Roberto Amaral*

Pedro Amaral

          A embaixadora Thereza  Quintella é um dos melhores quadros da boa diplomacia brasileira, a de Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães. Aposentada do serviço público, permanece atenta às tramas da geopolítica internacional, às disputas por hegemonia travadas permanentemente entre as grandes potências, e exercita o hábito de estudar o fato político perfurando sua epiderme; não se contenta com as aparências. Seu depoimento sobre o conflito em curso na Ucrânia, além de desintoxicado, livre que é dos condicionantes ideológicos das máquinas de comunicação hegemônicas/ocidentais, resulta de um profundo conhecimento da história dos países postos em conflito, tanto os que estão nos campos de batalha quanto aqueles que lutam por intermédio de interpostos exércitos.

           Nosso objetivo é concorrer com um mínimo  de inteligência à mediocridade geral das análises dominantes na imprensa brasileira, periférica e  dependente, que  induz ao pensamento binário, maniqueísta. A análise é substituída por um juízo de valor desapartado da realidade fática, cobrando-nos resposta  a perguntas como:  “De que lado você está?” Certamente uma pergunta mais proveitosa seria: “Em que mundo você quer viver?” Neste caso, é preciso crer que “um mundo multipolar” deveria ser parte da nossa resposta. Tendo isso em mente, quiçá pudéssemos olhar para as movimentações de EUA, UE, Rússia e China no tabuleiro geopolítico, para além de idealizações e caricaturas, e buscando esboçar algo identificável como “interesse nacional”.

A diplomata chefiou nossa representação em Moscou, onde viveu de 1995 a 2001 e, assim, se fez observadora privilegiada, acompanhando o período de debacle do império soviético e a ascensão de Vladimir  Putin. A seguir,  um resumo da entrevista, que pode ser lida na íntegra em https://diplomatique.org.br/entrevista-thereza-quintella/.

Por que a guerra?

Quintella abre a conversa convidando-nos   a identificar, para além dos comunicados oficiais, as motivações  que levaram a Rússia a invadir a Ucrânia,   dando início a uma guerra que, afinal, vinha se insinuando desde pelo menos 2014, e hoje envolve diretamente a Europa, deitando suas consequências, como rastilho de pólvora, em praticamente todo o mundo.

No Ocidente, quase todas as hipóteses com alguma plausibilidade foram admitidas. Para muitos analistas, a intervenção russa ou a “operação militar especial”, segundo o eufemismo de Putin, seria uma resposta ao desrespeito ucraniano ao Protocolo de Minsk negociados por Alemanha e França em 2015 e ignorado pela Ucrânia;[1] há os que a veem como represália aos  ataques ucranianos contra as províncias separatistas (pró-russas) de Lugansk e  Donetsk. Finalmente, até a simples derrubada de Volodymyr Zelensky foi listada como o leitmotiv do impulso guerreiro de Putin.

Essas interpretações, complementares, não saem nas folhas e nos jornais nacionais, muito principalmente nos meios eletrônicos, como os jornais da Rede Globo : nossa mídia, fazendo assessoria de imprensa – aparentemente, gratuita – da OTAN, e,  portanto, evitando a complexidade do tema, bate diariamente na tecla de que o que vemos é uma agressão russa totalmente despropositada, levada a cabo por um facínora (para perplexidade de EUA e EU, que, como sabemos, sempre se dedicaram a cultivar flores). Nas esquerdas, há os acreditam na existência de um imperialismo russo em nossos dias… e por aí vai. O Protocolo de Minsk é desconhecido por quase todos que comentam o conflito. Na guerra de narrativas, a Rússia foi derrotada com rapidez impressionante – ao menos no dito Ocidente.

A embaixadora indica como fator decisivo para a invasão da Ucrânia pela Rússia o ainda não consumado ingresso de Kiev nas fileiras da OTAN, uma aliança militar hostil cuja marcha em direção a suas fronteiras Moscou sempre viu como uma ameaça real à sua segurança. Teríamos, portanto, um conflito que remontaria à Guerra Fria, jamais resolvido, mesmo após a queda do muro de Berlim e o suicídio da URSS – caso único, em toda a história, da queda de um sistema político  sem um só tiro. Quintella vai encontrar a motivação da guerra no expansionismo da OTAN: a estratégia da aliança militar liderada pelos EUA não é/seria fato novo, senão a recuperação da Rússia, notadamente sob Putin, a quem muitos ocidentalistas atribuem sonhos czarinos/imperiais.[2]  Vejamos como a diplomata nos instrui:

“A inconformidade com a expansão da OTAN para Leste vem sendo explicitada – com crescente veemência à medida que a Rússia foi-se fortalecendo – desde o anúncio, na última década do século passado, da adesão à OTAN dos três primeiros países do Leste Europeu (Hungria, Polônia e República Tcheca).”

Os russos, ademais, consideram o expansionismo da aliança militar “uma violação de compromisso assumido pelo presidente dos EUA, George Bush (pai), com o presidente da URSS Mikhail Gorbachev, em 1990, para que ele aceitasse a unificação alemã, e de que a única expansão que haveria seria a incorporação do território da extinta República Democrática Alemã”.

A embaixadora lembra que não foram poucos, nos EUA,  os críticos desse expansionismo. Cita, nesse sentido, celebrado artigo do ex-Secretário de Estado Henry Kissinger, de 2014 (The Washington Post, 5/3/2014) e outro do filósofo  e linguista Noam Chomsky,  que, na contramão da política de Joe Biden, advoga uma solução negociada para o conflito. Os apelos à via diplomática seriam mais sentidos na Europa. Segundo Thereza, França, Alemanha e Itália “querem que russos e ucranianos sentem à mesa de negociação o quanto antes e cheguem a um acordo que ponha fim à guerra, mesmo que isso signifique ter a Ucrânia de fazer concessões territoriais”, também defendidas por Kissinger, agora, falando em maio ao Fórum Econômico Mundial de Davos.

