Roberto Amaral*
“Por ora, a defesa do arbítrio e da violência como ferramenta política tem ficado restrita a bolsonaristas-ostentação. Posam de fortões e fortinhos arrojados, quando na verdade sofrem de covardia social. O perigo de esses milicianos da palavra passarem à ação coletiva após as eleições é real. Convém, portanto, apressarmos nosso encontro marcado pela História ainda clandestina.” (Dorrit Harazim, O Globo, 24/04/2022)
O país amarga um sentimento difuso, grave, de que algo peçonhento se gesta contra a República. Às claras e à socapa estariam agindo seus inimigos de sempre. Nas esquinas e nos gabinetes cruzam-se boatos, reflexões e “informações de cocheira”. O temor de um golpe de Estado domina as especulações políticas, animando a direita e intranquilizando os democratas. A dúvida, para políticos escabreados, é tão só quanto ao momento da eclosão, se antes ou depois da derrota eleitoral do lamentável capitão. Nesta hipótese, não estaríamos diante da primeira tentativa de impedir a posse de um presidente eleito, pois a história registra os episódios de novembro de 1955, quando os militares tentaram bloquear a posse de Juscelino Kubitscheck – contra cujo governo, aliás, promoveriam ainda as insurreições de Jacareacanga e Aragarças. Os mais avisados lembram que, para fechar a porta, não devemos aguardar que o desastre se apresente de corpo inteiro, pois a ameaça hoje veste novos trajes, como vimos com a deposição de Dilma Rousseff. Mais perigoso ainda é apostar na “formação democrática e legalista das forças armadas”, alardeada por Prestes nas vésperas de 1964 (e deu no que sabemos). De outra parte, vivemos, desde 2018, uma experiência que, com todas as correções históricas, nos aproxima dos assaltos do fascismo mussolinista. Como ninguém ignora, não têm sido poucos os chamamentos do capitão-presidente ao conflito institucional. Devemos ter sempre presente a frustrada tentativa de golpe do 7 de setembro do ano passado. O recente indulto ao deputado e meliante Daniel Silveira, sobre ser uma agressão ao STF, é mais uma mobilização – bem-sucedida – de sua base para o desejado confronto. A sociedade não pode esquecer seu discurso em frente ao quartel-general do exército em Brasília, nos idos de 2020, incitando tropa e simpatizantes à insurreição, nem o chapliniano desfile dos tanques na praça dos três poderes, nem suas chamadas “motociatas”, bem ao estilo do poderoso Duce fuzilado por partisans no vilarejo de Mezzegra, no norte da Itália, em 1945.
A permanente cantilena golpista é capítulo harmônico em obra bem articulada que visa tanto ao projeto eleitoral quanto ao fortalecimento organizativo-guerreiro do movimento de extrema-direita que Bolsonaro no momento lidera, e que deverá sobreviver depois de seu necessário defenestramento.
Não devem ser vistas como obras do acaso, aleatórias, seu permanente desprezo pelas regras democráticas, o chamamento à intervenção militar, a busca de conflito, ora com a imprensa, ora com o STF, ora com o TSE, a tentativa de desacreditar a urna eletrônica, e, assim, precatadamente, pôr em questão as eleições. Por meio da sequência de confrontos, o capitão dita a pauta política do país, que permanece inquieto, antevendo uma campanha eleitoral suja e macabra, à mercê da corrupção deslavada (uma forma de golpear a soberania popular), da ação das milícias e o comprometimento partidário das forças armadas. Este é evidenciado pelos seguidos pronunciamentos de comandantes militares, como a ridícula nota mediante a qual o ministro da defesa agride um ministro do STF que ousou revelar este segredo de polichinelo: as forças armadas estão sendo orientadas a atacar e a desacreditar o processo eleitoral.
O cenário pobre abre espaço para atores pobres, como o ocioso general vice-presidente da república e figuras ainda menores como o até há pouco anônimo general presidente do STM que, semana passada, como sói acontecer com os néscios, perdeu excelente oportunidade de ficar calado.
Bolsonaro tanto mobiliza os engalanados na sua pertinaz tentativa de desmoralizar o processo eleitoral, base de nossa democracia, quanto, associado ao atual presidente da Câmara dos Deputados, mobiliza R$ 16,5 bilhões, recursos do imoral e inconstitucional “orçamento secreto”, para que seus sequazes e apaniguados gastem em suas campanhas, eivando de vício a manifestação eleitoral. O capitão pode, até, com essa fraude (levando às últimas consequências o “abuso do poder econômico” nas eleições, desta feita às custas do erário), não lograr o objetivo de assegurar sua reeleição (e com ela a impunidade sua e de seus sequazes), mas estará assegurando uma bancada talvez majoritária para o Centrão, o que será uma ameaça permanente ao possível governo do ex-presidente Lula.
A crise de nossa história presente precisa ser vista e considerada para além de suas aparências de hoje, pois trata-se do segundo tempo da irresponsável conciliação que nossas elites pactuaram com a ditadura. A conciliação é o caráter permanente de nossa história, levada a cabo pelas classes dominantes contra os interesses do país e de seu povo, no esforço sempre logrado de bom êxito que visa a impedir a ascensão do progresso social.
