamada “opinião pública internacional” grafou como “crime contra o direito internacional” a invasão da Ucrânia por uma Rússia que alegava o direito de defesa em face das ameaças à sua segurança. E não há dúvida de que se tratam de crimes, a invasão e a ocupação. Mas para a mesma opinião pública não constituem crimes a invasão de Gaza e o assassinato de milhares de civis. Ninguém ousa chamar às barras do tribunal penal internacional, como criminoso de guerra, que é, o comandante do ataque genocida contra os palestinos.
A crise de hoje no Oriente médio chega como escombro das últimas guerras do mundo ocidental, e se insere no jogo da disputa geopolítica das últimas décadas – a mudança de guarda. E mais se acirra quanto mais os EUA desconfiam da fatalidade cíclica de sua decadência, que, no entanto, cobrará ainda muitas guerras até seu desfecho, que pode ser ou não o temido armagedon. Trata-se, por enquanto, a guerra de hoje, de capítulo doloroso, mas ainda não o mais cruel, de um vasto derramamento de sangue. É o raio antes da tempestade. Até seu epílogo viveremos, como vivemos, à mercê de todas as guerras: a guerra econômica, os bloqueios, as guerras híbridas, as guerras aparentemente isoladas, a guerra ideológica preparando o terreno para o confronto de forças e a dominação, escrevendo a versão dos fatos, que é sempre a do vencedor.
Em O que fazer com o militar (www.gabinetedeleitura.com), Manuel Domingos Neto observa que todas as guerras compreendem o permanente combate de opinião, a estratégica conquista de “corações e mentes”. Essa infantaria prepara o desembarque dos “marines” de todos os exércitos. Somos instrumento das disputas de espaço, marcas do conflito que põe em confronto as potências que conformam a disputa hegemônica. Somos parte, pela simples condição de existência, mas sem podermos ser sujeito do processo histórico, ditado pela correlação de forças em uma geopolítica que nos é imposta. A guerra é mundial porque interfere nos interesses das forças que disputam a hegemonia do globo. O conflito, que se instala no Oriente e divide os árabes, já chegou à Europa depois de contaminar a Ásia e quase destruir a África, fenômeno pouco valorado porque não vitima brancos. Uma força é o mar, outra o rochedo. Em meio ao entrechoque está o molusco, que são as periferias do poder. Não dispõem de audiência, nem são ouvidas quando ousam falar. A troca de mando às vezes cobra séculos, pede uma longa gestação, lenta e grave, e a délivrance é de difícil estimativa. Estamos em trânsito entre a pretensão de unipolaridade comandada pelos EUA, no rasto da debacle da URSS, e a pretensão de bipolaridade anunciada com a emergência da Eurásia, liderada por uma China capitalista e poderosa. O poder não se compartilha, como ensinou Maquiavel e cantou o bardo com a triste saga do infeliz Rei Lear. Assim os principados, assim os impérios, assim as repúblicas, na guerra e na paz, que, no final das contas são irmãs siamesas.
Em nome dessa beligerância, necessidade do império, o primeiro-ministro de Israel se dirige aos palestinos, que sonha eliminar: “Vamos transformar Gaza numa ilha deserta. Aos cidadãos de Gaza eu digo: vocês devem partir agora. Vamos atacar todos e cada um dos cantos da faixa”.
Mas os palestinos não têm para onde fugir, não mais estão livres as grandes jornadas pelo Egito, embora carreguem nas costas o destino-penitência que já foi dos hebreus. Fogem de casa para tentar sobreviver, mas não encontram trilha para caminhar, nem um Moisés para lhes abrir o Mar Vermelho. Não há mais Canaã e dos palestinos foi tomada a terra prometida. A ONU, já sem razão de ser, não tem forças sequer para negociar um corredor humanitário. Praticamente se limita a lançar apelos exasperados nas redes sociais, como o cidadão comum, perplexo e impotente.
Com seus mais de dois milhões de habitantes, virtuais prisioneiros, o gueto de Gaza é o maior e mais superlotado conjunto prisional do mundo. Algo como milhares de Carandirus a céu aberto.
Quem é a potência que ameaça esmagar Gaza? Israel, Estado protetorado dos EUA, por quem é armado, e hoje protegido pelo que o Império tem de mais sofisticado como arma de guerra; investe R$ 120 bilhões nas suas forças armadas e serviços de segurança. Controla as fronteiras, os céus, a costa marítima, as telecomunicações e a economia da Palestina.
Israel ocupa 22 mil km² abrigando uma população de 9, 3 milhões de habitantes. Gaza é uma estreita faixa de 365 km² esmagada entre o inimigo luciferino e o mar.