As ameaças dos falcões

Em contraposição aos que defendem a substituição da guerra pela via diplomática (que no início  das hostilidades teria sido admitida por Zelensky), os EUA, o Reino Unido e outros países da OTAN, mais desejosos de derrotar Moscou e punir Putin, tenderiam a pressionar  Kiev para não negociar, sob a promessa de fornecimento de mais e mais armamentos, o que levaria o país a continuar sangrando, mas combatendo os russos,  “numa guerra de guerrilha que poderia arrastar-se por meses e até mesmo anos, para isso fornecendo-lhe mais e mais armamentos”. Seria o preço a ser pago pelos  ucranianos para o isolamento da Rússia, que tanto interessa à geopolítica dos EUA, desde os tempos dos confrontos com a URSS. Para Ted Galen Carpenter, especialista em defesa e política exterior do Instituto Cato, importante think-tank sediado na capital dos EUA, citado por Thereza Quintella, esta estratégia, porém, “seria um erro colossal, pois para Putin a derrota não é opção admissível e, se necessário for, na tentativa de afastá-la, poderá chegar até mesmo a escalar a guerra ao nível nuclear”. À inferência do analista somam-se insinuações de Moscou.

 

Quais seriam os objetivos dos EUA?

 

Que pretendem os EUA na liderança das ações da OTAN? Disseminar seus valores por toda parte do mundo e preparar-se para um  provável confronto com a China, fragilizando seu aliado atômico? Ou simplesmente defender a integridade da Ucrânia? Quintella se pergunta “até que ponto estariam os EUA dispostos a perseguir esse último objetivo: até mesmo a assumir o risco de provocar uma guerra nuclear?” Movendo uma guerra por procuração, os EUA estariam se precatando para evitar o confronto nuclear. Ou desastres militares como os que colheu no Vietnã e no Afeganistão. Mas, em qualquer hipótese, aumentando seu raio de influência política, econômica e estratégica.

 Balanço

Um balanço atual da guerra dirá que a Rússia avança no campo militar, controlando hoje cerca de 20% do território ucraniano, mas estaria perdendo a guerra político-ideológica, ao menos na frente ocidental. A OTAN surge fortalecida com a provável absorção de novos países, antes neutros, como Suécia e Finlândia, enquanto vários de seus membros anunciaram a intenção de aumentar seus orçamentos militares, como é o caso da Alemanha. Cresce o armamentismo em uma Europa já perigosamente nuclearizada, como lembra Thereza Quintella:    “Atualmente, a OTAN tem bases de lançamento de bombas nucleares em apenas cinco países europeus: Bélgica, Alemanha, Itália, Holanda e Turquia . Um sexto país europeu em breve estará entrando nesse rol: a Grã-Bretanha, onde uma base estaria em construção”. Conclui: O armamentismo, ao qual se associa o Japão,  virá, necessariamente, “fortalecer ainda mais a indústria bélica dos EUA, a grande beneficiária do conflito”.

 O fato objetivo, é que temos, diante dos olhos, na prática, uma guerra entre a OTAN (leia-se os EUA) e a Rússia por um Estado interposto, a Ucrânia. A interpretação de que esse é o verdadeiro quadro dessa guerra é que tem provocado o apoio do povo russo ao Presidente Putin em sua condução, em que pesem os fortes laços afetivos e culturais que unem os russos aos ucranianos. A Rússia ainda perde politicamente, em face da óbvia degradação das relações com seu vizinho. Quintella não trabalha com a possibilidade do acesso da Ucrânia à OTAN no curto prazo, embora seu pedido de ingresso já tenha sido formalizado. A neutralidade, observa, é “o único objetivo russo que Zelensky já se mostrou disposto a satisfazer. Mas é indubitável o grande prejuízo causado pela guerra não apenas às relações russo-ucranianas, como também russo-europeias”. Essa maior deterioração também se aplica às antigas repúblicas soviéticas, hoje as mais refratárias a Moscou.

As limitadas consequências das sanções econômicas

 

Para a ex-embaixadora brasileira em Moscou, as sanções econômicas não teriam produzido, até aqui, o efeito desejado  de provocar uma grave crise econômica que forçasse Putin a desistir da guerra:  “O ritmo lento na aplicação das sanções, a expansão das principais exportações russas – petróleo e gás – a preços mais elevados devido ao aumento da procura internacional, e medidas internas adotadas pelo Banco Central russo, permitiram reverter a situação crítica e a vida voltou mais ou menos ao normal. Dias atrás o Banco Central anunciou o retorno da taxa de juros ao nível de 9,5%, o mesmo de fevereiro”. Contrariamente ao esperado,   “o esforço de guerra russo tem sido financiado pelo significativo aumento do saldo na balança de pagamentos provocado pela queda das importações provenientes do Ocidente, e o aumento, em volume e valor, das exportações de petróleo e gás para os países europeus. No primeiro quadrimestre de 2022, o saldo da balança comercial foi de US$ 96 bilhões, mais que o triplo do valor alcançado no mesmo período de 2021”. Quintella, porém, prevê maiores dificuldades, para a Rússia, a partir do próximo trimestre, com o agravamento da recessão e a queda do PIB, cuja recuperação estará a depender da velocidade com que for operada a substituição das importações provenientes do Ocidente.

As consequências das sanções, porém, não pouparam os EUA, muito menos a União Europeia: “No curto prazo, as economias mais afetadas foram as da Europa continental, fortemente dependentes do petróleo bruto, do gás e do carvão que importam da Rússia. No Reino Unido, a inflação anual alcançou 9%, seu valor mais alto nos últimos quarenta anos, e o preço da gasolina bateu o recorde. Os juros foram elevados pelas autoridades monetárias, e é esperado um aumento da taxa de desemprego. Nos Estados Unidos, a inflação anual acumulada atingiu 8,6% em fins de maio”. Segundo o The Guardian, acrescenta Quintella, a perspectiva dos países mais pobres não é de estagnação, mas de fome (not stagnation, but starvation).

Os observadores da economia mundial preveem desaceleração e inflação, que já ataca os EUA impondo a alta dos juros, o que repercute em todo o mundo capitalista, principalmente entre os países periféricos.

As  sanções econômicas e políticas como arma de guerra, utilizada pelos EUA para desestabilizar regimes políticos de seu desagrado, produziram, na Rússia, o efeito contrário ao visado, pois têm contribuído para o aumento do apoio popular à guerra e a Putin, o que não representa qualquer novidade. Anatol Lieven, cientista britânico dos mais respeitados,  trazido à baila por Thereza Quintella, adverte: “Não devemos esquecer que na grande maioria dos casos em que Washington recorreu a sanções econômicas com o objetivo de provocar mudança de regime – Cuba, Venezuela, Iraque, Irã e Coréia do Norte – essa estratégia fracassou” (Responsible Statecraft).