Em lugar do necessário sepultamento da ditadura miliar, com suas consequências óbvias, a traficância da casa-grande ensejou a projeção da preeminência dos militares na ordem democrática nascida da implosão do colégio eleitoral inventado pela ditadura para eleger seu delfim – que terminou implodido, elegendo Tancredo Neves para dar posse a José Sarney. A ditadura, por força das negociações, não foi passada a limpo, seus crimes não foram apurados, muito menos punidos os oficiais das três forças acusados das mais torpes violações de direitos humanos, como prisões arbitrárias, sequestros, tortura, homicídios, estupros, ocultação e desaparecimento de cadáveres, atentados e organização de quadrilhas armadas. Quando deveriam estar sendo varridos do poder que haviam usurpado em 1964, e assim chamados a responder coletiva e individualmente por seus crimes, os militares, na verdade só aparentemente derrotados, terminaram por ditar as condições mediante as quais abandonavam o poder esgotado, para afinal decidir quem tomaria posse na ausência de Tancredo Neves: nada menos que José Sarney, o ex-presidente e líder do partido da ditadura, por decisão do exército, ditada pelo general escolhido por Tancredo para o ministério da guerra.
Assim o ex-presidente narra sua nomeação no livro Vinte anos de democracia (Brasília, 2005, p. 32): “Às 3 horas o general Leônidas Pires Gonçalves me telefonou dizendo: às 10 horas o senhor vai assumir a Presidência.” Antes, nos idos de agosto do ano do colégio eleitoral, os líderes oposicionistas se haviam conciliado com os governistas dissidentes do PDS (o partido da ditadura), a costela do PFL. Da harmonização de interesses resultou a “Aliança Democrática”, cujo manifesto propugnava a “conciliação, (…) o entendimento sem ressentimentos de todos os brasileiros e o congraçamento nacional.” O texto, que teve o jornalista Mauro Santayanna como seu principal redator, é assinado por Ulisses Guimarães, Tancredo Neves, Aureliano Chaves e Marco Maciel. Enterrava-se a expectativa de ruptura e construção de uma nova república. Era a “transição com conciliação”. As consequências vinham a caminho: ao invés da prometida “constituinte livre e soberana”, foi imposto ao país um congresso sem poder originário, contingenciado por limites de toda ordem (como, por exemplo, rever a lei da anistia da ditadura), costurando um texto supervisionado pelas forças decaídas, que sobreviviam no governo Sarney, ostensivamente curatelado pelos fardados. A anistia haveria de permanecer restrita e os militares teriam a garantia da impunidade, que ainda hoje ostentam com arrogância e delinquência moral. O general Pires Gonçalves, seria, com Fernando Henrique Cardoso, um dos redatores do art.142 da CF, contrabando espúrio mediante o qual a caserna cuida de constitucionalizar o sonho de anacrônico poder moderador. Explica-se Sarney (cit.): “Naquele momento elas [as forças armadas] ainda eram as fiadoras do processo democrático”. Vencia o projeto Golbery-Geisel da “abertura” consentida: lenta e gradual.
Nada a estranhar, pois, o papel antidemocrático e antinacional que as forças voltaram a exercer, a partir de 2016, mais de 30 anos passados do anúncio do fim da ditadura imposta pela violência do golpe de 1º de abril de 1964.
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A direita caminha com bota de sete léguas – A disputa eleitoral na França, que durante muitos anos foi presidida pelos socialistas (o partido de François Miterrand este ano praticamente fechou para balanço, obtendo sua candidata no primeiro turno apenas 1,75% dos votos), consagra, a cada pleito, o avanço da extrema-direita, o que se mede pelo desempenho do clã Le Pen: em 2002 obteve 17,8% dos votos ; em 2017 saltou para 33,9% e finalmente, nesta final de 2022, chegou a 41,5%. À esquerda, exemplarmente dividida, restou comemorar a reeleição de Emmanuel Macron, o presidente de direita, em quem foi obrigada a votar. Se tivesse havido unidade, Jean-Luc Mélenchon, candidato da França Insubmissa, teria ido para o segundo turno. Senão, vejamos os números do primeiro turno: Mélenchon, 21,95%; Yannick Jadot (ecologistas), 4,63%); Fabien Roussel (comunistas), 2,28%); Anne Hidalgo (socialistas), 1,75%; Philippe Poitou (esquerda radical), 0,77% e Nathalie Artaud (Lutte Ouvrière) 0,56%. O que podemos chamar na França de hoje de “campo da esquerda” somou, portanto, no primeiro turno, 31,87% dos votos, contra 23,3% de Marienne Le Pen, que foi para o segundo turno contra Macron. A disputa ficou, como se sabe, entre direita e extrema-direita.
As expectativas agora se voltam para as eleições legislativas. A coalizão parlamentar majoritária fará o primeiro-ministro.
A lição fica para quem a quiser colher.
* Com a colaboração de Pedro Amaral