Para Luiza Erundina de Sousa
Escritor, ensaísta, ex-ministro de Ciência e Tecnologia (2003/2004)
Quase introdução – O objeto desta reflexão é responder ao desafio de Darcy Ribeiro: “Por que o Brasil ainda não deu certo?”[1] Penso que o passado explica o presente, daí a aventura pelas reflexões dos que se dedicaram aos estudos de nossa formação como território, entreposto, pouso de navegantes, aldeamento, constelação de feitorias, colônia e país, Estado antes de povo-nação, império sem romper com as amarras coloniais, república que reproduz as duas principais marcas da monarquia: o governo da terra e a ausência do povo-sujeito.
O Projeto Nacional – O colonizador ibérico veio para este pedaço do novo mundo mais para garantir e proteger a posse da terra. Sua opção foi implantar burocracia e não civilização, antepondo a arquitetura do Estado à organização da sociedade, o país antes da nação, a unidade política e econômica antes da unidade cultural.
Estado, governo e, por fim, sociedade, cujos interesses são sotopostos pelos interesses de uma minoria assim constituída: os latifundiários, senhores de baraço e cutelo da terra e da vida, os comerciantes, exportadores de índios escravizados[2] e de tudo o que a terra dava, os importadores de escravos e dos bens necessários para o consumo requintado da classe dominante, uns e outros representantes de companhias inglesas, os contrabandistas e o patriciado que crescia no vezo português pela burocracia: os exatores do reino, os militares encarregados da defesa do território e, já, da repressão. Por fim, o clero católico, cuidando das almas e dos bens terrenos, batizando e casando, ensinando latim aos filhos dos grandes fazendeiros e o dever da obediência aos índios, rezando missa nas capelas das fazendas e engenhos e influindo na política.
O que poderia ser povo era uma sub-humanidade oprimida, despida de quaisquer direitos; bens semoventes, um proletariado externo transplantado para uma feitoria voltada para as demandas do mercado externo de bens primários, sob o guante de uma elite agrário-mercantil exógena e forânea, alienada dos interesses dos não-proprietários, sem passado e sem expectativa de futuro, sem consciência de povo. Nessa elite vamos encontrar a gênese da burguesia brasileira, que a reflete com a fidelidade do espelho.
Só população, não povo, massa-gente reduzida a força de trabalho não remunerada, gastável e substituível[3]: nações de índios e africanos escravizados, brancos pobres e sub-escravizados, explorados no servilismo, aventureiros europeus e asiáticos dispersos na vastidão territorial ainda não conhecida. E uma minoria de latifundiários e comerciantes, portugueses e brasileiros.
A dificuldade que se impõe, de início, nesse cenário, é a da conceituação de “Projeto Nacional”, assim como o entendemos. Comecemos pela abordagem mais fácil, afirmando o que não é Projeto Nacional: não é programa de governo, nem obra de uma elite, ou de sua classe-dominante. Nem é empresa de ilustrados, nem de fardados. Não se conhece seu texto, porque é obra imaterial. Não é Projeto Nacional o chamado “projeto Vargas” (o autoritarismo esclarecido dos anos 1930-1945), muito menos com ele se confunde o despotismo da modernização conservadora dos militares depois de 1964. Numa tentativa de aproximação, Projeto Nacional é o ideário, ou sonho de futuro, que uma nação formula para si mesma; é objetivo fundante e perdurante, porque constitui o ser no presente, e declara o que pretende do futuro. É o código não escrito de uma nação.
Mas, o que seria uma nação? O que identifica a nação brasileira ou faz com que a gente que habita este país se identifique como um povo-nação, para além do simples fato de morar no mesmo território, falar a mesma língua ou subordinar-se à mesma ordem política? Reconhecer-se na mesma origem? Identificar-se com a mesma história? Ou é tudo isso e ainda ter aspirações comuns, como a mesma visão de sociedade e o mesmo projeto de futuro? Ou é a crença de pertencimento a código comum de valores e vontades?
É consensual dizer-se que o Brasil nasce nos embates que, no Nordeste, uniram índios, negros escravizados, mamelucos e caboclos, portugueses e brasileiros na resistência à presença holandesa. Então, o imã para a comunhão de povos que se antagonizavam era a defesa do território, com o qual se identificavam naquele momento, embora não pertencesse a todos. Passada a refrega, dessa e de outras guerras como as que se deram no Sul, a província retornava ao statu quo ante, reavivadas as contradições impostas pelo sistema que dividia a gente entre uns poucos senhores e uma multidão de servos. É difícil de crer num concerto entre homens livres e escravos, entre proprietários e servos da terra. A colônia, explorada pela metrópole, abrigava uma burguesia mercantil que por seu turno explorava o trabalho compulsório de escravos africanos, de índios escravizados e trabalhadores brancos servilizados, essa a mão de obra que chega ao final do Império. Na República de “homens livres” seus sucessores serão os trabalhadores rurais, os camponeses sem terra e sem teto, os “boias-frias”, de existência sub-humana, e proibidos de se organizar.
Na colônia e no império, o povo-nação, o brasileiro que não conta politicamente, o brasileiro produtor, é o que Darcy Ribeiro chamará de “implante ultramarino da expansão europeia”. O país, escreve o autor de O povo brasileiro, “não existe para si mesmo, mas para gerar lucros exportáveis pelo exercício da função de provedor colonial de bens para o mercado mundial, através do desgaste da população que recruta no país, ou importa”. O povo-nação surge da concentração da força de trabalho escrava, recrutada “através de processos tão violentos de ordenação e repressão que constituíram, de fato, um continuado genocídio e um etnocídio implacável”[4], contemporâneo no massacre sem termo de populações indígenas e na condenação dos povos afrodescendentes à pobreza e ao apartheid social.
