Roberto Amaral*
As advertências sobre os preparativos golpistas crescem na medida em que, de mãos dadas, se aprofundam a falência do governo (o desemprego e a fome disparam, e a OCDE prevê para este ano em 0,6% o crescimento do PIB brasileiro) e a rejeição popular ao capitão candidato, sugerida pelos índices de crescimento da candidatura Lula, anunciando a possibilidade de o ex-presidente eleger-se já no primeiro turno, o que não ocorre entre nós desde 2002.
A debacle atiça a alternativa in pectore dos engalanados, do sistema financeiro internacionalizado, dos especuladores e rentistas em geral, receosos da frustração da expectativa dos grandes ganhos anunciados com o programa neoliberal de privatização de empresas fundamentais para o nosso desenvolvimento, vendidas na bacia das almas, processo que já se abate sobre a Eletrobras e ameaça a Petrobras.
A ainda chamada grande imprensa, que fracassou até aqui na tentativa de construção artificial de uma terceira via na disputa pela presidência, já dá sinais de seu incômodo, revelado na campanha que move, por meio sobretudo de seus editoriais, contra a candidatura do ex-presidente. É sua forma envergonhada de fazer o jogo do capitão. Primam nessa linha Globo e Estadão; carentes de autonomia, títeres do sistema, simplesmente revelam a indisposição de seus financiadores, o grande capital nacional e internacional, um e outro sem compromisso seja com o nosso desenvolvimento, seja com o processo democrático, posto que sempre estiveram firmes na defesa do capital estrangeiro contra o interesse nacional – assim no combate à Petrobras e ao monopólio estatal, como no apoio às alternativas de força e autoritarismo. Seu compromisso com a legalidade democrática é bijuteria vendida como gema rara. Combateram o trabalhismo nacionalista do Vargas da fase democrática e foram decisivos na preparação do golpe que levou o ex-presidente ao suicídio; tentaram impedir a posse de Juscelino e combateram o quinquênio desenvolvimentista; tentaram impedir a construção de Brasília, a que devemos a incorporação do centro-oeste à vida e à economia nacionais; apoiaram a tentativa de golpe contra a posse de Jango em 1961 e cerraram fileiras no combate o mais feroz ao seu governo, participando das articulações que levaram ao golpe de 1º de abril de 1964, e sustentaram a ditadura e seus crimes até o momento em que o regime militar decidiu sair de cena. Na preparação do golpe, o Estadão funcionou como um arrecadador de fundos financiadores da conspiração (remeto o leitor às memórias do General Cordeiro de Farias); durante a ditadura, a Rede Globo assumiu o indecoroso papel de porta-voz dos militares, escondendo da opinião os crimes contra os direitos humanos e a um só tempo denunciando os adversários do regime. E todos manipulando a informação, a serviço da ditadura. A chamada operação Lava Jato, um dos momentos mais ominosos do sistema judiciário brasileiro, com seu rol de crimes essenciais ao golpe de 2016 e à eleição de Bolsonaro, não teria alcançado o sucesso conhecido se não contasse, do primeiro ao último momento, com o apoio consciente e irresponsável dos meios de comunicação de massa.
Não se conte, portanto, com essa imprensa a fundo perdido, nada obstante seu mal-estar diante da truculência do presidente. No essencial, o neoliberalismo, o privatismo, estão em paz. Seus donos, os donos aparentes e os donos reais, o sistema financeiro, têm, é certo, restrições ao tosco capitão, mas em face de Lula a distância e o desacordo são de essência: trata-se de uma questão de classe.
As fileiras, comandantes e tropa, majoritariamente, estão dispostas a sustentar o projeto bolsonarista, muito pelo que o capitão e suas hordas representam como apelo reacionário; mas o que as move , mais do que tudo, é a irracional resistência a Lula, visto como promessa de emergência política das massas. A caserna (com uma casta dirigente hoje embriagada de privilégios) é visceralmente hostil a qualquer mudança social.
O governo do capitão e do falido “Posto Ipiranga” prima pela incompetência, como se vê, mas, reconheça-se, não traiu seus compromissos com o capital estrangeiro e o grande empresariado. Essa gente nada tem a reclamar do golpe de 2016 e das eleições de 2018, e por isso mesmo não pode se sentir tranquila quando divisa a possibilidade do novo governo de Lula, que promete voltar a perseguir a distribuição de renda (é de seu discurso colocar o pobre no orçamento da União e os ricos no Imposto de Renda – como, de resto, manda a Constituição). De Lula deve-se esperar a taxação das grandes fortunas e a retomada da política externa ativa e altiva que consagrou seus dois mandatos. Mas tais expectativas, que nos enchem de estímulo e trazem boas expectativas quanto ao futuro, não podem agradar os EUA de Biden, como não agradaram ao de Barak Obama. É, pois, uma tolice pensar que os EUA resistiriam a mais um golpe de Estado no Brasil, eles que tantos outros fomentaram, aqui e mundo afora; pelo contrário, a continuidade da conhecida política externa bolsonarista soa como acalanto para Wall Street, quando o Departamento de Estado deve suas atenções para o contencioso europeu e a insegurança de seu mando na América Latina, sua área primária de preeminência – onde despontam nichos de resistência que tendem a se fortalecer com a eleição e Lula que, certamente, retomará os projetos de autonomia regional intentados em seu governo. E não é preciso dizer que Lula voltará a prestigiar os BRICS, onde o Brasil tem como sócios, além da Índia e da África do Sul, nada menos que a Rússia e a China.
