Roberto Amaral*
As qualidades e as deficiências de Dilma Rousseff, em nada ou muito pouco contribuíram para o impeachment, violência que só se tornou possível porque seu governo encontrava-se em avassaladora minoria na Câmara dos Deputados, tornada ainda mais grave por força das perplexidades da bancada de seu partido e a fragilidade da condução política do governo. O erro estratégico da direção do PT começara na campanha eleitoral recém finda, ao jogar todas as fichas no pleito presidencial, ou seja, ao relegar a plano secundário as disputas pelo Senado e pela Câmara. Como se ambas as campanhas, as eleições majoritárias e proporcionais, integrantes de um único projeto, não pudessem ser travadas simultaneamente, senão com o mesmo peso. A intelligentsia da campanha e os estrategistas do eventual governo não cogitaram dos custos políticos (de memória ainda tão recente…) que haviam sido impostos ao governo Lula, ao próprio presidente, ao PT e à esquerda como um todo, quando se viram à míngua de maioria parlamentar, aquela contingência sem a qual a governança é simplesmente impossível, como tardiamente descobriria Dilma no seu depoimento no documentário “Democracia em Vertigem”, exibido em 2019. Longe das emoções (e comoções) da época de seu lançamento, bem que esse precioso filme poderia ser revisto pelos novos estrategistas do PT.
Lamentavelmente, as lições dos apuros dos governos Lula e Dilma não semearam em terreno fértil.
Apesar de conquistar a presidência da república pela terceira vez consecutiva, o PT, em 2014, elegera apenas 70 deputados federais, num universo de 513 (no pleito anterior conquistara 80 cadeiras) trazendo para a materialidade dos fatos um fenômeno que Gilberto Carvalho, observador atento, começara a ver nos eventos de 2013, para espanto de uma nomenklatura panglossiana: desgaste do petismo (e de suas lideranças) associado à emergência de uma extrema-direita que até então teimávamos em ignorar.
Deve-se a Lula, já após o processo eleitoral de 2014 e seus números, o chamamento das hostes petistas e democráticas à realidade. Seja refletindo sobre esses números, seja considerando a cena política imediata, Lula declararia à imprensa, logo após a diplomação dos eleitos, o que então, aos desavisados, pareceria avaliação de Cassandra infiltrada nas elocubrações do grande dirigente: “Os tempos que virão pela frente não serão fáceis” (Carta Capital, ano XX, nº 830. Dez. 2014). Lula conhecia, e conheceu como parlamentar e como governante o que pode significar, para o presidente da república, mesmo com respaldo popular (caso que era o seu), lidar com um Congresso indisposto; e conhecia o peso político de uma correlação de forças desfavorável. Dilma vencera o segundo turno mediante uma pequena margem de votos ao cabo de uma campanha eleitoral lotada de erros, e seu adversário, fato inédito desde o restabelecimento das eleições diretas, se recusara a reconhecer o resultado do pleito. Talvez Lula também conhecesse as brutais limitações éticas do vice imposto (pelas circunstâncias, digamos…). Daí sua advertência. Os tempos, previstos como “não fáceis” na metáfora do líder, logo se revelariam dramáticos. A história é conhecida e seus desdobramentos ainda estão em curso, sem prazo para termo, mesmo na desejada hipótese da vitória popular nas eleições deste ano.
E no entanto a estratégia da campanha presidencial da centro-esquerda, em seus preâmbulos, continua, até aqui, relegando a plano secundário as eleições proporcionais.
O vestibular anunciador das dificuldades que a direção política do governo Dilma não queria ver foi a derrota na disputa pela presidência da Câmara do Deputados com a eleição de Eduardo Cunha, o corrupto polivalente e audacioso, prócer destacado do MDB, partido do vice-presidente eleito com Dilma Rousseff, o inominável Michel Temer, agente ativo do golpe de 2016. Agora recuperado e prestigiado, servindo de interlocutor de Alckmin no tema da reforma trabalhista.
Hoje, quando menos de quatro meses nos separam do pleito, Lula poderia repetir que nos aguardam dias muito difíceis. E, mais uma vez, o futuro do novo governo – seja a governança, seja mesmo sua sobrevivência – estará nas mãos ora de um Congresso reacionário, ora de um poder judiciário no qual não se pode entregar o destino da política. Na campanha, na efetivação da vitória com a posse, e, principalmente, no eventual governo, espera-nos um caminhar juncado de percalços. Permanecem irremovíveis as resistências da casa-grande e da grande imprensa, notória pela sua faciosidade, e a clivagem ideológica deverá ser alimentada pela disputa eleitoral. No plano externo as nuvens são de apreensão e o certo é contar, no mínimo, com a má vontade do Departamento de Estado dos EUA, preocupados com as mudanças de ares políticos no que sempre considerou como seu quintal. Em continente que já viu a troca de guarda na Argentina, na Bolívia, no Chile e na estratégica Colômbia, soma-se a possível retomada, pelo Brasil, de uma política externa “ativa e altiva”, que não hesitará em fortalecer os BRICS.
