Roberto Amaral*
A análise às muitas experiências de desenvolvimento nacional apresenta, como liame explicativo, a opção de suas sociedades pelo investimento do Estado, por largas décadas, na unidade ensino-pesquisa, de que resulta a aplicação tecnológica, base da industrialização autônoma e das expectativas de soberania das nações.
A díade dos anos 1950, que segregava os povos entre desenvolvidos e subdesenvolvidos, industrializados e exportadores de matérias-primas, nos impõe, na altura da presente revolução tecnológica, a disjuntiva produtores versus importadores de conhecimento. Cava-se para nossos países abismo de ainda mais difícil de superação, porque continuamente se alarga no vértice e se aprofunda na base. Vencidos por crônico processo de desindustrialização fora da curva internacional – muito em consequência dos percalços impostos ao ensino e à pesquisa científica pelos governos derivados do golpe de 2016 — , chegámos à segunda década do III milênio como arcaicos exportadores de grãos e carnes (alimentos que faltam à mesa de mais da metade de nossa população) e minérios in natura, para importá-los, depois, manufaturados, como os trilhos fabricados pela China. Enquanto tal ocorre, como se fato natural fosse, as metrópoles que ditam os rumos da política e da economia em todo o mundo investem na disseminação da tecnologia 5G, indústria 4.0 e inteligência artificial. A explicação é simples: a pesquisa científica é o motor que movimenta indústrias e economias competitivas, enquanto a indústria é o ramo mais dinâmico do ponto de vista tecnológico. Assim se explicam a riqueza de uns e a pobreza de outros.
Retomemos o óbvio: sem ensino de alto nível (cuja raiz é a educação pública, da creche e do ensino fundamental à universidade, da graduação à pós-graduação) não há desenvolvimento possível. Sem inovação científico-tecnológica a economia não sai de seu estado de equilíbrio, e a tendência no médio prazo é a estagnação. O Brasil convive com crônica desindustrialização acentuada pela defasagem tecnológica que elimina a possibilidade de competitividade em economia globalizada.
O hiato dos últimos seis anos, do qual as eleições de 30 de outubro nos apartaram, mais põe em relevo o quanto o ensino básico como o superior e a pesquisa registraram avanços no Brasil nas décadas antecedentes ao pesadelo neoliberal. Não cabe aqui o seu histórico, desde o pioneirismo de Anísio Teixeira à expansão do ensino universitário nas gestões Lula-Dilma. Mas seu objetivo não se encerra na meritória forma de promover ascensão social. No início de um governo que reaviva as esperanças nacionais, recomenda-se a reflexão sobre o modelo de universidade vigente no país. Cabe, apenas, para o aprofundamento posterior, o registro do conservadorismo de nossas instituições – sua alienação em face da história e do presente nacional -, e seu descompassado em face das exigências do país nos dizendo que a universidade precisa ser repensada sem parti pris, revistos os parâmetros e objetivos da docência e discutida a carreira científica.
Inexistindo investimentos maciços e permanentes em laboratórios e na formação de técnicos, pesquisadores, professores e cientistas, não há ciência qualquer. E sem ciência não há como pensar em tecnologia e inovação, muito menos em indústria moderna e progresso social. Mas ainda não é tudo, porque, sem desenvolvimento econômico e sem indústria não há, também, forças armadas dignas desse nome, senão milícias encarregadas da repressão política interna. Finalmente, sem ciência e sem indústria autônomas não há país soberano, tão-só protetorado.
Desenvolvimento exige projeto de país, que pressupõe um mínimo de comunhão de destino transformada em política de Estado, superando as sazonalidades governamentais. O país, para ser, precisa saber o que quer.
Tudo que carecemos.
Os polos que disputam a hegemonia mundial são potências econômicas e militares por serem potências científicas. EUA e China são exemplos de Estados movidos por projetos.
Fosse necessária qualquer demonstração, bastaria lembrar os investimentos dos EUA em ciência e tecnologia (base de seu império inclusive cultural-ideológico), o fortalecimento da indústria articulada ao Green New Deal e as prioridades chinesas à inteligência artificial e ao avanço em semicondutores.
A propósito, o neoliberalismo arcaico fechou (em junho deste ano) o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (CEITEC), empresa pública vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), única fábrica de semicondutores da América Latina, iniciativa de cunho estratégico que levamos a cabo no governo Lula, para ser consolidada na administração da presidente Dilma Rousseff. Encerra-se melancolicamente esse esforço do Estado brasileiro que visava a garantir para o país o domínio tecnológico completo da fabricação de circuitos integrados.
