Roberto Amaral
“Aprendi desde cedo a amar, no amor da minha vida, a vida dos meus semelhantes, respeitando-os até nos seus ódios. Por assim amá-la, preferirei dela ser destituído a assentir com o espetáculo comiserável com que se nos acena”.
Antônio Houaiss. A defesa.
Idos de 1985.
Voltáramos a sonhar.
Tinha curso o lento e incerto processo de redemocratização consentida. O regime decaído sobrevivia no governo da Nova República, mas contabilizávamos a nosso favor o fim da ditadura, o que não era pouco, após 20 anos de escuridão. Depois da implosão do colégio eleitoral montado pelos militares para a sagração de seu delfim, e ainda quando comemorávamos a vitória de Tancredo Neves, as armadilhas imprevistas da História – fadário? caprichos da fortuna ? — impuseram-nos dolorosa frustração com a posse de José Sarney, tão penosa quanto a que um pouco antes nos fôra imposta pela derrota das Diretas-já. A reconstitucionalização pela qual tanto lutáramos, sabíamos agora, era promessa que se construiria passo a passo, com a gradual e jamais fácil remoção do que então chamávamos de ‘entulho autoritário”. Primeiro, o fim da censura, em cujo processo Antônio Houaiss, assessorando Fernando Lyra, ministro da Justiça, tivera papel destacado; agora era, seria, a vez da reorganização da vida partidária, na qual Houaiss, é o nosso conto, teria participação exemplar.
O fim da ditadura indicava o fim da política de frente partidária que impusera o MDB e, na sequência, o PMDB. Os socialistas que havíamos resistido militando sob as mais diversas siglas e formas de luta, entendíamos como chegada a hora de recuperação de nosso próprio partido, cassado em 1965 pelo Ato Institucional nº 2, com todas as demais siglas que vinham da ordem democrática de 1946. Decidimos, tendo à frente Jamil Haddad, reorganizar o velho Partido Socialista Brasileiro, de João Mangabeira e da Esquerda Democrática que unificara a luta política contra o ‘Estado Novo’. Precisávamos de um nome que, presidindo nossa primeira comissão nacional provisória – a quem caberia pleitear a refundação partidária junto ao Superior Tribunal Eleitoral e iniciar a trabalhosa e difícil organização nos Estados— fosse ao mesmo tempo um líder e uma referência para todos os companheiros no resto do país. Uma luz, um nome que por si só tornasse visíveis nossos propósitos. Os fados me homenagearam com a missão de convidar Antônio Houaiss, meu amigo de muitos anos. Eu conhecia sua formação ideológica e sua biografia, mas temia que seu amor ao projeto do maior dicionário da língua portuguesa, que acalentava há tantos anos, falasse mais alto que o apelo da História. Fui reunir-me com ele numa saleta do edifício anexo ao Petit Trianon, da Academia Brasileira de Letras, onde trabalhava com uma pequena equipe. No dia seguinte estava conosco na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, na coletiva de imprensa com a qual a Comissão Provisória se apresentava à sociedade.
Houaiss, como poucos intelectuais, tinha a noção da urgência histórica que impõe prioridades vencendo contingências e circunstâncias. Para ele, o dever da hora se impunha sobre os valores e os projetos individuais.
O politico, crítico textual e ecdota, experto em documentalística, bibliologia, dialectologia e crítica literária, o professor de contabilidade, português e latim, filólogo, diplomata de carreira e de carreira polêmica juncada de atropelos políticos e perseguições ideológicas que lhe valeram pelo menos dois inquéritos administrativos, acadêmico, enciclopedista, editor e editorador, dicionarista e poliglota, ensaísta e teórico da literatura, tradutor, humanista, jornalista, enólogo e cervejeiro, amante da boa mesa e mestre em gastronomia, além de político militante (arte de sempre, desde os tempos adolescentes da Federação Vermelha), era agora dirigente partidário abnegado, sem sopesar tarefas, pois de todas as atividades participava, das discussões sobre nosso Programa às questões mais comezinhas da administração partidária, varando noites em debates às vezes pedestres, de que no entanto participa sem fastio.