A China e a nova ordem mundial

Qualquer que seja o resultado da guerra em curso, afirma Quintella, haverá nítida vantagem para a China e seu projeto de médio prazo, que visa à disputa da hegemonia de uma nova ordem mundial que começa a se delinear. A embaixadora lembra o contraste entre a visita de Mao Zedong a Moscou, em 1949 – quando foi pedir a Stálin apoio para o país empobrecido, que recém saía dos esforços da guerra contra o
Japão e do próprio conflito interno –, e a situação atual, em que a Rússia se coloca, de uma maneira ou de outra, como devedora e tributária de uma China extremamente poderosa nas esferas tanto política quanto econômica. As projeções possíveis indicam uma sensível mudança na política externa russa, que, na medida em que se vê hostilizada pela Europa, mais caminhará visando à aproximação com a Eurásia, liderada pela China, e o maior intercâmbio com as economias dos BRICS, já anunciado por Putin. A propósito, Quintella, comentando o isolamento russo, lembra que, “à exceção do Japão e de Singapura, todos os países da Ásia recusaram-se a adotar sanções econômicas contra a Rússia, apesar da forte pressão que sofreram dos EUA e
dos países europeus da OTAN”. Esse fato, continua a embaixadora, é indicativo de que Moscou não
encontrará dificuldades para estreitar seus laços com a Ásia, “na busca  de novos mercados para suas exportações e cooperação tecnológica visando a substituir o know-how perdido com o abandono de seu território pelas empresas norte-americanas europeias”.

Conclui indicando o desfecho da disputa dos gigantes: “A tendência da balança geopolítica mundial é pender para o lado asiático: a China sairá fortalecida”.

* Roberto Amaral é escritor e ensaísta, ex-ministro de Ciência e Tecnologia( 2003/2004). É  autor  de História do presente: conciliação, desigualdades e desafios (Edição Expressão Popular). Pedro Amaral é  mestre em relações internacionais e doutor em letras pela PUC-Rio.

[1] O acordo ou protocolo de Minsk (capital da Bielorússia) foi assinado por Ucrânia, Rússia, Lugansk, Donetsk e Donbass, em 2014, e seu objetivo era pôr fim aos conflitos (de origem separatista) no Leste da Ucrânia. Foi firmado em doze pontos, podendo ser destacados: cessar-fogo imediato, retirada dos combatentes estrangeiros, autonomia para as regiões de Donetsk e Lugansk, monitoramento das fronteiras e libertação de prisioneiros dos dois lados (www.revistagalileu.globo.com). Não passou de um protocolo de intenções jamais  levadas a sério.

[2] Comenta Thereza Quintella: “A Rússia foi acusada no Ocidente de ter outros objetivos, bem mais ambiciosos: anexar toda a Ucrânia, ou pelo menos o território daquele país ao sul e a leste conhecido como Nova Rússia, uma expressão político-geográfica que data da época imperial; estender o conflito a
outros países do seu entorno; restabelecer o antigo espaço soviético, etc. O recente elogio de
Putin às conquistas militares do czar Pedro, o Grande no litoral báltico, durante a guerra movida
pela Rússia contra a Suécia no século XVIII, foi interpretado como confirmação dessa última
hipótese”.

Versão na íntegra:

[…]

A entrevista

 

