“A ciência, sem perder sua intimidade original com a filosofia, deveria servir para libertar o homem da submissão a um projeto único de pensar o mundo. Infelizmente, isso não ocorre, em razão do papel que hoje lhe é atribuído, a subordinação de sua função técnica na construção de um mundo pervertendo nosso cotidiano”.
Mario Novello (Manifesto Cósmico-I )
- INTRODUÇÃO
Ofereço estas reflexões como homenagem ao papel político de Mário Novello, cientista e intelectual orgânico que chega à filosofia conduzido pela harmonia, pela estética e pela profundidade dos princípios fundamentais que alicerçam as teorias da física, seja na visão clássica, seja na sequência das formulações quânticas. O pensamento criador que se alimenta no exercício da curiosidade como método, abrindo portas, criando sendas, fazendo o caminho ao caminhar, imaginando, conhecendo, descobrindo, muitas vezes sonhando, e sempre a desconfiar das verdades estabelecidas, do sabido e do consagrado, desbastando os dogmas, ou investindo no encantamento que é a reflexão sobre o universo, sede das estrelas e do homem.
Novello fez-se pensador, porque a ciência é uma visão de mundo, mas filósofo de uma física que – sem fazer tábua rasa do conhecimento acumulado – deseja planejada no Brasil, pensando o Brasil, a terra e sua gente, na rica trilha de José Leite Lopes. Uma ciência que é mais que um corpus de conhecimento: um manifesto de construção em aberto.
O cosmólogo rompe com a tradição da consciência alienada, a serviço do establisment, que se limita a reproduzir o pensamento forâneo, o dito e sabido, bem embalado, sem nada acrescentar de seu, senão adereços florais, servidor de uma ciência comprometida com a ordem, que objetiva conservar. Ao calcular-calcular estéril, Novello propõe o duvidar revolucionário; o pensar, o entender, o propor, o reformular. Refazer sendas, abrir novas veredas. Não lhe ocorre confundir algoritmo com pensamento. Na contramão da vulgata dos copistas nacionais, mas na boa escola dos cientistas sociais, dos quais se aproxima como um colega, cogita da realidade, para, conhecendo-a, nela intervir. Caminha do particular para o universal, do micro para o macrocosmo, para o universo, que o homem tanto expande quanto mais o conhece, e sempre descobre que conhece pouco. Dialeta, na cosmologia vai encontrar novos delineamentos para a física terrestre.
O conhecimento, porém, não é um fim em si, nem graça do Olimpo. Por isso mesmo não é isento. Ferramenta histórico-política, é produto da ação concreta de homens reais que refletem seu interesse de classe. O processo social, ao definir o papel do cientista e do filósofo, define o destino da ciência, tanto quanto da filosofia e da política. A ciência, produto social, é, a um tempo, criação e filosofia porque interfere no processo histórico e ao mesmo tempo busca explicá-lo. A ciência e a filosofia, como todas as manifestações culturais, são fenômenos sociais, e, assim, refletem interesses políticos. Não há fenômeno natural puro; o processo social modifica o mundo da natureza, em contínua mutação, e por ele é condicionado, numa relação dialética em que as partes mutuamente se fazem: as partes fazem e alteram o todo, que por seu turno interfere nas partes. Mas partes e todo integram uma mesma unidade.
Toda historiografia é ideológica, e seu sentido, portanto, é moldado pelo estudo da produção das ideias, fruto do processo social. O conhecimento não é a catalogação de indicadores, mas a reunião crítica das ideias, o que lhe dá sentido, pois desvela seu comprometimento de origem. A grande contribuição de Marx se estabelece ao ajustar a história das ideias – e, portanto, do conhecimento científico — à história da produção material pela via do estudo da produção econômico, sem, todavia, ignorar a ação de todos os demais intervenientes. A história, sempre em processo, se renova em razão de novas investigações; assim a ciência, assim a filosofia, assim o direito. Assim, finalmente, o que podemos chamar de conhecimento humano.
O mundo é um fato humano, portanto fenômeno político, e não há demarcação clara entre o histórico e a natureza, posto que o homem – em um contínuo trânsito evolutivo — integra a natureza, também ela em permanente formação. O homem faz a História e, ao mesmo tempo, à medida que evolui, amplia sua noção de Natureza.