O livro dessa história já tem muitas páginas vividas, e não há nada de novo no front. Entre 1933 e 1936, cerca de 60.000 judeus chegam à Palestina, fugindo às perseguições do nazismo. Em 1948 a ONU consagra a fundação do Estado de Israel ocupando mais de 78% do território da Palestina. O preço não seria módico para os despejados: destruídas 530 aldeias, 15 mil palestinos assassinados, 750.000 condenados ao exílio na sua própria terra. A história se repete, como tragédia. Gaza é a Varsóvia do século XXI, sem os louros do heroísmo que adorna o Levante daqueles 60 mil judeus a quem só foi dado escolher o meio da morte certa: nas câmeras de extermínio dos campos de concentração, ou na batalha desigual contra o opressor. Antes de se tornar a terra arrasada de hoje, Gaza, aquela estreita faixa espremida nas fímbrias do mar, era habitada por mais de dois milhões de pessoas. Cabe-lhes agora, como coube aos judeus do Gueto, tão-só escolher o instrumento da morte, muito próximo do suicídio: permanecer sob os bombardeios ou seguir a diáspora forçada, sem rumo, sem esperança.
Os judeus do Gueto optaram por morrer lutando, e lhes redemos merecidas homenagens. Agora dizemos aos palestinos que não lutem.
Gaza foi transformada em monstruoso gueto a céu aberto. O massacre é a Guernica do mal iniciado século XXI, à espera de um Picasso. Mas esse horror desperta apenas estupefação, em meio à indiferença e cinismo que confundem a moralmente imperiosa defesa da vida de palestinos e outros não-brancos como saudação ao terrorismo, indefensável em quaisquer de suas ações. O maniqueísmo é o mais primitivo dos julgamentos humanos.
As crianças israelenses precisam voltar a suas casas em Israel sãs e salvas, para o afago de suas mães, para os abraços de suas irmãs e irmãos nas linhas de combate; precisam voltar para suas famílias, na sua maioria colonos nascidos fora de Israel. Mas as crianças palestinas não têm para onde voltar. Já não têm lar; tomaram-lhes a terra sua e de seus antepassados, e hoje são condenadas a sumir da face da terra. Muitas já são órfãs desta guerra e de outras guerras.
Na preparação dos ataques contra Gaza e seus civis – incluindo crianças, mulheres e velhos, escolas e hospitais, bairros e prédios residenciais – a democracia ocidental-cristã, com as armas de Israel, cortou o acesso dos palestinos a água, energia, alimentos e medicamentos. E foi determinada a diáspora em curso. Aos que tentam fugir na iminência de nova Nakba, ou caástrofe, o Egito nega passagem, enquanto as belonaves americanas controlam o Mediterrâneo. Sua simples presença instila temor nos civis, mas o léxico político hegemônico não permite a classificação de terrorismo.
Nada, porém, é suficiente para mexer com os brios cristãos. Ao final, sobrarão destroços, sucata de tudo, mas principalmente destroços de gente. Mas essa gente não conta. São palestinos, povo sem pátria, sem terra, de quem nós (os ocidentais) tomamos tudo: a vida dos que perecem e a esperança dos que sobreviverem; a todos negamos a expectativa de existência. Ao fim e ao cabo, o pó; amanhã tão-só um registro histórico, como Lídice. E o inútil Conselho de Segurança da ONU continuará se reunindo e os EUA (que acabam de vetar resolução proposta pelo Brasil, que pedia um cessar-fogo entre o Hamas e a força ocupante) a ditar regras sobre democracia e liberdade, pensando em sua crise interna.
O espetáculo visual dos bombardeios riscando os céus, trazido pelos noticiários da televisão, se apresenta para nosso desfastio pequeno-burguês como se fôra um videogame, tal qual aquele em que se converteu o bombardeio do Iraque pelos EUA. Imagens das quais retiramos a alma. Fascinados pelo show das bombas, não nos perguntamos sobre que e sobre quem elas caem. O espetáculo de mísseis e drones iluminando os céus de uma Gaza às escuras se justifica por si, em sua estética mórbida.
O raio de sol em céu azul, a suposta surpresa do atentado terrorista, é simplesmente um dos momentos cruciais de 75 anos de ocupação e 16 anos de embargo sobre Gaza. Como lembrava William Faulkner: o passado nunca está morto; aliás, nunca é passado. De onde vêm as surpresas?
O Israel feito Estado pela “comunidade internacional” em louvor à liberdade e ao direito de ser, é hoje um Estado teológico-colonial, uma força de ocupação, anacronismo histórico alimentado pela política expansionista e guerreira do Pentágono, voltada à disputa presente e futura com a Eurásia, como o náufrago que tenta fugir das ondas. Como a Inglaterra ao tempo de seu Império precisou refazer o mapa do Oriente, os EUA, ocupada a Europa, estão determinados em conter em suas mãos o Oriente Médio. Fazê-lo guerrear, dividir o mundo árabe, ameaçar de extinção sociedades milenares, é alternativa tática a serviço da hegemonia.
O tempo está ficando escasso para uma humanidade sem luz.
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Perguntar jamais ofende – Por que, de fato, o jornalista Hélio Doyle foi exonerado da presidência da Empresa Brasil de Comunicação (EBC)? O governo nos deve explicação.