Le Monde Diplomatique: A guerra, ao contrário do que supostamente deveria ser o objetivo de Putin, está fortalecendo militar e politicamente a OTAN,  e ensejando aos EUA a liderança (ou consolidação) da política econômica e militar do Ocidente, que sofria avarias desde a administração Trump.
          Thereza Quintella – Você disse muito bem: “supostamente”. Houve muita especulação sobre as reais intenções do Presidente russo ao invadir o território do país vizinho. Temos de partir dos objetivos declarados pelo presidente Vladimir Putin no dia 24 de fevereiro deste ano, ao anunciar o que chamou, e continua chamando, de “operação militar especial” na Ucrânia: a “desnazificação” e a desmilitarização daquele país. Os mesmos objetivos foram reiterados pela porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Maria Zakharova, em entrevista à imprensa no dia 3 do corrente junho. Entendeu-se que o primeiro termo significava a eliminação do batalhão Azov, uma milícia neonazista incorporada às tropas regulares ucranianas, e talvez também a destituição do presidente Volodymyr Zelensky; já o segundo seria uma reação ao projeto ucraniano de ingresso na OTAN, e visaria à declaração da neutralidade do país e ao afastamento da possibilidade de instalação em seu território de armamentos daquele pacto militar. Um outro objetivo de desmilitarização seria pôr fim aos bombardeios e outros ataques que há oito anos vinham sendo movidos pelas tropas ucranianas contra os separatistas das províncias de Lugansk e Donetsk, na região industrial e mineira (carvão) do Donbass, situada no leste da Ucrânia e fronteiriça à Rússia. A autonomia dessas províncias havia sido prometida pela Ucrânia no acordo de Minsk II, mediado pela França e a Alemanha e firmado em 2015. Como a Ucrânia não cumpriu seus compromissos no acordo, sob a alegação de que o havia firmado sob coação, a Rússia reagiu com declaração, em 21 de fevereiro último, do reconhecimento da independência daquelas províncias. A Rússia foi acusada no Ocidente de ter outros objetivos, bem mais ambiciosos: anexar toda a Ucrânia, ou pelo menos o território daquele país ao sul e a leste conhecido como Nova Rússia, uma expressão político-geográfica que data da época imperial; estender o conflito aoutros países do seu entorno; restabelecer o antigo espaço soviético, etc. O recente elogio de Putin às conquistas militares do czar Pedro, o Grande no litoral báltico, durante a guerra movida
pela Rússia contra a Suécia no século XVIII, foi interpretado como confirmação dessa última hipótese. Desejosas talvez de afastar qualquer insinuação de participação da OTAN na responsabilidade pela eclosão da guerra, por acenar à Ucrânia com a perspectiva de ingresso naquela organização militar, um objetivo irrealizável no curto e médio prazos, algumas fontes
europeias afirmam que o objetivo real da Rússia não seria impedir a adesão ucraniana à OTAN, e
sim o ingresso na União Europeia (UE), o que a Ucrânia também pleiteia. Lembro que a questão
da oposição russa à aproximação com a UE está na origem dos acontecimentos de 2014, que
levaram à destituição do presidente pró-Moscou Viktor Yanukovitch, à eleição de um sucessor
pró-Ocidente, e à tomada pela Rússia da Criméia, hoje incorporada ao seu território. Segundo as
mencionadas fontes, a Rússia busca impedir o ingresso da Ucrânia na UE por temer os riscos,
para a sua estabilidade política, da presença, em sua vizinhança, de uma Ucrânia, pós-adesão,
democrática e em acelerado processo de desenvolvimento econômico. Esse argumento me parece mais propagandístico que realista. Seria mais forte a oposição ao ingresso na OTAN, visto tratar-se de uma aliança militar cuja marcha em direção a suas fronteiras a Rússia vê como uma real ameaça à sua segurança. Considera-a também como uma traição, uma violação de compromisso assumido pelo presidente dos EUA, George Bush, com o presidente da URSS Mikhail Gorbachev, em 1990, para que ele aceitasse a unificação alemã, deque a única expansão que haveria seria a incorporação do território da extinta República Democrática Alemã. A inconformidade com a expansão da OTAN para leste vem sendo explicitada – com crescente veemência à medida que a Rússia foi-se fortalecendo – desde o anúncio, na última década do século passado, da adesão à OTAN dos três primeiros países do Leste Europeu (Hungria, Polônia e República Tcheca). Se houve o objetivo de derrubar o governo pró-Ocidente de Zelensky, para substituí-lo por um governo pró-Moscou, numa inversão do que fizeram os EUA em 2014, ao provocarem a revolução ucraniana conhecida como Euromaidan, que levou à derrubada do presidente Viktor Yanukovich, esse objetivo pareceria posto de lado, pelo menos temporariamente, desde que astropas russas se retiraram das imediações de Kiev e se concentraram nas regiões leste e sul da Ucrânia. Um balanço da situação do conflito no momento presente, transcorridos pouco mais de cem dias do seu início, indica que os objetivos declarados da Rússia poderiam estar perto de serem alcançados: integrantes do batalhão de Azov, principal força de defesa da cidade portuária de Mariupol, acabaram por render-se, depois de feroz resistência, e foram feitos prisioneiros(mas há notícias de que elementos remanescentes daquele batalhão se estariam organizando em milícias, para atuar contra os ocupantes russos na região de Donbass). E a Rússia já ocupa quase todo o território das províncias de Lugansk e Donetsk; faltaria apenas, em Lugansk, a queda das cidades gêmeas de Lysychansk e Severodonetsk, situadas em margens postas do rio Donets. É nesta última cidade que se concentra no momento a atenção da mídia mundial, porque ali a luta se desenrola casa a casa, e o cerco completo da cidade está próximo. Zelensky esteve na região no fim de semana de 4 e 5 de junho informou à imprensa que estariam morrendo de 60 a 100 soldados por dia no front oriental. Poucos dias depois, já se falava em 150. Como mostram os mapas da presença russa e já reconheceu Zelensky, a Rússia ocupa neste momento cerca de 20% do território ucraniano. Além do Donbass a leste, ocupa também duas regiões do sul do pais: Kherson e Zaporijia. Fontes militares norte-americanas acreditam que, no verão, provavelmente em julho, os russos tentarão avançar ainda mais, no sul, com o objetivo de tomar o porto de Odessa. Nesse caso, se forem bem-sucedidos, a Ucrânia  perderia o acesso ao Mar Negro, como já perdeu ao Mar de Azov, e ficaria sem poder exportar por via marítima sua produção. Os Estados Unidos acabam de prometer a Zelensky o fornecimento de sistemas de lançamento múltiplo de mísseis mais poderosos e sofisticados, conhecidos pela sigla HIMARS (High Mobility Artillery Rocket System). Esses mísseis, que se encontram em bases europeias,não seriam, contudo, numerosos (apenas quatro), sua entrada em ação demandará ainda maisalgum período de treinamento – de três a quatro semanas – e não é certo que sejam operados com eficiência suficiente para mudar o rumo da guerra em favor dos ucranianos. Como os HIMARS
são de mais longo alcance, cerca de 80 quilômetros, existe o temor de que sua entrada em
operação acarrete o agravamento do conflito, e mesmo sua nuclearização, caso não seja
cumprida a promessa feita por Zelensky de não atingir com eles o território da Rússia.
Também os ingleses e os alemães prometeram o envio à Ucrânia de alguma artilharia
mais moderna, mas em pequena quantidade: três sistemas lançadores de múltiplos mísseis, o
Reino Unido, e dois a quatro, a Alemanha.

Analistas militares não-europeus não acreditam que esses novos equipamentos, em
número tão reduzido, venham a constituir um “war-time game-changer” (Asia Times, 8 de
junho. 2022). A importância da entrada em operação desses sistemas foi também minimizada pelo
Presidente Putin em declaração à imprensa no dia 5 do corrente. Já o Ministro dos Negócios
Estrangeiros, Sergei Lavrov, afirmou que ela constituiria “um grande passo na direção de uma
escalada inaceitável.”

O Secretário-Geral da OTAN, o norueguês Jens Stoltenberg, declarou em 2 de junho,
depois de uma audiência com o presidente Joe Biden, que a guerra na Ucrânia tornou-se uma
guerra de atrito, deve durar ainda algum tempo, e mais provavelmente será resolvida na mesa de
negociações. O resultado dessas, por sua vez, estará naturalmente ligado à situação no teatro de
operações.