Examinemos algumas das consequências dessa afirmação, e a primeira delas é que a existência do homem, isto é, sua maneira de ser, determina sua consciência do mundo.
Há uma relação dialética entre o fazer e o ser, o agir e o pensar. Sartre nos disse que a existência determina a essência. Marx nos ensinou que o papel do intelectual é conhecer a realidade para modificá-la. No século XVI nosso Pe. Antônio Vieira, teólogo e sábio, dizia que “o homem é suas ações”. Se me for permitido reunir o teólogo com o filósofo existencialista mais influente do século passado, direi que o homem – sujeito histórico – é responsável pela sociedade que organiza, pelo direito que seus interesses ditam, quase sempre pela força, pela ideologia que elabora, como instrumento de dominação, pelo quadro axiológico a cujo crivo submete as ações humanas. O cientista é responsável tanto pelo sucesso do desenvolvimento científico-tecnológico quanto pelo seu fracasso ético.
Ao fim e ao cabo, ciência e filosofia são uma ética; projetos humanos, comungam da mesma teleologia: a conquista de condições dignas da existência humana, que depende do progresso social, que é um projeto político, matizado pelos interesses de classe. O que implica a consagração de valores éticos e morais, também eles produto histórico-cultural.
O fenômeno social desconhece a acausalidade.
Novello abre o instigante Universo inacabado[1] com uma citação de Hegel, que bem resume sua visão da ciência:
“Jamais, jamais concluir uma paz com o dogma”.
Dogma, no texto do autor da Filosofia do espírito, é a adoração da certeza absoluta, da lei imutável, do pensamento estabelecido: o statu quo da história e da ciência, que, no entanto, como a filosofia, é o reino da dúvida. Consabidamente, as leis da física são formuladas para serem contestadas e as leis do desenvolvimento social aspiram à sua superação. A verdade científica é sempre provisória e dessa característica resulta sua riqueza. Admitir, por exemplo, que as leis da física são eternas, imutáveis, lembra Novello, é ter uma visão a-histórica dos processos do universo[2]. A imutabilidade das leis da física é uma incongruência semelhável à presunção de regras jurídicas imutáveis e eternas.
A história não é um conjunto de biografias, nem o rol de eventos: reflete o processo social, com a fidedignidade da imagem no espelho. Trata-se de um ser vivo. Neste sentido, é, como a ciência, um processo em construção e revisão. Como o universo, como a vida, como o homem, em permanente autoconstrução.
Novello nos diz que o universo está em formação e talvez se possa dizer que provavelmente jamais esteja acabado; e, se assim é, toda certeza, ou seja toda fé, ou seja, todo dogma, é reacionário e, em resumo, anticientífico.
É a vitória da dialética sobre a lógica formal, a vitória de Hegel e Marx sobre o aristotelismo.
A História é um livro que jamais terá concluído o último capítulo.
II. A historicidade do universo, de que resulta a historicidade da ciência (e suas (in)certezas)
“(…) concluímos que o universo está em formação, é inacabado, eternamente inacabado, submetido a um processo contínuo de formação, criação e destruição para além das limitações descritas no espaço-tempo”.
Mário Novello[3].
No seu Manifesto cósmico I, Novello contribui com a noção de historicidade do universo, que fôra colher, anuncia, nas lições da Ideologia alemã, de Marx-Engels: “Nós só reconhecemos uma ciência: a ciência da história”. Após o enunciado, propõe o aprofundamento da crítica-autocrítica no interior da atividade cientifica, acostumada à crença de que a ciência de um modo geral, e a física muito particularmente, lidam com verdades atemporais, acausais, isentas da contaminação com a realidade, o mundo fático. Refiro-me à sobrevivência entre cientistas de algo como uma “fé” segundo a qual as leis da física são “para sempre”, nada obstante o certificado da alteração das leis da natureza, intrínseca ao cosmos (“A totalidade do volume espacial do universo varia com o tempo cósmico”). A visão proposta por Novello, que ouso chamar de histórico-dialética, seria a abertura em uma caminhada rumo à compreensão do universo, tendo em sua fundamentação, agora são palavras suas, “a ideia de que a natureza possivelmente está ainda em formação. Não apenas em processos e fenômenos, mas na constituição de suas próprias leis”[4], por definição provisórias.
