Roberto Amaral*

A política é o encontro do desejável com o possível e o necessário (ou contingente). Nem sempre esses três elementos se dão as mãos. A boa ciência está em optar pelo melhor possível quando as condições são desfavoráveis.   Ou seja, fazer do limão uma limonada, sem, todavia, renunciar ao estratégico (o desejo), mas lutando sempre pela alteração da contingência.

É o exemplo que nos oferecem a luta e vida de Nelson Mandela, contrapostas à entrega voluntarista de Che Guevara. Nesta quadra brasileira, nenhum socialista pode, fora do delírio,  antever a possibilidade da revolução social, nosso leitmotiv.  Diante de nós, a realidade expõe os limites de uma peleja limitada à defesa da ordem democrático-burguesa que herdamos dos constituintes de 1988. Nem por isso podemos renunciar à politica, muito menos à luta estratégica, sonho ou utopia.

Caso avancemos eleitoralmente em 2022 – se para tanto ajudar-nos o engenho e arte ausente em outras oportunidades, lograremos também afastar da ordem do dia o projeto protofascista que nos ameaça desde 2016, uma ameaça tanto presente quanto grave, quando não mais nos é dado ignorar sua identificação com ponderáveis camadas de nosso povo, para além da casa-grande. A emergência dessa peçonha ao poder, fato  por si grave, cresce em riscos para a democracia e o progresso social, na medida em que o neofascismo continua crescendo no mundo, nomeadamente na Europa (França e Itália, Hungria, Polônia e demais países do Leste europeu,) e nos EUA  – agora em plena campanha belicista, que nos levará a uma guerra cujas proporções não podem ser definidas, mas que, desafortunadamente, não poupará mesmo a periferia do capitalismo, aparentemente situada fora do teatro das conflagrações.

A ascensão do pensamento e da ação de extrema-direita no Brasil não deve ser vista como uma excepcionalidade, posto que simplesmente reproduz a própria história de nossa formação social, fundada no escravismo, no autoritarismo e no império da casa-grande, o poder dos 1% de brancos ricos que nos governam desde a colônia, com uma fértil variação de nomes e regimes, que, todavia, jamais altera o mando e a sotoposição das grandes massas.

Na curta vida republicana já conhecemos um sem número de golpes de Estado levados a cabo pela direita contra os interesses dos trabalhadores, e duas longevas ditaduras, o Estado Novo de Vargas (1937-1945), e o recente mandarinato militar (1964-1985), cujas piores heranças são cultuadas pelo capitão governante e seu séquito de engalanados. A questão urgente e ingente que se coloca pela realidade, retardando a frente de esquerda e o projeto socialista, é, pois, ainda, a frente ampla necessária eleitoralmente para derrotar a aliança civil-militar que ameaça a democracia, os direitos dos trabalhadores e a soberania nacional. A consolidação democrática é conditio sine qua non da defesa dos interesses dos trabalhadores

É nessa contingência que nos encontramos presentemente, e é nela que somos chamados a atuar como uma das forças em confronto. Cabe-nos, conscientes sempre de que as eleições (nada obstante importantes e imprescindíveis) são apenas um dos muitos espaços da batalha política,  lutarmos, alargando as brechas possíveis, em defesa dos interesses dos trabalhadores e do país. Ou seja, cabe-nos fazer da campanha eleitoral um momento de educação das massas e de proselitismo socialista, à esquerda da campanha do PT.  Não é muito, nem é pouco. É o possível, hoje. A alternativa é o niilismo ou a alienação paranoica dos que confundem o sonho com a realidade. Onirismo que na política é sinônimo de fracasso, de que certamente se lamentam hoje as forças progressistas francesas, assistindo, pela terceira vez seguida, o pleito presidencial cingir-se à disputa entre a direita e a extrema-direita, quando a unidade das forças socialistas e de esquerda teria assegurado a presença de um socialista no debate e na disputa, Jean-Luc Mélenchon, que logrou avançar eleitoralmente sem fazer concessões ideológicas.

Aqui, fracassadas as inumeráveis tentativas de construir uma candidatura de “centro” (subsumido pelo lulismo), o pleito marchará inevitavelmente para a polarização  centro-esquerda x extrema-direita, democracia x ditadura, o que predefine o papel dos socialistas que é, na campanha de Lula, fazer o discurso da esquerda,  discurso que, condicionado pelas circunstâncias eleitorais,  o antigo líder sindical não pode mais fazer.