Passada a euforia do primeiro momento, quando ocorreram dificuldades de avanço das
tropas russas, e resistência feroz, corajosa e inesperada dos ucranianos, capitaneados por seu
carismático comediante-tornado-presidente Zelensky, a perspectiva de um conflito prolongado
começa a provocar fissuras na unidade europeia, ao mesmo tempo em que surgem vozes nos
EUA a questionar a política do governo Biden de apoio total à Ucrânia.
Na Europa, países mais realistas, como França, Alemanha e Itália, levados por
considerações econômicas e geopolíticas, acreditam que não se deveria “humilhar a Rússia”, na
expressão do presidente francês, e querem que russos e ucranianos sentem à mesa de negociação
o quanto antes e cheguem a um acordo que ponha fim à guerra, mesmo que isso signifique ter a
Ucrânia de fazer concessões territoriais. Por outro lado, países compreendidos no grupo a que os
analistas políticos chamam de “a nova Europa” – os países bálticos e os do Leste Europeu (com
exceções, como a Hungria) – devido ao trauma de seu relacionamento passado com a URSS,
defendem o prolongamento da guerra até a derrota da Rússia e sua retirada do território
ucraniano.
Nos Estados Unidos, que já destinaram à Ucrânia mais de US$ 54 bilhões nos últimos
três meses (desse montante, 40 bilhões foram aprovados pelo Congresso em maio último), mais
de metade deles em ajuda militar, e que devem investir mais US$ 700 milhões com o
fornecimento dos HIMARS, começam a surgir sinais de fadiga com a guerra na Ucrânia e
dúvidas sobre o acerto da política governamental a respeito. Aos poucos, começa-se a questionar
o grau de envolvimento do país no conflito, que cada vez mais aparenta ser uma guerra entre a
OTAN (para não dizer EUA, a potência dominante na Organização) e a Rússia por um interposto
Estado, a Ucrânia. A que objetivo visaria o governo norte-americano nessa guerra? Provocar a
derrubada do Presidente Putin? Derrotar a Rússia? Ou defender a integridade territorial da
Ucrânia e a manutenção da sua independência? E até que ponto estaria disposto a perseguir esse
último objetivo: até mesmo a assumir o risco de provocar uma guerra nuclear?
Parece-me interessante registrar algumas das personalidades anglófonas que têm instado
o governo norte-americano a abandonar uma política que tanto sofrimento tem imposto ao povo
ucraniano, e passe a promover o fim negociado da guerra.
Começo pela manifestação que mais repercutiu internacionalmente, a do ex-secretário de
Estado Henry Kissinger. Falando em maio ao Fórum Econômico Mundial de Davos, Kissinger
retomou argumento que apresentara em célebre artigo seu de 2014 no sentido de que o ocidente
não deveria buscar uma derrota humilhante para a Rússia, o que enfraqueceria a estabilidade
europeia como um todo. Sustentou, ao contrário, que a solução para o conflito dependeria
necessariamente da cessão pela Ucrânia de uma parte de seu território.
Em entrevista em março último ao site Truthout?, o filósofo e linguista Noam Chomsky
afirmou que “Nossa principal preocupação deve ser pensar cuidadosamente no que podemos
fazer para acabar rapidamente com a criminosa invasão russa e salvar as vítimas ucranianas de
mais horrores.” Opinou também que só haveria duas maneiras de a guerra acabar: ou por um
acordo diplomático negociado ou pela destruição de um dos lados, “rapidamente ou em agonia
prolongada.” Não seria o caso da Rússia, que teria a capacidade de obliterar a Ucrânia. Na visão
de Chomsky, “se Putin e sua corte forem empurrados contra a parede, eles, em desespero, podem
usar essa capacidade.” Seria ir longe demais, argumenta, pensar que Putin visa a uma guerra com
a OTAN e os EUA, o que traria a aniquilação mútua. “Acho que ele quer paz – em seus termos.
E para descobrir quais são eles, só sentando à mesa de negociações”. Não usando a força militar,
mas por meio de “política e diplomacia”. Chomsky entende que ter interesse na continuação da
guerra, apostando numa mudança de regime na Rússia, é “criminoso e tolo. Criminoso porque
perpetua uma guerra cruel, tolo porque é bem provável que, se Putin for derrotado, alguém ainda
pior assuma o poder.”

O autor e jornalista britânico Anatol Lieven tem alertado para os riscos – em particular
para os próprios ucranianos — de um prolongamento indefinido da guerra “por procuração” que
os Estados Unidos pareceriam desejar conduzir em território ucraniano.
Já o Embaixador americano Charles (Chas) Freeman, que ocupou altos cargos no
Departamento de Estado e outros órgãos do Governo, declarou em uma entrevista em março:
“Tudo o que estamos fazendo, em vez de acelerar um fim dos combates e algum compromisso,
parece ter como objetivo prolongar o conflito.” Numa expressão que se tornou famosa, apontou
que a administração Biden parece disposta a combater a Rússia “até o último ucraniano.”
Comecei comentando os objetivos russos e terminei com os norte-americanos. Mas cabe
falar também do campo de batalha, a Ucrânia. O objetivo declarado de Zelensky é maximalista: a
partida imediata e incondicional das tropas russas do território de seu país e um retorno à
situação anterior a 2014. A única concessão com que acena é a declaração de neutralidade.
Evidentemente, a Rússia considera a Criméia inegociável, e por isso considera inútil sentar à
mesa de negociações. Vê-se portanto que essas só poderão ocorrer depois que os EUA fizerem
sentir a Zelensky, com muita firmeza, os limites de sua disposição política, militar e financeira
de seguir apoiando-o.

Comento, finalmente, nessa minha longuíssima introdução à minha resposta à sua
pergunta, que em toda guerra é comum haver propaganda e campanhas de desinformação de
parte dos litigantes, interessados em ocultar suas fraquezas e denegrir seus inimigos, mas que
isso está muito acentuado no atual conflito europeu, principalmente de parte do lado ucraniano.
O jornal New York Times publicou matéria, em 8 de junho, sobre reclamações de autoridades
norte-americanas, dos setores militares e de informação, sobre a falta de clareza dos ucranianos,
por exemplo, no tocante a suas perdas humanas e de material, o que é atribuído ao temor de ver
diminuído o fluxo de ajuda dos EUA e de outros países da OTAN. Em contraposição, a Ucrânia
estaria recebendo regularmente e em tempo quase real informações dos EUA sobre a localização
e as movimentações das forças russas. Essa bruma que envolve a realidade do que se passa no terreno levou-me a aumentar o volume de minhas leituras, bem como a diversificar minhas fontes para além das brasileiras e anglófonas, para atualizar-me mais adequadamente sobre o quadro geral da guerra e sentir-me habilitada a responder a suas perguntas. Depois dessa longa digressão, de balanço da situação e de informação sobre as especulações a respeito de sua evolução, volto a suas perguntas.
A guerra estaria fortalecendo politicamente a OTAN?