Toda nova teoria física contém suas predecessoras. A mecânica quântica, assim, contém a mecânica clássica e até o conjunto da física clássica, assim como toda ideia nova, ou toda nova filosofia, ou todo conhecimento, assimilou o pensamento anterior e superou suas contradições internas. Toda sucessão histórica de ideias é dialética e contém uma contínua acumulação/superação. Não existe 2 sem 1, e 1 não é o ponto de partida, porque existiu antes -1, e toda nova teoria contém o anúncio de sua superação (Aufhebung) “no sentido de que conteria de algum modo seus predecessores, embora não de uma maneira “mecânica” (não como subteorias), mas de um modo dialético”[5]. Imagine-se uma corrente lógica formada por elos sequenciais e indispensáveis. Longe da especulação, as teorias físicas não são criadas, mas descobertas e se oferecem à refutabilidade. Só é ciência o que é verificável. Toda ciência, voltamos a Marx e Engels, deve ser histórica. “A imagem de um universo pronto, com leis físicas eternas deve ceder lugar a uma estrutura volúvel, variável, dependente da posição espaço-tempo”[6]. A ideia de que as leis da física possam variar, na dependência do tempo cósmico, torna-se crucial. Nem a infalibilidade divina (que nossos antepassados foram procurar para aplacar sua ignorância), nem a “verdade científica”.
Engels, na sequência de Hegel (Filosofia da natureza), dirá, com Marx, que as ideias científicas não caem do céu: elas têm uma determinação histórica e social[7]. A dialética adquire seu sentido materialista. As leis físicas, sujeitas à comprovação empírica, são erigidas em cada época com a ajuda do conhecimento disponível. A ciência não pode deixar de estar embebida na filosofia.
A ciência não é um fenômeno solto no espaço intemporal: produto histórico é ao mesmo tempo fruto e agente do processo social onde atuam e interagem as mais diversas forças econômicas e políticas. Tanto quanto o direito, a religião e a filosofia, a ciência é uma ideologia e assim reflete os interesses ditados pela classe dominante. Reflete o contínuo processo de construção e reconstrução, morte e vida da natureza, em um universo em permanente mutação. A interação dialética é absoluta entre a ciência e a natureza, entre a filosofia e o processo social, entre a infraestrutura material e a superestrutura ideológica.
Talvez possamos acrescentar que a natureza – entenda-se como tal o universo – está em permanente formação, em contínuo processo de construção e refazimento. Tanto quanto a vida social, a formulação científica não tem história própria.
O filósofo propõe a autocrítica da ciência, critica o antropocentrismo e denuncia a manipulação do saber pelo establisment: “A autocrítica deve ser tal que possa exibir a atividade cientifica atual como sustentáculo de um modo técnico que tem, como consequência sub-reptícia, a devastação da natureza”[8].
Cientista que chegou à filosofia pelas boas sendas da física e sabe que seu dever é conhecer a realidade para modificá-la, contribuindo para alterar um mando de classe de 500 anos.
É a partir dessas formulações que ousamos pensar a tragédia brasileira como se apresenta em nossos dias.
É a homenagem ao meu alcance ao trabalho de um cientista de escol permanentemente preocupado com o destino de seu povo, vivamente empenhado em impedir que nossa província tão promissora se perca antes de realizar seu destino. A estrela ameaçada precisa luzir antes de morrer.
- A tragédia brasileira
Faz escuro mas eu canto
Thiago de Mello
Não conseguimos, como povo, formular nosso projeto de destino. Somos nossas circunstâncias e delas não nos libertamos. O Brasil permanece um país por construir. Uma província rica que, no entanto, ainda não se encontrou. Rio caudaloso à procura de sua foz, indeciso em seu rumo ditado pelas margens que o aprisionam.
Por que o Brasil não deu certo para seu povo? Continuamos esperando Godot: herdeiro de um passado construído sobre a destruição da terra e dos homens, populações nativas, africanos escravizados, pobres de toda ordem; perdido o presente, ficara a promessa de futuro anunciada por Stefan Zweig, eternamente adiada, como a linha do horizonte que se fasta quanto mais a perseguimos.