A China de hoje, maior plataforma industrial do mundo, era, em 1949, país de camponeses, devastado por séculos de invasões estrangeiras, pela Segunda Guerra Mundial e pela guerra civil, quando o Brasil já se iniciava na industrialização. Muitas são as possibilidades de explicação de destinos tão diversos, a começar pelas opções políticas, mas é impensável considerar o desenvolvimento industrial e militar chinês (tanto quanto o dos EUA, que dispensa nomeação) desapartado do desenvolvimento científico e tecnológico, que o gerou e o sustenta, e ainda promete avanço estratégico sobre o grande adversário na contenda internacional. Os EUA muito se desenvolveram movidos pela auto concepção do tal “destino manifesto”, de que decorre a “obrigação de disseminar seus valores por toda parte do mundo”.[1] A China, menos do que conquistar territórios, teve sua história tecida pela necessidade de dissuadir invasões.
A China contemporânea, para se defender ou se refazer, investiu em inovação. Ao invés de conformar-se como “fábrica do mundo” oferecendo sua mão de obra e recursos energéticos para produzir bens de exportação concebidos nas matrizes das potências industrializadas para consumo de seus mercados, papel que lhe destinara o capitalismo ocidental quando da abertura econômica na segunda metade dos anos 1970, aplicou-se na produção de sua própria tecnologia e em criar seus próprios modelos. Se há 20 anos sua pauta de exportações era composta por produtos sem valor agregado (caso presente do Brasil), hoje, 90% dos computadores, 75% dos celulares e 80% dos painéis solares do mundo são produzidos por lá. É a resposta da economia à opção política de desenvolvimento mediante investimentos maciços e sistemáticos em educação e ciência.
Nada mais significativo do que as diretrizes de Deng Xiaoping, ideólogo e condutor da abertura econômica. Em discurso de 1977, proclamava o que ainda hoje precisamos dizer e repetir: “A chave para conquistar a modernização é o desenvolvimento da ciência e da tecnologia. E, a menos que prestemos especial atenção na educação, será impossível desenvolver a ciência e a tecnologia”.[2]
Em contraste com o processo de desindustrialização brasileiro, em curso, o sucesso de empresas como a Huawei Technologies (as redes 5G), dos drones da DJI e das plantas solares da Han Energy é apenas um exemplo daquilo que pode resultar da continuidade de políticas de Estado: a China investe cerca de 2,4% do PIB (nada menos que US$ 14,69 trilhões ) em P&D. O Brasil, em 2019, investiu 1,2%, o que não apenas é muito pouco tanto do ponto de vista absoluto quanto relativo, como quanto uma política voltada para o atraso, pois isto é praticamente, o que investíamos há cerca de 20 anos (1% em 2003) e ainda menos que 1,66% investidos em 2013. Contra os 4,8% investidos pela Coreia do Sul em 2020[3].
Investimentos em C&T – Ano 2020 (US$)
País PIB 2020 Investimento em C&T
EUA 20,89 trilhões 3,49%
China 14,69 trilhões 2,4%
Coreia do Sul 1,638 trilhão 4,8%
Brasil 1,449 trilhão 1,2%*
_________________________________________
Fontes: Banco Mundial, Data OCDE, UNESCO
*Dados de 2019, os últimos fornecidos
Que país pretendemos ser?
A China é modelo paradigmático do emprego da tecnologia como alavanca de desenvolvimento, mas não é caso isolado. Esta é, também, entre outras, a lição coletiva dos chamados “tigres asiáticos”, com destaque para a Coreia do Sul, ex-colônia de pescadores que, mal saída de uma guerra devastadora na metade do século passado, transformou-se, no correr de três décadas, de país subdesenvolvido, em potência científica e tecnológica, portanto industrial, elevando o nível de vida de sua população, extraída da pobreza.
A Coréia do Sul que se destaca como exportadora de produtos industrializados com alto valor tecnológico agregado, era, em 1953, um dos países mais pobres do mundo. Os investimentos continuados em ensino, ciência e tecnologia, porém, transformaram-na em polo de desenvolvimento industrial na fronteira do conhecimento[4].