Diria que até agora sim, porque é graças à sua grande ajuda material e logística que a Ucrânia vem conseguindo oferecer resistência ao avanço das tropas russas, logrando mesmo afastá-las de Kiev e Kharkiv, suas duas cidades mais importantes. Até onde, porém, irá a disposição do presidente dos EUA de seguir fornecendo à Ucrânia armamentos cada vez mais caros e sofisticados, que as forças ucranianas poderiam estar pouco preparadas tecnicamente para usar e que poderão até mesmo provocar a nuclearização do conflito? Outro sucesso político importante foi a decisão de dois países
nórdicos, Suécia e Finlândia, de abandonarem sua política de neutralidade e pedir acesso à
Organização.
Por outro lado, como já relatei, começam a aparecer divergências entre os Estados
membros sobre os objetivos e limites do apoio à Ucrânia. Militarmente, a OTAN sai fortalecida,
porque vários países, principalmente a Alemanha, anunciaram sua intenção de aumentar seus
orçamentos militares. Isso, por sua vez, virá fortalecer ainda mais a indústria bélica dos EUA, a
grande beneficiária do conflito. Uma crítica que fazia o presidente Trump à OTAN era a de que
os demais países-membros deixavam nas costas dos Estados Unidos o ônus do financiamento da
Organização e de suas operações militares.

LMDAinda na contramão do que poderia esperar a Rússia, a OTAN viu crescer seu expansionismo,
com as decisões da Finlândia e da Suécia.

TQ – A fronteira com a Finlândia é a quinta fronteira russa em extensão. São maiores
também as fronteiras com a China, a Mongólia e a própria Ucrânia.
A decisão da Suécia e da Finlândia de abandonar a neutralidade e pleitear a admissão na
OTAN foi provocada pela comoção causada pela invasão russa do território ucraniano e também,
presumo, por forte pressão dos Estados Unidos e outros países-membros, interessados em
desagradar a Rússia e a promover o fortalecimento da Organização com essa mudança na política
de segurança dos dois países nórdicos. A Suécia e a Finlândia já mantinham vínculos de cooperação com a OTAN, no contexto do programa Parceria para a Paz, mas a adesão formal não estava em cogitação para um futuro próximo.

O pedido de adesão foi formalizado em 18 de maio, por decisão política e sem ser
submetido a referendo popular.  . A adesão depende de sua aceitação por unanimidade pelos atuais 30 membros da OTAN, de forma que é necessária a concordância da Turquia, que levantou dificuldades, sob o pretexto de que os dois países dão abrigo a militantes curdos. Eu me pergunto quão sábia foi a precipitada decisão dos dois países – e principalmente da Finlândia, mais vulnerável diante da Rússia pela existência da longa fronteira comum – ao abandonar uma política de neutralidade muito bem sucedida e colocar sua segurança na dependência dos EUA e seus aliados europeus. Penso que não havia urgência na tomada dessa decisão, cujos efeitos imediatos serão um acirramento de tensões com a Rússia e a obrigação para os dois países (Finlândia e Suécia)  de elevar seus gastos militares a 2% de seu Produto Interno Bruto.

 

LMDA OTAN-UE posta-se na crise  com um comportamento anti-Rússia mais ferrenho do que em qualquer
momento da guerra-fria com a URSS.

TQ – Você tem toda razão. Temos diante dos olhos, na prática, uma guerra entre a
OTAN (leia-se os EUA) e a Rússia por um Estado interposto, a Ucrânia. A interpretação de que
esse é o verdadeiro quadro dessa guerra é que tem provocado o apoio do povo russo ao
Presidente Putin em sua condução da mesma, em que pesem os fortes laços emocionais e
culturais que unem os russos aos ucranianos. Em reação ao anúncio de fornecimento pelos EUA dos sistemas de lançamento de mísseis HIMARS, o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Dmitri Peskov, citou no último dia 1º. de junho a frase do Embaixador Chas Freeman que comento acima sobre a aparente disposição dos EUA de combater a Rússia “até o último ucraniano”.
Qualquer que seja o fim do conflito, é previsível uma recomposição a médio prazo do
relacionamento com os países europeus, ditada por interesses econômicos poderosos, que dizem
respeito sobretudo às matérias primas do setor energético, para os quais não encontrarão aqueles
países, a curto ou médio prazo, fontes alternativas capazes de concorrer com a Rússia em matéria
de preço, facilidade de acesso e quantidades disponíveis. Com os EUA, o quadro é bem mais grave, dadas suas rivalidade e mútua desconfiança. Não há qualquer garantia de que uma eventual mudança de regime na Rússia, tão desejada pelos EUA, trazida seja ela por uma destituição improvável de Putin ou por sua morte natural – segundo a edição de 2 de junho da revista Newsweek, ele estaria gravemente enfermo, com câncer – leve ao surgimento de um novo Ieltsin, um títere manipulável pelos EUA. É geral o entendimento entre os analistas de que muito provavelmente o atual presidente russo seria
sucedido por um nacionalista ainda mais radical.Como ouvi de uma alta fonte russa, tempos atrás: “Nós teríamos gostado de ser aceitospelos EUA como parceiros; mas eles não querem sócios, e sim súditos. E isso para a Rússia é inaceitável”.

Quando era Embaixadora em Moscou, conversando com um colega europeu cujo país
era membro da OTAN, questionei certa vez o acerto da expansão da Organização, que então
apenas começava, pelo atrito que causaria no relacionamento com a Rússia, bem como a
vantagem, para os países que aderiam, de colocar-se sob a tutela dos EUA em matéria de
segurança e de comprometer-se com a defesa dos interesses estratégicos norte-americanos.
Disse-me meu interlocutor: “A princípio, nós também protestamos diante da supremacia dos
EUA, mas depois a aceitamos”. E acrescentou: “Os russos acabarão por aceitá-la também.”

LMDPara muitos analistas o exército russo revelou fragilidades.
TQ -Concordo com eles. Os militares russos gozavam de boa reputação, mas erraram na estratégia e na execução. Avançaram com uma frente muito extensa, difícil de coordenar e de abastecer, e
não avaliaram bem as condições do terreno, lamacento por causa do degelo, o que obrigou os
tanques a procurarem as estradas, onde eram mais vulneráveis a emboscadas. Mostraram sérias
deficiências em treinamento, liderança e disciplina. Analistas militares apontam a infantaria
como a arma russa que se mostrou mais despreparada. Falhou também o sistema de informações,
porque não foram recebidos pela população com o júbilo que parecem ter esperado, e
encontraram uma resistência com que não contavam. Aos poucos os erros foram sendo corrigidos, mas para mudar a situação a seu favor foi necessário recorrer à artilharia pesada, com o  consequente aumento significativo dos danos materiais e humanos, de repercussão muito negativa.
Diria que lições terão de ser tiradas dos erros cometidos e que a Rússia deverá levar um
bom tempo antes de lançar-se em nova ação agressiva, o que espero, aliás, nunca venha a
acontecer.