A história desses 200 anos de Independência reproduz a história dos 300 anos que nos levaram da feitoria a um império atrasado, escravista, latifundiário, genocida de indígenas e negros, e brancos pobres, extrativista e depredador do meio ambiente. Economia dependente, agroexportadora, destinada a atender à demanda europeia de produtos tropicais – indígenas escravizados, flora e fauna, madeira de tinta, açúcar, algodão, ouro e prata e café – numa trágica premonição do Brasil de hoje: orgulhoso exportador de minérios, grãos, carne, frango, importador de ideias, ciência e tecnologia. E às voltas com o espectro da fome que ronda os lares de sua população pobre.
Se na colônia e no império, sem história própria, nos fizemos como exportadores de mão-de-obra escrava e florestas devastadas, no século XX nos firmaríamos como exportadores de mão-de-obra barata, sobre explorada, e meio ambiente. No século XXI, ainda economia periférica, cumprimos a falsa vocação de suprir o centro econômico com os alimentos que sonegamos ao nosso povo. Renunciando à industrialização, nos conformamos como exportadores mal remunerados de commodities A modernização/inovação se dá naqueles setores essenciais à produção de matérias-primas de baixo custo para o consumo das economias hegemônicas, ou naqueles essenciais à acumulação do capital internacionalizado, caso que é do sistema financeiro.
Com a independência, essa que nos é dado comemorar, ao mesmo tempo em que nos apartávamos do decadente colonialismo português, nos imolamos de pés e mãos atados ao imperialismo britânico que negociara o extorsivo divórcio político com Lisboa. De colônia de uma potência declinante, nos transformamos em protetorado de um império implacável. A custos altíssimos – como, entre outros, o acordo leonino pelo qual nos obrigamos, até, a saldar a dívida externa contraída por Portugal à Inglaterra para financiar sua resistência militar à nossa separação. Ademais, como é sabido, D. João VI, no regresso a Lisboa em 1821, cuidara de levar consigo tudo que pudera raspar dos cofres públicos. Deixava para trás um país falido. Manteve-se, sob a preeminência britânica, a política colonial impeditiva de qualquer sorte de manufatura ou investimento em educação e ciência. Afinal, nenhum colonialismo convive bem com a circulação de conhecimento. Colônia, não podíamos concorrer com o comércio monopolizado pela metrópole. País independente, não podíamos fazer frente à manufatura inglesa. A saga da dependência chega aos nossos dias como desenvolvimento condicionado.
Fruto de uma coalizão de forças que detinha vínculos com Portugal, florescia uma sociedade autoritária – exigência da desigualdade – fundada na exploração do trabalho, no escravismo, no racismo de dominância masculina. Uma economia depredadora do meio ambiente, herdeira da ocupação territorial fundada na fantasia de uma natureza inesgotável. A destruição da natureza e o genocídio de sua gente, indígenas e africanos escravizados, era o passaporte para o progresso, que se chamava “colonização”. O genocídio seria o apanágio dos bandeirantes que ganharam na história oficial o título de desbravadores dos nossos sertões. Dos povos nativos foi retirado tudo: a liberdade, a terra, suas línguas, sua cultura, suas crenças, sua história. A obra nefanda do bacamarte do sertanista foi completada pela evangelização dos padres.
A independência não implicou progresso das forças produtivas, senão o fortalecimento da oligarquia latifundiária ligada ao tráfico e aos comerciantes portugueses e ingleses que dominam a economia da colônia e conservariam o mando na monarquia escravista. Economia periférica, as forças produtivas internas, e, consequentemente, as relações de produção e as relações sociais internas, eram condicionadas pelas relações externas. Assim também nossa visão de mundo e nossa auto visão. Nos víamos e nos vemos, ontem como hoje, pelos olhos dos colonizadores, cujos preconceitos assimilamos. Certamente aí radica o “complexo de vira-lata” ao qual se referiu Nelson Rodrigues, um dos melhores intérpretes do que os sociólogos talvez possam denominar de “alma nacional”.
Um dos mais eminentes pensadores liberais, Eugenio Gudin, escrevia, ainda nos meados do século passado, que o Brasil não podia aspirar à industrialização, pois sua “vocação” era a agricultura.
