Para a revista Cosmos&Contexto
*Publicado 17, Aug, 2018,00:08 (Jornal do Brasil)
Imaginando uma suposta tábua de valores específicos, isto é, próprios da ciência, convido-os a discutir a responsabilidade moral e ética do cientista em face das consequências da aplicação de suas descobertas, de seus inventos, ou seja, do saber por ele gerado. O cientista de que trato não é um extraterrestre, mas um ser político integrado em determinada sociedade, um produto histórico com passado, presente e inquietações quanto ao futuro.
O pano de fundo é este: somos passageiros da mesma nave numa grande aventura pelo desconhecido. Convivem conosco, no mesmo experimento, o mundo da pesquisa científica, acadêmica ou não, pura ou aplicada, com seus valores próprios, e o mundo da ordem política, também com seus supostos valores
próprios, campo no qual a teoria se transforma em prática, a ciência em tecnologia, em objeto concreto,
saltando dos laboratórios e das pranchetas para cotidiano da humanidade, alterando o mundo.
O ponto de partida discute a existência de uma ética própria do cientista, convivendo e dialogando com outra ética, distinta, a de quem financia a pesquisa, seja o Estado, a serviço da paz ou da guerra, democrático ou autocrático; seja a indústria, voltada para o lucro e a acumulação capitalista. Essas supostas éticas próprias a cada segmento de interesse não podem se auto ignorar.
O cientista, como todo intelectual, é um ser político, certamente
ainda mais responsável (perante a humanidade) que o comum dos homens ou o comum dos políticos, em face de sua formação privilegiada, geralmente custeada pela sociedade, e pelos impactos provocados por seu trabalho. Então, pergunta-se: a serviço de qual fim está a comunidade científica brasileira, ensurdecedoramente silente quando vivemos aquela que é,
por certo, a mais grave crise da Historia republicana, pois compreende o colapso do Estado, a desintegração das instituições, a destruição de nosso patrimônio, a recessão e o desemprego e a renúncia ao desenvolvimento?
Nada temos a dizer quando se depara diante de nós o desmantelamento da educação, da ciência e da tecnologia? Quando nossas empresas estratégicas são vendidas na bacia das almas? Quando está em jogo o futuro da universidade pública, ou seja, o futuro da pesquisa científica e a democratização do ensino e do saber? O protesto e a rebeldia, tanto quanto a acomodação e o silêncio, definindo condutas, também definem o papel do indivíduo na História, ou seja, o papel que o homem – o homem do povo, o cientista, o político, o filósofo –escolheu desempenhar. A dedicação dos cientistas construtores da bomba atômica americana está eticamente apartada da decisão e responsabilidade do presidente Truman, quase finda a guerra, de jogá-la contra as populações de Nagasaki e Hiroshima?
Nesse caso, admitindo-se uma axiologia específica para a ciência, a qual princípio ético estaria subsumido o pesquisador que trabalha, conscientemente, na fissão nuclear voltada para a bomba atômica, ou na pesquisa de outros artefatos militares de destruição massiva? Poderiam ter ilusões os que ontem trabalhavam em Los Alamos e os que hoje trabalham na guerra química e bacteriológica ou cibernética? Como valorar a ciência (e, na sequência a indústria que alimenta) voltada para a guerra e o extermínio massivo? Nos países do chamado primeiro mundo, 80% dos fundos para a pesquisa estão, hoje, diretamente relacionados a necessidades da indústria da defesa, que,
na verdade, é a indústria da guerra e da agressão.
Robert Oppenheimer, um dos inventores da bomba atômica, que, como von Braun, trabalhou nos dois lados da fronteira, tornou-se símbolo da alienação em que, como mecanismo de defesa, mergulham os cientistas quando os interesses de um Estado colidem frontalmente com valores humanistas. Perguntado como teria sido possível contribuir para a construção das primeiras bombas nucleares, Oppenheimer, conhecendo como conhecia a destruição que necessariamente causariam, teria respondido: “Preso às quatro paredes do meu laboratório, eu estava de
tal forma polarizado com a busca triunfante dos resultados, que em nenhum momento dei-me conta de suas consequências”. Evidentemente, nenhum de nós aceita, hoje, essa explicação.
Um bom número de físicos respeitáveis, entre os quais o nobel Steven Weinberg, insiste em dizer que a ciência e, particularmente a física, para nada necessitam da filosofia, limitando seu trabalho ao manejo adequado do método e ao domínio pleno das matemáticas que lhe servem
de linguagem. Essa posição não resiste a um exame dos fatos. É, por exemplo, o que se deduz do desenvolvimento da história recente da ciência, bastando lembrar os desdobramentos da teoria quântica e da cosmologia.
O universo não nem sua aparência nem o que realmente é, em si mesmo, mas como a ciência nos leva a conhecê-lo, e esse conhecimento varia a cada dia, de sorte que o universo de hoje
é tão distinto do universo de nossos antepassados quanto distante do universo que resultará do conhecimento futuro. Como sugere Mario Novello, o universo está em permanente invenção, ensinando-nos que todas as certezas são provisórias.
Os financiadores da ciência que vasculha o espaço sideral e constrói “escudos” de mísseis estratégicos não cogitam da miséria da África se esvaindo em diásporas, porque o desenvolvimento que suscitam se destina a manter o domínio sobre os povos! Os fomentadores da ciência, que se apetrecha para a exploração de embriões e clones humanos, não voltam seus recursos para enfrentar a fome no mundo. Graças às novas tecnologias, no entanto, e eis outro paradoxo, é cada vez mais restrito o livre acesso à informação, e a disseminação do conhecimento cede lugar à propriedade intelectual. Há justificativa para o fato de nossa formação científica ignorar a disciplina de Introdução à Filosofia? Ignorar o estudo das humanidades? Essas questões são científicas, e assim se bastam, se resolvem, ou cobram uma ética reguladora da conduta científica?
Que se deve entender, relativamente à ciência, por princípios éticos? Sua aplicação é democrática e por democrática podemos entender universal? O cientista, antes de tudo um cidadão, deve comprometer-se com o combate à fome e a todas as formas de exclusão, a começar pela exclusão do conhecimento. Cumpre-lhe, qualquer que seja sua área de atuação, defender o direito à saúde, à educação, à moradia, à terra. Cumpre-lhe estar à testa do combate à intolerância, à discriminação e à guerra.
Quais as consequências impostas à nossa conduta pela consciência de que nossa formação científica e nossas pesquisas são financiadas por uma população que não teve e cujos filhos não terão acesso à universidade e ao conhecimento, ao conforto e ao bem-estar, muitos mesmo sem acesso à vida digna, à cidadania e ao direito de alimentar-se? O cientista intervém na realidade tanto quanto o político e o intelectual marxiano das teses sobre Feuerbach: seu destino deve ser, igualmente, transformar o
mundo. Cabe-lhe decidir por qual mundo lutar, porque não lutar é
também uma maneira de optar, de tomar partido, neste caso pelo atraso.
Mas termino deixando-vos uma pergunta: como, e a partir de quais parâmetros, orientar o desenvolvimento (portanto a ciência) numa determinada direção, na busca de determinado fim, necessariamente ético, isto é, voltado para o bem-estar social, coletivo, que diga respeito ao universo de todos os brasileiros?