LMDAo final, seja ele qual for, a Rússia, cercada pelas forças da OTAN, terá uma Ucrânia mais
hostil.
TQ – Não vejo para curto prazo o acesso da Ucrânia à OTAN. A neutralidade,
inclusive, é o único objetivo russo que Zelensky já se mostrou disposto a satisfazer. Mas é
indubitável o grande prejuízo causado pela guerra não apenas às relações russo-ucranianas, mas
também russo-europeias. Há comentaristas que acreditam que a Rússia, ao invés de pretender incorporar a seu território as províncias de Lugansk e Donetsk, preferirá que sejam reconhecidas como Estados independentes, e que venham a constituir, em sua fronteira oeste, uma espécie de zona-tampão entre o território russo e a Ucrânia. É provável que o mesmo pleiteie para as regiões de Kharkov e Zaporijia, caso tenha completado sua ocupação ao sentar-se à mesa de negociações.
No momento, tudo isso são apenas conjeturas, na dependência dos resultados da ação
militar, que prossegue. Negociações serão inúteis enquanto Zelensky se mantiver irredutível na
posição maximalista de que a Rússia tem de ser derrotada e a Ucrânia reconduzida à situação
anterior a 2014, quando perdeu a Criméia. Para a derrota russa que ele almeja, seria necessária,
mas talvez mesmo assim insuficiente, a entrada ostensiva da OTAN na guerra, o que Joe Biden
tem evitado caracterizar, diante do risco nuclear que acarretaria.

LMDOs dois aparentes objetivos de Putin parecem distantes: manter a Ucrânia fora da órbita da
OTAN e os mísseis longe de suas fronteiras
.
TQ – Comentei acima sobre as perspectivas, remotas, de admissão da Ucrânia à
OTAN. Quanto a Suécia e Finlândia, muito vai depender das condições negociadas para sua
adesão. Atualmente, a OTAN tem bases de lançamento de bombas nucleares em cinco
países europeus: Bélgica, Alemanha, Itália, Holanda e Turquia (fonte: Federação de Cientistas
Americanos e Centro de Controle e Não-Proliferação de Armas Nucleares
). Um sexto país
europeu em breve estará entrando nesse rol: a Grã-Bretanha, onde uma base estaria em
construção.

LMDVejo a China, que não arriscará seu comércio internacional e as exportações de manufaturados para o Ocidente, a começar para os EUA, como a grande vitoriosa, sem dar
um tiro. Vence nas duas hipóteses plausíveis: 1. Se a Rússia vence, porque terá a seu lado um
aliado (forrado de bombas atômicas) fortalecido. 2. Se a Rússia perde, pois nesta hipótese não
restará alternativa a Moscou senão uma aliança subalterna com a China.

TQ – Qualquer que seja o resultado da guerra, haverá nítida vantagem para a China. Muito
se tem comentado sobre o contraste entre a visita de Mao Tse Tung a Moscou em 1949, quando
foi pedir a Stalin apoio para o país empobrecido, que recém saía dos esforços da guerra contra o
Japão e do próprio conflito interno, e a situação atual, em que a Rússia se coloca, de uma
maneira ou de outra, como devedora e tributária de uma China extremamente poderosa nas
esferas tanto política quanto econômica. À exceção do Japão e de Singapura, todos os países da Ásia recusaram-se a adotar sanções econômicas contra a Rússia, apesar da forte pressão que sofreram dos Estados Unidos e dos países europeus da OTAN para que o fizessem. A meu ver, isso mostra que a Rússia não encontrará dificuldades para estreitar seus laços com aqueles países, ao voltar-se para eles em busca de novos mercados para suas exportações e de cooperação tecnológica para substituir o
know-how perdido com o abandono de seu território pelas empresas norte-americanas e
europeias. A tendência da balança geopolítica mundial é pender para o lado asiático. Como você
disse, a China sairá fortalecida.

LMDA Rússia virou a “Geni” do mundo e Putin um pária. Isso tem preço nas relações internacionais. De outra parte, ainda não se conhecem estimativas confiáveis relativas aos prejuízos causados à economia russa pelos embargos, e muito menos aos custos, supostamente altíssimos, da guerra.

TQ – Eu concordaria plenamente com a sua primeira frase se modificada sua abrangência. Proporia substituir a expressão “do mundo” pela seguinte: da Europa, bem como dos EUA e dos países mais alinhados com a política externa norte-americana. A princípio, e por algum tempo, foram realmente unânimes, nos meios oficiais, na imprensa e na população daqueles países, as manifestações contra Putin e a Rússia, pelo ato de agressão contra a Ucrânia. Houve uma grande pressão política, dos EUA, da Europa e da Ucrânia, para transformar aquele conflito europeu, por eles apresentado como a luta de David contra Golias, numa causa universal. No Leste e no Sul, onde vive a maioria da população mundial, essa tese não vingou, e os governos, embora condenando o recurso à guerra e a invasão de território, preferiram manter-se à margem, mais atentos aos seus interesses nacionais.

Houve efetivamente um frenesi no Ocidente em manifestar solidariedade à Ucrânia, o que se traduziu em exibir nas casas e nos carros, ou em distintivos nas vestimentas, a bandeira ou as cores daquele país, em incluí-lo em eventos a que não estaria em outros tempos associado, e em oferecer ao presidente ucraniano a oportunidade de dirigir-se por vídeo ao público de grandes eventos, a reuniões parlamentares, etc. Por outro lado, o repúdio à Rússia e a tudo o que fosse ligado àquele país levou a que convites dirigidos a nacionais russos para participar de eventos políticos, econômicos, sociais, culturais e esportivos fossem retirados; contratos artísticos cancelados, grandes figuras da literatura russa substituídas por outros autores em seminários acadêmicos, a que crianças russas sofressem discriminação ou violência em escolas no estrangeiro, etc. Até os gatos russos caíram no opróbrio, pois foram proibidos, em março, pela Federação Felina Internacional, de participar de exposições.