Vale a pena relê-lo.
Após indicar como fracassada e abandonada a experiência rooseveltiana do new deal, diz que a prioridade do Brasil deve ser a agricultura: “Para nós, brasileiros, basta que olhemos para a Argentina”. Escreve o fundador dos cursos de economia no Brasil, e patrono do IBRE-FGV:
“(…) E se continuarmos a expandir indústrias que só podem viver sob proteção de “pesadas” tarifas aduaneiras e do câmbio cadente, continuaremos a ser um país de pobreza, ao lado do rico país que é a Argentina”[9].
Tudo porque nosso vizinho supostamente havia optado por ser um país agrícola…
Em pleno terceiro milênio, militares organizados em torno do Instituto Sagres apresentam um programa de governo que eles, ameaçadoramente, esperavam ainda estar presidindo em 2035. Num saudosismo colonial, expressam o sonho de ver o Brasil como exportador de minérios e alimentos.[10]
O conhecimento do passado é essencial para quem pretenda entender o presente almejando ser sujeito na construção do futuro. Mas a pura e simples remissão pode ser alienante de nossa responsabilidade, embora nos possa poupar dos incômodos da consciência crítica.
A pobreza de hoje – econômica, social, política –, a dependência ideológica, a carência de pensamento original, a ciência reflexa, a tecnologia sem originalidade, o recurso à conciliação para evitar a ruptura, o mando secular da casa-grande, o império da Ordem para conter o Progresso, o autoritarismo larvar (quando não o protofascismo), o racismo, a homofobia e a misoginia, o preconceito social, o desapreço ao trabalho – ofício de negros escravizados e brancos pobres –, o parasitismo das classes dominantes, tudo isso são elementos condicionantes do Brasil de hoje, da tragédia que ainda nos assola. São frutos do processo histórico, mas não derivam de um determinismo colonial.
Nossa tragédia não é um raio em céu azul. Nosso passado ilumina a interpretação do presente, mas não nos exime de responsabilidade histórica.
Darcy Ribeiro, senão o mais original de nossos intérpretes certamente o mais apaixonado, acicatava nossa consciência alienada:
“Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sofrida que somos e a gente brutal que também somos”[11]
A história do presente dá continuidade ao mando político da casa-grande, a classe dominante que vem da colônia; e desde então, monopolizando o poder econômico e o poder financeiro, manipula a política, os corações e as mentes. Por isso somos um país sem revolução, sem heróis-libertadores – os que lutaram foram proscritos pela história – de braços dados com o atraso, condicionados pela conciliação, engenho da classe dominante para evitar a mudança. Quaisquer mudanças, salvo aquelas que se destinam a impedir a mudança.
Por isso caminhamos “aos trancos e barrancos”.
O processo da independência, que se inicia em 1808, e que tem entre seus agentes a dinastia portuguesa e a diplomacia britânica, aparta o país de uma Lisboa da qual já se encontrava separado, para conservar a monarquia, o escravismo e o latifúndio. Uma monarquia fundada em privilégios, calcada em desigualdades e no patriarcado. Quando o império arcaico não tinha mais condições de se conservar de pé, o exército, por meio de um golpe, fez a república sem republicanismo, para assegurar o poder da lavoura destinada à exportação, representado pela ascendente cafeicultura paulista. Consolidávamos assim a opção anti-industrialista que vem do império e se sustentaria até 1930, quando um movimento liderado por três governadores de estado e meia dúzia de oficiais do exército, recém modernizado por potência ocidental, rompe com o poder agrário. Era a “revolução” pelo alto, a única insurgência que deu certo, porque comandada pela classe dominante, e por nisso mesmo com o apoio majoritário do exército. O golpe de 1964 é levado a cabo pelos militares para fazer cessar a ascensão das massas e impor o fim do trabalhismo nascido no Estado Novo, que haviam sustentado. Os fardados depõem um governo democrático por considerá-lo reformista. Uma das questionadas propostas do presidente João Goulart, como se sabe, era a reforma agrária, defendida por José Bonifácio na frustrada constituinte de 1823, e reclamada por Joaquim Nabuco no segundo império.
