“Se a aparência e a essência das coisas coincidissem, a ciência seria desnecessária” 
– Karl Marx,  O capital

Roberto Amaral*

Em recente debate sobre defesa nacional e segurança pública (youtu.be/cWpnLzsdiJ8), ouvi de Luiz Eduardo Soares a expressão “funcionalismo mesclado de marxismo vulgar”, cacoete analítico segundo o qual a análise da realidade se reduz à contemplação de sua aparência: a realidade é o que é porque não poderia ser de outro jeito, e é deste jeito porque atende a um interesse – e, evidentemente, se se trata de um interesse dominante, só pode ser um interesse de classe poderoso.

A realidade, nestes termos, passa a  ser vista: 1)  como fato em si, fenômeno incontornável, estanque e estático, completo e imodificável; e 2) como projeção mecânica e incontornável  do passado no presente. As limitações dessa  historiografia pretensamente objetiva, que descarta o papel do processo social, ficam evidentes na sua incapacidade de explicar as raízes sociais do advento, no Brasil, do chamado bolsonarismo, emergindo aparentemente sem causa visível após décadas de avanço das forças progressistas e de centro-esquerda. A adesão político-eleitoral de setores significativos da massa trabalhadora à retórica fascista, nestes termos, deve ser vista como produto natural da nossa formação econômico-social, que tudo explicaria: tanto a violência da ordem estatal quanto o amorfismo das grandes massas diante da injustiça social, tanto os surtos autoritários quanto os remansos democráticos.

Essa simplificação – intento de resposta pacientadora à inquietação dos que almejam interferir no processo histórico e se quedam imobilizados na ausência de alternativas –, tende  a transformar um materialismo dialético mal apreendido em manifestação de fatalismo de fundo místico. Essa regência  inevitavelmente nos conduziria a formas de niilismo e imobilismo, irmãos siameses na inação, pois, se os fatos que compõem a realidade estão na “ordem natural das coisas”, nada mais há por fazer.

Ao confundir a aparência dos fatos com sua essência, o falso marxismo procura explicar o processo social descartando a capacidade do sujeito histórico de nele intervir qualitativamente. Afasta as massas do combate e da resistência. Talvez aí, em suas consequências, se encontre uma das muitas explicações para o fato de o processo político-social brasileiro – já abalado pelo descenso das forças proletárias urbanas e camponesas e a crise do trabalho – atravessar momento político-ideológico crítico, representado pela recuperação das teses do mais puro fascismo, que parecia erradicado entre nós desde a falência ideológica e social do integralismo e a derrota do nazifascismo no cenário de guerra.

A crise político-ideológica das esquerdas brasileiras, segundo vejo,  deita suas raízes na anemia política dos partidos do nosso campo, desde os de centro-esquerda aos ditos de esquerda propriamente dita, chegando mesmo aos partidos originalmente revolucionários. Renunciaram à organização das grandes massas, ao proselitismo ideológico e à denúncia do capitalismo. Declinaram, na ação e no discurso, da defesa da visão de mundo que os diferenciava das correntes conservadoras e liberais. As tentativas de explicação percorrem as mais variadas vertentes, desde a debacle da URSS, que desestabilizou no Brasil e no mundo as organizações comunistas, até a opção da centro-esquerda brasileira pelo eleitoralismo puro e simples (mas lamentavelmente confundindo tática e estratégia), levando-a a compor com as teses liberais ou de centro-direita (muitas vezes assimiladas), perdendo, assim, identidade ideológica e por isso mesmo se confundindo com as forças conservadoras no embate eleitoral, afinal chafurdando no terreno que Gramsci chamava de “pequena política”.

Quando se reclama a necessidade de estudar a emergência do que se convencionou titular como “bolsonarismo” (a ressurgência de um pensamento e de uma ação que caminham da direita ao fascismo, com apoio em amplas camadas populares), dizem-nos os “pensadores objetivos” que não há nada de novo sob a luz do sol, pois o Brasil é o que sempre foi, sem poder ser diferente: reacionário, hoje não mais do que no passado, nem menos do que amanhã. O presente  não seria obra dos viventes, mas apenas dos mortos, “herança arcaica pretérita” como escreveu Octavio Ianni. Assim, as gerações se seguem, lavando as mãos como Pilatos diante do mundo, aquele em que vivem, e aquele que deixam para seus sucessores.

