Roberto Amaral*
A eleição de 2002 representou algo de revolucionário, porque, nas circunstâncias, nada menos do que revolucionário poderia significar a eleição para a presidência da republica, após 21 anos da ditadura militar, de um operário, ex-emigrante nordestino. Amargávamos uma frustrante conciliação política (à revelia da vontade nacional, como sempre) que nos impôs uma “anistia” que premiava torturadores e a preeminência castrense no regime prometidamente de recuperação civil e democrática, ainda que não ungido pela soberania popular. Esta, chamada à vez 29 anos passados do pleito de 1960, o derradeiro antes do golpe militar, promovera a emergência de Fernando Collor, tragédia política que assinalaria a primeira grande crise da nova ordem, contornada com a ascensão do vice Itamar Franco, ao fim e ao cabo a plataforma que ensejaria a eleição e reeleição de Fernando Henrique Cardoso, que, vindo da grande frente contra a ditadura, se compusera com os militares e o grande capital, reinante desde sempre. Realizara-se a “democratização possível”, mas ainda permanecia distante a expectativa de um governo popular, e no plano econômico-político vencia o neoliberalismo que Itamar, antes de fazer de FHC seu ministro da Fazenda, sonhara conter.
Passados 17 anos da implosão do colégio eleitoral montado pelos militares para eleger Paulo Salim Maluf e três eleições diretas, esse era o quadro político nacional da abertura do terceiro milênio. Ainda pobre em sua transgenia política, mas incitando otimismo.
Os personagens mudam com a história que fazem. Entendendo as lições ditadas por três derrotas eleitorais seguidas (1989, 1994 e 1998), o Lula de 2002 distanciara-se de sua representação de 1989; esse resguardo foi decisivo para sua eleição (registre-se a “Carta aos brasileiros”) e, com alguns percalços, garantiu-lhe o governo. Ficara para trás o líder sindical das greves de São Bernardo e dos discursos da Vila Euclides, e o desafio de então era deter –
Ao fim do segundo mandato desce a rampa do Planalto, onde deixara Dilma Rousseff, ostentando inéditos 80% de aprovação popular.
A saga que se segue é recente e conhecida. O fato novo, mais desconcertante do que o golpe militar de 1964, porém, é a inédita eleição de um governo protofascista
Em 2022, Lula voltou à liça, e uma vez mais haviam mudado as condições históricas e o personagem. Diferentemente de 2002 – quando o desafio cobrava o avanço político –, a necessidade de agora era impedir a persistência do passado no presente. Venceu aquela que se proclamava como sua última batalha.
O Lula que volta à tona, mais velho, mais experiente e mais lido, é também um político mais decidido, mais apurado em suas ideias e convicções, mais informado das contradições do sistema social, mais cônscio da luta de classes e do papel do imperialismo na vida nacional. O apoio dos fardados à aventura protofascista, a sustentação da candidatura de Jair Bolsonaro e a resistência à sua (dele, Lula) posse – no limite da tentativa de golpe, ter-lhe-iam fornecido melhores luzes para compreender a questão militar, persistente e até aqui não enfrentada. Mais do que tudo, foram didáticos os episódios do inominável 8 de janeiro. Por fim, e certamente tão importante quanto tudo isso, chegava o presidente aos 77 anos, ciente de que lhe caberia, subordinado ao cinzel da história, a definição de sua própria biografia. Assim se resume um desafio pessoal incontornável, e se coloca o desafio do papel do indivíduo na História.
O novo Lula, renascido após 580 dias de cadeia, retemperado pela renovação do apoio popular, vencedor na mais renhida disputa eleitoral da vida republicana recente, responsável direto pela contenção do continuísmo protofascista, enfrenta, porém, no governo a tão duras penas conquistado, uma combinação de forças acachapante: à aliança da resistência militar e empresarial (notadamente do grande capital) soma-se a oposição congressual, sobretudo da Câmara dos Deputados, cujo chefe se porta como se primeiro-ministro fosse, tal a crise do presidencialismo, e nele, a fragilização do Executivo, cujas atribuições e poderes decaem, seja por força do protagonismo do judiciário e do legislativo, seja em face da ação de um banco central que não tergiversa no propósito de inviabilizar a política desenvolvimentista do governo – sem a qual o lulismo conhecerá o fracasso, que pode abrir caminho para novos e ainda mais trágicos retrocessos políticos, de que não se dá conta a casa-grande.
Até aqui, nada obstante as concessões a que se viu forçado a ceder na formulação e nas negociações do chamado “arcabouço fiscal”, Lula vem resistindo às pressões as mais fortes da Faria Lima, que intenta impor-lhe a cartilha neoliberal de governo que a soberania popular rejeitou, ao elegê-lo em 2022.
Conquistando no primeiro turno 48% do total de votos para presidente, o PT e seus aliados (PCdoB, PV, PSB e PSOL-Rede) tiveram, na mesma ocasião, desempenho desprezível para a Câmara dos Deputados, amealhando apenas 95 cadeiras num coletivo de 513 (ou seja, 18% do total), quando a maioria simples, o mínimo necessário para a aprovação de qualquer medida, inclusive travar a tramitação de qualquer proposta de impeachment, requer 257 votos. Este fato objetivo cobra consequências, como tudo na política, e ajuda a explicar as atuais dificuldades do presidente, além de nos trazer à lembrança a coerção que a Câmara dos Depurados exerceu sobre o governo Dilma Rousseff, até finalmente asfixiá-lo.
O sátrapa daquele então, como se sabe, fez escola. O atual presidente da Câmara, em recente convescote de lobistas em Londres, anunciou que o presidente da república não pode rever “os avanços do neoliberalismo” e muito menos as privatizações. O coronel promete defender o “legado das reformas”. Em entrevista a uma rádio paulista, quando maiores são as pressões parlamentares para liberação de verbas orçamentárias (pinguela do “orçamento secreto” sob sua gerência), diz que o governo precisa “descentralizar, confiar e delegar”. O recado não pode ser mais claro: o presidente da Câmara reclama a partilha do poder que a soberania popular confiou a Lula. Em artigo desta semana (O Globo, 17/05/2023) Bernardo Mello Franco nos dá a medida da crise do presidencialismo parlamentarizado por baixo: “Lira é o dono da pauta. Pode travar votações, engavetar projetos, criar dificuldades. Se ele não quiser, as ‘coisas’ não andam”.
E não estão andando. O impasse presente é o alto preço.
O jornal dos Marinhos (18/04/2023) registra que “Base e Centrão articulam novas derrotas ao governo”. Entre elas estariam mudanças na estrutura político-administrativa, com o objetivo de “retirar poderes de ministros petistas”.
Quando mais se vê pessoal e emocionalmente amadurecido e intelectualmente preparado para realizar um governo consagrador – no encontro do desenvolvimento nacional com o combate à pobreza e a erradicação da fome, o mantra de sua vida – , mais Lula dele se vê afastado pela conjuntura política. Quando maiores são as aspirações políticas sugerindo a aprovação histórica definitiva, quando mais coerente é sua decisão de não ceder às concessões lavradas nos dois primeiros mandados, mais se vê aprisionado pelas injunções da pequena política, sem as quais não poderá governar – embora, para salvar o mandato, possa ser obrigado a governar no contrapelo de seu projeto mais íntimo.
Desse desastre precisamos salvá-lo – e as expectativas se voltam para o movimento social – pois o que realmente está em jogo é o projeto de país que queremos, e não há alternativa ao atual governo, simplesmente porque o protofascismo, cujas garras já conhecemos, não é alternativa. E é o que está à espreita.
* Com a colaboração de Pedro Amaral