Por que esses dados são levantados quando nosso objeto é discutir o caso brasileiro? Para pôr de manifesto, uma vez mais, o papel da ciência e da tecnologia, ambas filhas da educação massiva e de qualidade, como fator de desenvolvimento econômico e social. Foi essa opção que, no curto espaço de três décadas, levou a Coreia do Sul do caos econômico-social para a crista do desenvolvimento como potência industrial. O Brasil, porém, acumula “décadas” perdidas, porque outro é o projeto de sua classe-dominante, alienada e alienígena, saudosa da casa-grande, ainda hoje a blaterar contra o programa de substituição de importações dos anos 1950, contra o papel do Estado como vetor de desenvolvimento, contra a reforma agrária, cuja defesa, pelo presidente João Goulart, incitou os militares a implantar a ditadura em 1964; porque, desde a origem colonial latifundiária e racista, cultiva o statu quo e a dependência, instrumento que assegura o controle da sociedade brasileira pelo 1% de brancos milionários[5].
Em artigo recente, o professor José Goldemberg (O Globo, 27/11/2022), nos diz que o economista Edmar Bacha explica o desnível de desenvolvimento observado entre o Brasil e a Coreia do Sul pelo erro de havermos adotado uma política de industrialização fundada na substituição de importações, tratando então de “produzir insumos, máquinas e equipamentos antes importados por preços menores e com produtividade maior”. Para o professor da PUC-Rio o correto teria sido facilitar as importações. Na mesma linha, o ex-secretário de Ciência e Tecnologia da Presidência da República (1990-1997), autor do artigo citado, destaca o sucesso da Embraer por haver utilizando “motores importados”, deslembrado de que país que não domina a produção de seus próprios reatores não possui indústria aeronáutica autônoma, nem civil nem militar. Ora, pode até constituir bom empreendimento comercial, jamais será, porém, um projeto estratégico. A alternativa da importação de tecnologia, ademais, não deve ser pensada como panaceia; a experiência brasileira, por exemplo, revela a frustração do modelo de mero transplante das linhas de montagem americanas e europeias para formar a “indústria automobilística brasileira” nos “anos dourados” da era JK. Até hoje não dispomos de um só modelo nacional; importamos veículos da China e da Coreia do Sul, e nos preparamos para receber os carros elétricos anunciados pela Índia.
No curso dos longos últimos quatro anos, os governos descendentes do golpe de 2016 simplesmente deram as costas aos avanços da economia digital, da inteligência artificial, da biotecnologia, da automação e da robótica, da internet das coisas, ignorou o emprego de novos materiais, que mudaram as formas de produção e estabeleceram novos paradigmas tecnológicos e inimaginados desafios ao trabalho humano, em país que, mercê de sua brutal concentração de renda, convive com o desemprego e o crescimento do lupenato, quando a agricultura não absorve mão-de-obra e a indústria deixa de crescer. Mas investiu, como política de Estado, e com eficiência, na devastação ambiental, no esgotamento de recursos naturais não renováveis e na destruição do sistema nacional de ciência e tecnologia que se vinha construindo, com sucesso, desde os anos 50 do século passado.
______________________
* Escritor, cientista político, professor universitário, ex-ministro de Ciência, Tecnologia e Inovação (2003-2004). Autor, entre outros livros, de Textos políticos da História do Brasil (Edições Senado Federal, Brasília), Socialismo: vida, morte e ressurreição (Editora Vozes, Petrópolis) e História do presente. (Editora Expressão e Cultura, São Paulo).
[1] KISSINGER, Henry. Sobre a China. Rio de Janeiro. Objetiva. P. 14
[2] O tema já havia sido enunciado em seu informe “A prioridade deve ser dada à pesquisa científica”, de 1975. Apud KISSINGER. Ob, Cit. Idem. P. 325.
[3] Em muitos trabalhos acadêmicos que examinam a saga da Coreia do Sul registro ALBUQUERQUE, Alexandre Black de. “Coreia do Sul na década de 1950: mudança estrutural e início da política desenvolvimentista”. ANPUH-Brasil-30º Simpósio Nacional de História- Recife- 2019).
[4] Fica para outra oportunidade o estudo destacando, na recuperação econômica da Coreia do Sul, o papel desempenhado pelos EUA, necessitados, em plena Guerra Fria, de antepor diques ao expansionismo sino-soviético na Ásia.