O golpe, pois, não é uma certeza, mas uma probabilidade com a qual devemos contar.
O golpe ao qual me refiro não remonta às nossas quarteladas, de há muito superadas, com os vencidos conceitos clássicos da ciência política clássica. O golpe à vista, este de que falam as especulações, não lembra mais a “tomada de assalto do palácio de inverno”, nada tem a ver com putsch, o golpe de mão, a ação de surpresa; pode mesmo dispensar a movimentação de tropas. Com as fileiras aquarteladas, o Congresso pode implementar reformas antissociais e contrárias ao interesse nacional; Executivo, Legislativo e Judiciário podem desconstituir o Estado, romper o pacto político que ensejou a Constituição de 1988, destruir a ordem econômica e impedir o desenvolvimento, como agora. Podem abolir os direitos trabalhistas e previdenciários, destruir o meio ambiente, assassinar os povos originários, estimular a cizânia nacional, promover o armamentismo, congelar o desenvolvimento científico-tecnológico, condenar a cultura à inanição. Podem alimentar o que há de mais atrasado em nossa sociedade, como o racismo e a misoginia, destruir a escola pública e o sistema único de saúde – o que, aliás, está no “Projeto de nação”, sistematização de um programa de governo de extrema-direita que os militares apresentam como meta deste país até 2035.
O que vemos como ameaça no curto prazo é o aprofundamento de um sistema que se instalou em 2018, via processo eleitoral, ou seja, sem ruptura política, e que se vem mantendo até aqui, dilatando-se a cada passo e que, em face de determinadas circunstâncias, pode sobreviver a 2022, isto é, pode sobrevir à derrota de Bolsonaro e estender-se no possível governo Lula. Essa contingência já foi batizada de “ golpe de Estado continuado”, e podemos chamá-la “golpe híbrido”. Tendo em seus alicerces as forças armadas (e nelas compreendidas as corporações policiais, civis e militares e suas adjacências, como as milícias) e o poder econômico, nacional e internacional (a Faria Lima e Wall Street), esse sistema trabalha com a informação e a desinformação, mediante o que omite e o que cria; onde deveria estar a liberdade de informação como o outro lado do direito democrático de ser corretamente informado, instala-se a informação manipulada; a unilateralidade toma o lugar da pluralidade ideológica. Mesclam-se táticas de guerra política, que vão de Sun Tzu a Goebbels, com táticas de guerra convencional (como a grotesca parada dos tanques fumacentos da Marinha em Brasília, em 2021); movimentações de massa com táticas neofascistas como agressões morais e físicas, as ameaças políticas, o vandalismo, as agitações de rua e a utilização de modernas técnicas de controle das redes sociais.
São os tempos em que vivemos. Formalmente, não se pode dizer que houve um “golpe de Estado” em 2018, mas é verdade que se trata de um regime de exceção que se implantou sem o apelo clássico à força: operou-se segundo as regras vigentes, sem quebra, portanto, da ordem constitucional. Mas não deixa de ser uma fratura do pacto político.
Esse regime, resultante dessa nova forma de golpe, pode sobreviver às eleições. Para essa eventualidade, todavia, não parecem alertas a forças políticas do campo democrático, pelo menos nos primeiros ensaios de campanha eleitoral que se apresenta despolitizada, ou seja, confinando a política aos objetivos eleitorais, relegando a plano secundário, mais do que a oportunidade, a necessidade de discutir com o eleitorado, inclusive, as questões acima levantadas, para poder, estabelecendo uma nova maioria, rever o sistema político resultante do golpe de Estado detonado em 2016, operado pelo Congresso com o apoio das forças armadas e a demanda do sistema econômico-financeiro.
É preciso dizê-lo: ainda que logremos a vitória eleitoral indispensável, será muito difícil o quadriênio. Para governar, fiel ao programa de campanha, Lula dependerá tanto de maciço apoio popular quanto de alianças e composições que talvez sua experiência e sua arte política consigam concertar. O ponto de partida será sempre a vitória no primeiro turno.
* Com a colaboração de Pedro Amaral