Em 1949 a China era um país agrário cujos camponeses haviam feito uma revolução nacional-social ao cabo de uma longa guerra civil e séculos de invasões estrangeiras. Lá, ingleses, franceses e japoneses se haviam esmerado no concurso da exploração da terra e de sua gente. Em contraposição, naquela altura já éramos uma sociedade urbana em busca da industrialização. A China de hoje é a segunda potência econômica, científica e tecnológica do mundo, o maior parque industrial do planeta, e disputa com os EUA a hegemonia do mundo. Nos anos 1950 a Coreia do Sul foi devastada por uma guerra que lhe foi imposta. Hoje é um dos chamados “tigres asiáticos”. Entre esses sucessos e nosso atraso encontra-se a forma como suas classes dirigentes encararam o desenvolvimento científico-tecnológico. A opção chinesa é paradigmática: o investimento em educação e pesquisa, ciência e tecnologia. Deng Xiaoping, ao sentar-se no trono de onde reinara Mao Zedong, preconizava a estratégia de desenvolvimento do país que passara a comandar:
“A chave para conquistar a modernização é o desenvolvimento da ciência e da tecnologia. E, a menos que prestemos especial atenção na educação, será impossível desenvolver a ciência e a tecnologia” [12].
A China, na avaliação de seu dirigente supremo, estava naquela altura “vinte anos atrás dos países desenvolvidos em ciência, tecnologia e educação.”
O fato objetivo é que a opção pela educação, ciência e tecnologia (nessa ordem) levou a sociedade chinesa a patamares insuspeitados pelos observadores ocidentais. Em 40 anos promoveu a inclusão de 800 milhões de pessoas.
As primeiras iniciativas brasileiras na pesquisa espacial remontam aos anos 1950. Em 1965, de nossa estação em Barreira do Inferno, em Parnamirim, no Rio Grande do Norte, foi lançado o foguete de sondagem Nike Apache, fabricado pelos EUA. A China, que naquela altura não podia cogitar da exploração espacial, hoje disputa com EUA e Rússia a colonização da Lua. Nosso satélite, o CBERS, construído em colaboração com os chineses e dependente de equipamentos norte-americanos, é lançado por foguete chinês, a partir de base de lançamentos chinesa. O Brasil renunciou ao programa espacial próprio, e doou a base de Alcântara, uma das melhores localizações do mundo, aos EUA, que em documentos oficiais (Departamento de Estado) vem reiterando sua oposição a qualquer projeto brasileiro na área espacial.
O Brasil, que desinveste na educação, na ciência e na tecnologia, o Brasil, governado pelo negacionismo e pelo atraso cultural, o Brasil que desorganiza o ensino público e desmonta a pesquisa científica, a formação de cientistas e educadores, convive hoje com cerca de 35 milhões de pessoas passando fome; 125 milhões, mais da metade da população, padecem com algum grau de insegurança alimentar. A comida dos miseráveis são restos, resíduos coletados nas lixeiras dos supermercados, pescoço, asas e pés de galinha, ossos de boi, espinhas e cabeças de peixe.
Esse Brasil retorna ao cenário da fome – uma criação do homem contra a humanidade – e reatualiza Josué de Castro, que, ainda nos idos de 1946, em Geografia da fome, denunciava a fome como mal político, produto de um modelo excludente agroexportador.
No entanto, abrigamos uma agricultura moderna, um portentoso agronegócio exportador. O país cujo povo passa fome é o terceiro maior produtor/exportador de grãos do planeta.
No mundo do desenvolvimento tecnológico, que exige da massa trabalhadora mais e mais escolaridade, e lhe impõe em contrapartida menos empregabilidade, o Brasil da atual classe governante vira as costas para a educação, a ciência e a formação profissional de sua mão de obra. O projeto da classe dominante evita a produção do conhecimento, a circulação das ideias, a inovação. Alimenta politica e ideologicamente uma sociedade que se aparta de si mesma, anula as possibilidades históricas do país, e de seu povo, espanca a esperança. Somos hoje um país temente de seu futuro. A crise da universidade brasileira deve ser vista, portanto, como um projeto; a crise da ciência e da tecnologia, uma necessidade, porque nada é mais revolucionário, ou mudancista, do que o conhecimento.
Estou apenas descrevendo o projeto da ordem política instaurada a partir do golpe de Estado de 2016.