Desvanecido o sonho, o Lula de 2022,  e sua campanha, é  o possível que se tornou necessário; nosso papel, das esquerdas, é, pois, fazer dessa probabilidade uma certeza: o eventual terceiro governo do ex-presidente, porém, nada obstante as limitações impostas pelo processo social,  será uma obra em construção, de que deveremos participar, pois refletirá o nível de organização  do movimento popular, que será, de igual modo, a garantia  da sustentação do governo, aquela que faltou ao segundo governo Dilma, possibilitando o golpe de Estado  e a ascensão da direita ao poder.

Em outras palavras, se é certo que o possível futuro governo,  uma coalizão que vai da direita à esquerda, não poderá corresponder ao projeto dos socialistas, cumprirá a estes lutar pela vitória do projeto eleitoral, assegurar a defesa do governo para  nele influir visando à maior abertura político-social, de particular na proteção dos direitos dos trabalhadores, na luta contra a desigualdade social e a defesa da soberania nacional. Estas três e cruciais tarefas, às quais se soma o combate à direita civil e militar, golpista, e o desmantelamento das milícias, dependerão de uma questão primária na política, a saber, a correlação de forças na composição do poder. Nossa capacidade de influência (disputada legitimamente com outras forças) será medida pela nossa capacidade de organização das massas, exercício ao qual os socialistas, bem como os trabalhistas e a esquerda de um modo geral, de há muito abdicaram.

As conhecidas manobras de Lula repetem a estratégia de 2002: preparar a governança ainda na campanha eleitoral, inaugurada com a escolha de um empresário para compor a chapa e com a “Carta aos brasileiros”, que agora se diz dispensável. Àquela carta-compromisso, com a qual o candidato procurava aplainar os temores da casa-grande, seguiram-se as nomeações de um funcionário do Banco de Boston para a presidência do Banco Central, de um sócio da Sadia para o ministério da indústria e comércio, e de um graduado líder do agronegócio para o ministério da agricultura. A nenhum de nós agradaram essas iniciativas, mas como dizer agora que constituíram opção equivocada, se mesmo assim seu governo não foi uma estância em Passárgada?  Pois sabemos que em 2005 Lula teve ameaçada a estabilidade do governo,  salva pela lealdade de José Alencar, um brasileiro de primeira água,  a que se soma o   erro de cálculo do PSDB, que, convencido do desgaste irremediável do presidente, apostou em seu fim por si mesmo: “Vamos deixá-lo sangrar”, sentenciaram os cardeais do tucanato. Ao invés de deixar-se imolar, Lula foi ao encontro do seu eleitorado e recolheu o apoio que tornou vazias as articulações golpistas. Para ganhar as eleições e conservar a governança, será fundamental a organização dos núcleos populares, politizados, e assim em condições de ser mobilizados.

Lula sabe que será difícil governar, agora mais que antes. O quadro internacional, de guerra e polaridade política e militar, já aponta para grave crise econômica que não nos poupará, nem aos nossos vizinhos nem aos nossos principais parceiros comerciais e políticos;  e  o fantasma que assombra o  mundo é uma recessão associada a uma onda inflacionária, que nos EUA já alcança índices só conhecidos em 1981.  De outra parte, o novo governo encontrará a economia nacional depauperada, em acelerado processo de desindustrialização; alto índice de desemprego; desorganização geral do serviço público; desmonte do Estado; venda de estatais estratégicas na bacia das almas. Forças militares, partidarizadas, facciosas, armando-se com Viagra e próteses penianas, corrupção à solta, uma imprensa uníssona e adversa, uma classe dominante ardilosa e um Congresso do qual não se deve esperar colaboração. Porque,   desgraçadamente,  a próxima legislatura dificilmente diferirá da atual, em sua poltronice e absoluta ausência de espírito público, pois, para esse objetivo, o planalto  abriu as burras do Estado distribuindo milhões de reais (os que faltam para a educação, a ciência e tecnologia, ao SUS, e ao saneamento básica) para o financiamento das eleições de deputados e senadores a serviço do pior da política, tão bem representado pelo atual presidente da Câmara dos Deputados.

Este é outro desafio: como mudar a feição do atual parlamento brasileiro, se as forças populares não se dedicarem ao trabalho permanente de educação das massas?

* Com a colaboração de Pedro Amaral