Em entrevista recente, Ted Galen Carpenter, o especialista em defesa e política exterior do Instituto Cato, o mais conhecido opositor à expansão da OTAN entre os cientistas políticos ocidentais, comentou a euforia com que foi vista a perspectiva de derrota de Putin e apontou como suas causas a animosidade ideológica contra Moscou e forte campanha de propaganda movida por Washington, pelo lobby ucraniano, e pelo complexo industrial-militar norte-americano. Abro aqui um parêntese para comentar que chamou minha atenção, na entrevista de Carpenter, sua declaração de que receia que os EUA, o Reino Unido e alguns outros países da OTAN mais desejosos de derrotar Moscou e punir Putin, pressionem Zelensky para que não negocie, mas que siga sangrando seu país e combatendo os russos, numa guerra de guerrilha que poderia arrastar-se por meses e até mesmo anos, para isso fornecendo-lhe mais e mais armamentos. Carpenter considera que isso seria um erro colossal, pois para Putin a derrota não é opção admissível e, se necessário for, na tentativa de afastá-la, poderá chegar até mesmo a escalar a guerra ao nível nuclear. Na opinião de Carpenter, apenas em caso de possível derrota Putin faria uso de armamento nuclear.

Voltando à opinião generalizada no Ocidente de condenação da Rússia e solidarização com a Ucrânia, comento que, aos poucos, o clima exaltado inicial parece estar arrefecendo, diante do prolongamento da guerra, da incerteza quanto a qual lado sairá vencedor, e da tomada de consciência do seu elevado custo financeiro e econômico. A culpabilização de Putin e as simpatias por Zelensky continuam a existir, mas tornam-se mais numerosos os chamamentos à mesa de negociação.

Sobre as sanções econômicas impostas à Rússia desde 24 de fevereiro, nunca antes tão rigorosas em relação a qualquer país, o que se constata hoje é que não produziram o efeito desejado, que seria provocar uma grave crise econômica que forçasse Putin a desistir da guerra e a retirar o exército russo do território ucraniano, e que suas consequências se têm feito sentir também, e talvez mais pesadamente, no resto do mundo, para o que, aliás, muitos analistas tinham alertado, levando em conta a globalização econômica. No primeiro momento sim, elas provocaram pânico na população russa e corrida às fontes de suprimento e aos bancos. O rublo perdeu 30% do seu valor frente ao dólar, o que levou o Presidente Biden a fazer o trocadilho de que o rublo tinha virado “rubble” (escombro), mas a moeda russa já se recuperou e sua cotação supera atualmente o nível anterior a 24 de fevereiro[1]. O ritmo lento na aplicação das sanções, a expansão das principais exportações russas – petróleo e gás – a preços mais elevados devido ao aumento da procura internacional, e medidas internas adotadas pela muito competente diretora do Banco Central russo, Elvira Nabiullina, permitiram reverter a situação crítica e a vida voltou mais ou menos ao normal. Dias atrás, o Banco Central anunciou o retorno da taxa de juros ao nível de 9,5%, o mesmo de fevereiro. O esforço de guerra tem sido financiado pelo significativo aumento do saldo na balança de pagamentos provocado pela queda das importações provenientes do Ocidente, e o aumento, em volume e valor, das exportações de petróleo e gás para os países europeus. No primeiro quadrimestre de 2022, o saldo da balança comercial foi de US$ 96 bilhões, mais que o triplo do valor alcançado no mesmo período de 2021.

A expectativa é que o quadro se deteriore a partir do terceiro trimestre, com o agravamento da recessão que já se faz sentir. A previsão geral é de forte queda do PIB russo este ano; mudam apenas os percentuais, segundo as fontes. A previsão oficial (Ministério de Economia) é de que ficará em 8%, o que já é bem elevado. A maioria dos analistas estrangeiros dizem 10%. O Fundo Monetário Internacional prevê 8,5%, o Banco Mundial 11,2%. Na avaliação do Instituto Internacional de Finanças (IIF) será ainda mais negativa este ano, na faixa de 15%, diminuindo para  3% no próximo. A principal causa da recessão é a dificuldade, para o comércio e a indústria russos, em reabastecer-se de uma ampla gama de produtos e componentes importados da Europa e dos EUA. Isso muito embora o Governo já viesse alertando, desde a imposição de sanções ao país em 2014, como punição pela tomada da Criméia, para a necessidade de diversificação da produção industrial nacional e de busca de novos mercados fornecedores, Como declarou recentemente a Diretora do Banco Central, a recuperação da economia vai depender da velocidade com que será feita a substituição das importações provenientes do Ocidente. O maior desafio será lograr a formação de novas parcerias no campo do desenvolvimento tecnológico, para evitar a obsolescência dos setores produtivos do país. A previsão é que a recessão durará pelo menos dois anos.

Também são negativas as previsões sobre o comportamento da inflação anual, que deve elevar-se e ficar entre 18 e 23%. Já a taxa de desemprego por enquanto permanece baixa, ao redor de 4%. No curto prazo, as economias mais afetadas foram as da Europa continental, fortemente dependentes do petróleo bruto, do gás e do carvão que importam da Rússia. No Reino Unido, a inflação anual alcançou 9%, seu valor mais alto nos últimos quarenta anos, e o preço da gasolina bateu o recorde. Os juros foram elevados pelas autoridades monetárias, e é esperado um aumento da taxa de desemprego. Nos Estados Unidos, a inflação anual acumulada atingiu 8,6% em fins de maio. O jornalista Larry Elliot, editor econômico do diário britânico The Guardian, escreveu que, para os países mais pobres, a perspectiva não é de estagnação, mas de fome (not stagnation, but starvation).

Sobre o gosto dos EUA pela aplicação de sanções econômicas para provocar a queda de regimes estrangeiros de seu desagrado, o conceituado cientista político britânico Anthony Lieven publicou  em fins de maio um interessante artigo em Responsible Statecraft (em colaboração com Ted Snider, conhecido articulista sobre política externa norte-americana), em que trata da possibilidade de as sanções econômicas terem efeito contrário ao visado e levarem ao aumento do apoio popular ao regime de Putin: “Não devemos esquecer que na grande maioria dos casos em que Washington recorreu a sanções econômicas com o objetivo de provocar mudança de regime –Cuba, Venezuela, Iraque, Irã e Coréia do Norte – essa estratégia fracassou.”

* Roberto Amaral é escritor e ensaísta, ex-ministro de Ciência e Tecnologia( 2003/2004). É  autor  de História do presente: conciliação, desigualdades e desafios (Edição Expressão Popular). Pedro Amaral é  mestre em relações internacionais e doutor em letras pela PUC-Rio.

[1] O rublo russo chega no dia 20 de junho ao seu maior pico de valorização desde julho de 2015, informa a Bloomberg (20/06/2022) LMD 👆🏽