Neste pleito de 2022, nem Lula nem o PT podem ignorar – pois está à vista de todos – que se arma uma grande aliança, política e econômica, visando a assegurar, na próxima legislatura, o controle de ambas as casas do Congresso. O que a esquerda desdenha, a direita leva a sério. Essa aliança de interesses, ou súcia, reúne a direita e a extrema-direita, civil, militar e empresarial, com o chamado “centrão”, uma afoita e insaciável organização de assaltantes do bem público. Ela está bem fornida. Dispõe, de saída, dos R$ 16,5 bilhões do “orçamento secreto”, esta excrescência republicana, a que se somam os fundos partidário e eleitoral dos muitos partidos de direita e do bolsonarismo e as generosas doações do empresariado. Disporá, ainda, em 2022 como em 2014, de verdadeiras redes políticas espalhadas por todo o país, como aquelas alimentadas por setores do clero evangélico mais primitivo e ganancioso. Contará, também, com a estrutura e a rede nacional militar e policial repressiva. Não é pouca coisa.
Nada obstante tudo isso, a candidatura de centro-esquerda não parece atentar para a tática da direita; não discute com a sociedade a importância de que se reveste hoje o poder legislativo, e muito menos discute a impossibilidade de governos progressistas sobreviverem, sem concessões de fundo, enfrentando o rolo compressor de um congresso reacionário e sem limites para a chantagem política. Ou seja, não explica ao eleitorado a importância de, com Lula, eleger bancadas de deputados e senadores comprometidos com seu governo. E dispostos a sustenta-lo. Aparentemente, as direções partidárias ignoram as agruras do primeiro governo Lula (e suas consequências) e o golpe parlamentar que depôs Dilma Rousseff! Suporão, ainda, que se trata de meros acasos, de pontos fora da curva?
A expectativa de dias difíceis é leitura possível dos tempos a caminhar, e o mínimo com que os democratas podem desejar é que dessa consciência participem o candidato Lula e o comando de sua campanha. Tanto para preparar-se para o enfrentamento das dificuldades, quanto para o necessário e indispensável debate com o povo (com toda a sociedade brasileira, para além do eleitorado), advertindo-o relativamente ao que está por vir, sejam as dificuldades da campanha eleitoral, seja a acentuação das tentativas de desrespeitar a soberania popular (para o que o bolsonarismo vem trabalhando desde o dia seguinte à posse), seja para inviabilizar o governo e, no limite, pôr em xeque o próprio mandato do futuro presidente.
A história não se repete, mas no Brasil ela é recorrente: a direita, civil-empresarial-militar, que não conseguiu impedir a posse de João Goulart em 1961, montou o golpe de 1964. A direita que não conseguiu impedir a eleição de Dilma Rousseff em 2014 impôs o golpe parlamentar em 2016, assumiu o governo com Temer e preparou a emergência da onda de extrema-direita que conheceu o poder com a eleição de Bolsonaro, que chega até aqui graças ao apoio dos engalanados e do que há de pior e mais grotesco na política e na sociedade brasileira. É essa gente a casa-grande de nossos dias, que sustenta o atual regime, e que fará frente ao futuro governo Lula. Para essa classe dominante estreita, primária, inculta e alienada, irrecuperavelmente reacionária, o ex-presidente, qualquer que seja seu discurso, será sempre aquele “sapo barbudo” difícil de deglutir, a que se referia o saudoso Leonel Brizola. Se for impossível derrotá-lo, se for impossível impedir sua posse, será possível impedi-lo de governar, mediante o cerco parlamentar. O plano já está em execução. Basta ter olhos para ver.
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A recuperação do inefável – Segundo O Globo (29/06/2022, p. 8, Política), o ex-governador Geraldo Alckmin estaria trabalhando para restabelecer o diálogo entre o vice perjuro e Lula. Como lecionava o sábio Conselheiro Acácio, “as consequências vêm depois”.
O golpe caminha – O cerco parlamentar já opera contra o eventual governo Lula, tornando obrigatória a liberação das verbas decorrentes das chamadas “emendas de relator”, que alimentam o escândalo do “orçamento secreto”. Se o futuro presidente não dispuser de força política para remover as armadilhas da direita, não conseguirá governar.
* Com a colaboração de Pedro Amaral