Somos hoje, cientistas ou não, aficionados das maravilhosas conquistas de nosso tempo, e do que a ciência e a tecnologia, sem limites de criação, ainda nos reservam.
Caminhámos do mundo newtoniano para o mundo quântico, dominamos o que se passa no interior da matéria e transitámos dos limites terrestres e do microcosmo para o macrocosmo, para a cosmologia. O Telescópio Espacial James Webb nos permite viajar no tempo conhecendo um mundo distante de nós bilhões de anos, perscrutando a luz das primeiras estrelas e galáxias formadas no Universo e buscando uma compreensão mais profunda de sua evolução.
O conhecimento científico duplica a cada quinze anos. E tem sido assim desde o século XVIII, e mais aceleradamente será seu desenvolvimento nas décadas vindouras, e inimaginável nos séculos futuros. A tecnologia, uma aplicação da ciência, modificou substancialmente a sociedade dos últimos 200 anos.
A humanidade avançou em todos os campos do conhecimento, dominou a Terra e seus recursos e partiu para a conquista espacial. O cosmos é seu lar. Estabeleceu os mais fantásticos progressos sobre a ciência e as técnicas e foi capaz de avanços tecnológicos antes insuspeitados. O desenvolvimento da medicina, da genética, da informática, da nanotecnologia, da robótica e da inteligência artificial, aumentou a expectativa de vida na terra, e abriu horizontes até ontem insuspeitáveis para o conhecimento humano e sua intervenção no mundo da natureza. A internet e todos os outros acessórios da tecnologia digital, reduzindo o mundo a uma casca de noz, faz de todo ser humano um vizinho de seu semelhante mais distante.
O progresso científico e o desenvolvimento econômico, todavia, não foram suficientes para tornar o homem mais feliz. Ao contrário, a civilização que vamos passar para nossos sucessores está marcada pelo desencanto. Maculada pela fome, pela desigualdade, pela miséria, pela exclusão de milhões de seres humanos condenados ao atraso e ao subdesenvolvimento, à pobreza e à fome. E o desenvolvimento tecnológico mais notável é o da indústria da guerra.
Pela primeira vez na História, há produção de alimentos suficiente para atender às necessidades de toda a população do Planeta. No entanto, não aplacamos a fome. Temos recursos econômicos, materiais e tecnológicos que assegurariam aos países, não fosse a concentração econômica, a ditadura do capital sobre o trabalho, o colonialismo e o imperialismo, distribuir moradia a todos os seus habitantes, e a todos garantir trabalho, escola, assistência médica e lazer. Mas dois terços da humanidade não têm casa, ou moram em condições sub-humanas.
Por que não planejamos nossas sociedades usando a tecnologia e a riqueza acumuladas para suprir nossas necessidades?
Se podemos gastar bilhões de dólares na pesquisa e fabricação de mecanismos e aparelhos de guerra sofisticados e caríssimos e crescentemente mortíferos, se podemos empregar milhões de pessoas para matar em nome dessa invenção chamada pátria, por que não investir na pesquisa da saúde, no saneamento básico, na construção de casas populares, no combate à poluição e à destruição ambiental, enfim, na defesa da vida?
A humanidade não soube construir nem a justiça social nem a paz, nem erradicar a fome, e está jungida pela guerra, que move o grande capital e por ele é condicionada, o “complexo industrial-militar” denunciado por Eisenhower no seu famoso discurso de transmissão da presidência em 1961. Alimentou e disseminou a violência, a violência física que escandaliza e a violência da injustiça social, escamoteada pela ideologia do establhisment.
A civilização não soube vencer a barbárie. Ou será que “civilização”, mais especificamente “civilização ocidental e cristã” é o nome de fantasia da barbárie?
Seja o que for, é o mundo legado pela vitória do capitalismo, esse mal-estar que acompanha nossa civilização[13].
Nada, porém, autoriza o desânimo, senão a certeza do progresso qualitativo do processo político, no que depender da nossa luta.
Estamos em meio a uma grande viagem pelo ainda imperscrutável, nos prometendo uma revolução ainda mais profunda do que aquela que nos legou Copérnico. Enquanto escarafunchamos os cosmos, dilatando o universo, na medida em que mais o conhecemos, esbarramos na tragédia política, na sequência das grandes crises que alimentam o que se convencionou chamar de processo civilizatório, o lento e tortuoso caminhar do homem em busca de sua humanidade.