A movimentação surda das placas tectônicas que está na raiz das movimentações dos idos de 2013 – na contramão da aparência de normalidade política e de sucesso de aprovação popular dos governos petistas – não é considerada como fato novo. Ora – objetam os sociólogos e antropólogos às inquietações do leigo – uma sociedade como a brasileira, herdeira do escravismo, do latifúndio e do genocídio das populações nativas, não pode declarar-se assustada com a emergência da extrema-direita tabajara. A história presente, mera decorrência de algum passado, está  explicada e pronta, obra dos mortos que absolve os vivos de qualquer responsabilidade pela tragédia do capitalismo brasileiro.

O fato de o candidato protofascista haver disputado as eleições de 2022 voto a voto com Lula, de a direita e a extrema-direita haverem conquistado a maioria esmagadora das cadeiras das duas casas do Congresso, e de candidatos de direita haverem assumido, entre outros, os governos dos três maiores estados da federação, deve, na leitura fatalista, ser encarado como desdobramento inevitável de nosso desenvolvimento histórico, porque tudo se explica pela evidência de a sociedade brasileira de hoje ser, refletindo seu passado e anunciando o futuro imediato, uma sociedade reacionária… É esta a ordem natural das coisas. Se o passado dita o presente, passado e presente  ditam  o futuro e, assim, nada mais  restaria aos reformistas e aos revolucionários. Por derradeiro, a História, condenada à linearidade, teria encontrado seu fim.
O fenômeno social, porém, é um ser vivo que caminha e se transforma permanentemente; nem é  produto de uma ordem histórica regida pelo Olimpo, nem fruto do acaso, mas o resultado da relação dialética dos indivíduos com suas circunstâncias.

No prefácio à segunda edição (1869),  do seu inesgotável O 18 brumário de Luís Bonaparte,  Marx critica a análise de Proudhon, quando o autor de Coup d´État “procura representar o golpe de Estado como o resultado de um desenvolvimento histórico anterior”. Desmontando a ficção idealista de uma história olímpica, o marxismo tem insistido no papel de sujeito do processo social.

Em face de observação minha, em  debate, sobre a crise dos partidos brasileiros, devastando tanto as organizações de origem revolucionária quanto as reformistas, foi-me objetado que o “fenômeno crise dos partidos é mundial” e,  nestes termos,   deixa de ser um desafio de nossa realidade, subsumido pela grande tragédia global.

Nosso atraso político assume o caráter de evidência quando nos damos conta de que, no segundo decênio do terceiro milênio, estamos revivendo como temas centrais a questão democrática e a defesa das instituições e da ordem legal herdada – temas cuja contemporaneidade supostamente se havia esgotado em 1946 com a Constituinte, em 1955 com a posse de Juscelino Kubitscheck, e nos idos de 1985 com o fim da ditadura e a constituinte de 1988. Se nos anos 1960 o sonho revolucionário da esquerda organizada era a construção do socialismo, hoje a utopia é a preservação da legalidade. Nosso imbróglio é relativizado, pois os novos filósofos reagem, uma vez mais pondo por terra a expectativa de debate; dizem-nos que também a questão democrática estaria em todo o mundo, na Europa e até na metrópole do Norte, de quem, acrescente-se,  tudo importamos, talvez principalmente ideias e pensadores, pois muitos de seus scholars são intérpretes de nossa pobreza.

Aos açodados, como este escrevente, restaria esperar para “ver a banda passar”: quando a conjuntura mundial superar esse ciclo que devora os partidos e ameaça o modelo ocidental de democracia, estará sanada nossa crise cabocla, como  ensina a história recorrente do país periférico.

O estudo do processo histórico, segundo esse viés, deixa de oferecer instrumentos de intervenção na realidade, esgotando-se sua serventia na tentativa de explicar a ordem, desta feita a ordem que salta do positivismo para um determinismo histórico em conflito com o materialismo dialético. O que era ação pode transformar-se em imobilismo ao desestimular a intervenção do agente social.

O niilismo se imiscui como saída para a crise existencial: ora a espera do deslindar do processo histórico no qual já não podemos intervir para alterar a realidade, ora aguardar o indicador de incerto processo revolucionário. De uma forma ou de outra, a inércia sem  sentimento de culpa, porque alimentada por uma compreensão muito própria da história. De novo, nada a fazer, senão aguardar a resolução histórica, pois ela sempre encontra caminhos para o desaguar das águas revoltadas. Assim o revolucionário e o reformista renunciariam ao papel de agente de transformações. Venceria o conservadorismo, a seiva vital da sociedade de classes, quando o processo histórico, que é movimento, cobra resistência e luta, os alicerces do futuro, a grande obra humana.

* Com a colaboração de Pedro Amaral