Com gosto e prazer, gostosamente como preferia dizer, Antônio Houaiss era um ser politico na sua plenitude; não apenas o animal político como todos nós na acepção aristotélica, mas um intelectual orgânico na melhor tradição gramsciana, um intelectual engajado na melhor tradição sartriana, um organizador na melhor tradição leninista, um filósofo atento à missão de transformar o mundo, na melhor tradição do Marx das Teses contra Feuerbach. Exercia a política como exerceu a literatura, o jornalismo e a diplomacia, como um magistério, nos ensinando sempre pelo prazer de contribuir para o aperfeiçoamento do outro, ou por sentir o dever do proselitismo, obrigação de quem está convicto da justeza de suas ideias: pois em todas as atividades (e quantas foram!), era sempre um pregador, seja dando aulas de português ou de latim, seja na trincheira do Correio da Manhã ou da Revista Civilização Brasileira, na ditadura, seja dissertando sobre a descolonização da África nos bons idos da política externa independente de Santiago Dantas e Afonso Arinos, seja debatendo a miséria da política.
Em Houaiss nada era gratuito ou em vão, nem a literatura se justificava por si. Nenhum oficio do intelectual, e não concebia o intelectual alienado, estava livre de uma teleologia voltada para o Homem – esse ser desenganado no mundo— para o seu papel de construtor de si mesmo e do mundo, um mundo sempre melhor para si se for melhor para todos, porque um dia será um mundo sem desigualdades, sem a exploração do homem pelo homem, sem classe dominante, sem massas expropriadas, sem apropriação da mais-valia; um novo mundo e um homem pleno de liberdade vivendo em países e nações igualmente livres, livres do colonialismo e do imperialismo, essa peçonha do capitalismo. Se a desigualdade enfrentou como um opróbio que agride a natureza humana, para ele a realização de um mundo igualitário e de Paz era a tarefa que justificava o homem na autoconstrução de sua humanidade.
Assim como magistério, assumiu a missão partidária, aquela que a hora grave e auspiciosa demandava. Assim presidiu nossa participação nas eleições municipais de 1985 e no ano seguinte nosso primeiro Congresso. Sua atuação brilhante e firme, e corajosa – era um intelectual desassombrado–, foi decisiva para dar ao nascente PSB (então uma esperança viva que a miséria da política derruiria anos passados, com ele já morto) o seu caráter socialista, apartando-o das atrações socialdemocratas e apartando-o do novo oficialismo. Recordo-me dele presidindo reuniões, harmonizando debates, concertando textos, construindo consensos em Congressos e Seminários, em reuniões de dirigentes e reuniões de militantes.
Quantas vezes aquele intelectual portentoso (o tradutor de Ulisses e editor da Enciclopédia Mirador) saiu conosco, ele mesmo dirigindo seu Passat, pelo interior do Rio de Janeiro, nos subúrbios da capital, organizando o partido, reunindo-se com trabalhadores e camponeses. Quantas vezes saiu, comigo, com Jamil Haddad, ou sozinho, viajando Brasil afora a serviço do proselitismo socialista!
Idos de março de 1999.
Eram essas as cenas, era essa a saga que recordávamos quando dele fomos nos despedir, Evandro Lins e Silva, meu filho Pedro Amaral e eu, na UTI do Hospital Silvestre. Mas, não encontramos mais o nosso amigo. Seu cérebro parara e isso, nele, era tudo. Ao lado de seu leito, no mesmo silêncio, uma jovem enfermeira, uma mulher bonita (uma das alegrias de seu viver), limpava aparelhos e tubos e cantarolava, como a nos dizer que a vida é tão importante que a morte diante dela perde qualquer significado trágico. Em nome de todos os seus amigos, mas em nome principalmente de todos os seus correligionários de todos os tempos e de todos os partidos, o socialista Evandro Lins e Silva foi saudá-lo no Cemitério de São João Batista. Quando se recolhia na última morada, cobri seu féretro com a bandeira do Partido que fundara.