Há uma crise internacional, e dela não estamos imunes, e seu cerne é o conflito de hegemonia.
Nenhuma troca de mando, porém, se fez, até aqui, sem guerra. E a de hoje conhece contendores com o poder de destruir o planeta inumeráveis vezes. No mundo em conflito, vivemos grave crise nacional, econômica, social, política, uma crise de destino que solapa a esperança sem a qual um povo não se reconhece como nação. De ambas as crises, porém, devem emergir grandes escolhas.
O processo histórico nos impôs a necessidade de descer até o limite para que se revelassem a natureza do Estado e o caráter da sociedade brasileira. Os dados estão na mesa e não podem mais ser negados. O retrato é contundente. Mesmo os cegos já veem, e os insensíveis já sentem.
No mundo e em nosso país estamos em face de projetos em confronto. Em pleno processo de mudança na ordem planetária, vivemos, justamente apreensivos, no limiar de um grande salto histórico, cujos contornos ainda desconhecemos. Seja ele qual for, porém, imporá ruptura, o processo de solução do conflito social que a casa-grande vem há séculos impedindo, para conservar seu mando. Recoloca-se a disjuntiva civilização e barbárie e diante dela temos partido. Mesmo que para muitos o quadro de perspectivas imediatas não sinalize um futuro promissor, a certeza que nos anima é que vamos sair dessa injunção para melhor, o saldo será um salto de qualidade, e o atestado é a convicção de que camadas crescentes de brasileiros, despertados pela realidade, estão tomando consciência do que são.
Se depender de nosso povo a estrela voltará a luzir.
A humanidade não conhece melhores profetas do que seus poetas. Concluo essas reflexões com a palavra de Carlos Drummond de Andrade:
“Este país não é meu
nem vosso ainda, poetas
Mas ele será um dia
O país de todo homem”[14].
[1] NOVELLO, Mario. O universo inacabado (a nova face da ciência). N-1 edições. 2018. São Paulo
[2] Ob.Cit p. 39
[3] NOVELLO, Mario. Manifesto cósmico I e II.. N-1 edições. São Paulo.2022.p.14
[4] Ibidem.pp. 43-4
[5] Cf. BUNGE, Mario. Física e filosofia. Perspectiva. São Paulo. 2000. p 166
[6] Idem. p 78
[7] WAGNER, Pierre (Org.) Les philopsophes et la science. Gallimard.Patis. 2002. 52
[8] NOVELLO, ob. Cit. p 75
[9] Apud VELOSO, João Paulo. in Roberto Simonsen-Eugênio Gudin (A controvérsia do planejamento da economia brasileira). IPEA. 2010. 3ª edição. p 15
[10] O projeto continuísta militar é esmiuçado em NETO, Manuel Domingos (Org). Comentários a um delírio militarista. Ed. Gabinete de Leitura. Fortaleza, 2022. Nele assino o capítulo “Apelo à fragmentação nacional”.
[11] RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro (A formação e o sentido do Brasil). Ed. Círculo do Livro. São Paulo. 1995. p 120
[12] Apud KISSINGER, Henry. Sobre a China. Objetiva. Rio de Janeiro. 2011. P 325
[13] Um primeiro desenvolvimento do tema encontra-se em AMARAL, Roberto. Socialismo e democracia. Brasília. Fundação João Mangabeira. Brasília, 2011, p 9 e segs.
[14] “Cidade prevista”, in Poesia e prosa. Ed. Nova Aguilar. Rio de Janeiro.1979. p 221’.
* Este texto, lido no dia 12 de setembro de 2022, no auditório do CBPF, Rio de Janeiro, por ocasião da XVIII Brazilian School of Cosmology and Gravitation, em homenagem aos 80 anos de Mário Novello, quando vivíamos profunda apreensão sobre o futuro imediato de nosso país. Foi revisto em maio de 2023, em momento de retomada de esperanças, para publicação por CosmoseContexto. O autor agradece as preciosas sugestões do professor José Abdala Helayël-Neto, do CBPF, e a leitura de Pedro Amaral.