O “Projeto Nacional”, portanto, não é programa de uma determinada elite, ou de um partido, de determinada dinastia, de determinada ditadura; não tem data de proclamação, não tem começo nem fim, embora tenha finalidade; mais que fenômeno político, é processo psicossocial-cultural, histórico. A nação anda, cria ou descobre uma identidade e passa a vive-la; essa identidade é seu amálgama. A nação se forma e se aglutina em função dessa identidade que, ao mesmo tempo, é produto de sua história[5].
Linhas gerais da formação do Brasil – Surgimos para o mundo, já com escritura de posse e certidão de batismo, como território aberto, remanso dos navegadores de longo curso, visitado por piratas e explorado por esquadras das grandes nações de então. Como as feitorias portuguesas aqui na América e na África, como na Europa, nascemos como espaço de vassalagem. Não havia propósito de colonização, empresa a que não podia ousar o Portugal daquela altura. O sonho – quase utopia –, era conservar a posse da terra, motivo de disputas antes mesmo da “descoberta”. Sem povo e muito menos nação, engatinhávamos como espaço de exploração predatória. Nascemos como território aberto, constelação de feitorias de uma colônia empobrecida, pois Portugal transitava do domínio espanhol para o inglês.
O que era a presença portuguesa no solo americano? Economia extrativista e predatória, voltada à coleta, limitada a lavoura à produção de subsistência até o início do ciclo da cana de açúcar, fundada no escravismo negro (chegamos a importar 3 milhões de africanos) e no genocídio de índios silvícolas desgarrados e campineiros resistentes à escravidão e à perda de suas terras. Economia voltada para fora, não guardava relação consigo mesma, com o “país” que nascia antes de ter povo.
Começamos exportando pau-brasil para a Europa a fim de se transformar em tinta. Depois, passamos para a lavoura da cana, para exportar açúcar. Ingressamos na mineração. Para com seu produto construir fábricas? Hospitais? Não! Para enviar ao exterior, essencialmente Inglaterra e França via Lisboa, o entreposto que nos cobrava pesados encargos. Nossas exportações financiaram o mercantilismo inglês e construíram igrejas em Portugal. A vida que contava politicamente e onde o dinheiro circulava era a vida do litoral, a praça dos comerciantes que exportavam matérias-primas in natura (madeira, peles, açúcar e, depois, café e algodão em rama) e importavam tudo (tecidos, calçados, manteiga e queijo da Holanda, seda chinesa e, até, água mineral); era um comércio dominado por traficantes de negros e contrabandistas de toda ordem associados ao poder da terra, controlada por uma minoria de brancos, brasileiros e portugueses cujos corações e mentes estavam no velho mundo. Nos portos, a elite alienada se quedava à espera dos paquetes que traziam as notícias de fora e as mercadorias que alimentavam um consumismo faustoso e iníquo.
Constituiu o mercado interno sempre um objetivo secundário, como secundária, ou nenhuma, era a vida política. Não havia intermediação. Lindley, citado por Capistrano de Abreu[6], observava que “vida social não existia porque não havia sociedade; questões públicas tampouco interessavam e mesmo não se conheciam: quanto muito sabiam se há paz ou guerra”.
Nem a formação de mão de obra se fazia necessária, pois a coleta do café ou o corte da cana ou a extração da pele dos animais ou a derrubada de florestas não requeriam especialização. Até o vernáculo não se fazia mister cultivar; bastava o francês como língua dos salões ou o inglês para a correspondência comercial, servindo o latim dos padres como língua sagrada, mediante a qual o senhor da terra e dos negócios falava com Deus. Dentro da casa-grande, via-se a língua portuguesa relegada a tarefas menores, misturada desde a roça aos falares africanos e desde a cozinha ao tupi, então majoritário, das índias escravizadas[7]. O português só se fez idioma nacional no século XIX, com a chegada da família real com sua corte e os burocratas.
A organização do Estado brasileiro teve precedência sobre a sociedade e muito resulta do transplante apressado de índole e necessidade passageiras, um acidente histórico (a aproximação das tropas de Junot) que impedira a permanência da corte em Lisboa.
A colônia, voltada para o interesse reinol, foi promovida a Estado independente – assinalando a emergência precoce de um sistema político que se antecipava à formação nacional e sobre essa experiência construímos, obra de meia dúzia de ilustrados, uma monarquia que intentava importar o modelo inglês de governo, embora nascesse já sob uma ditadura de feição militar, como será o regime inaugurado pela Independência: uma transação toma o lugar da revolução, acomodando o liberalismo de índole jacobina e o absolutismo, deixando com este a função de organizar o país, de cima para baixo, como será sua história toda[8], de quebra, afastando os espectros republicanos e autonomistas e antioligarcas que habitavam os pesadelos de portugueses e brasileiros senhores da terra e do comércio, assustados com o que ocorria na América hispânica.
Surge o Estado nacional dependente – O Estado nacional inaugura o que Darcy Ribeiro identificará como uma nova forma de organização socioeconômica “fundada num tipo renovado de escravismo e numa servidão continuada ao mercado mundial”[9], que pervade todo o Império e chega à República como um anacronismo. O trânsito da estrutura colonial para a estrutura nacional fez-se sem rompimento com os vínculos da dependência, conservando-se o mando do latifúndio e a preeminência dos interesses portugueses e ingleses.
A monarquia absolutista foi o preço da independência gritada pelo príncipe português, que seria nosso primeiro imperador, instaurando a primeira ditadura. A nação não fala em 1822 nem em 1823, castrada pelo príncipe com a dissolução da Constituinte e a outorga da Constituição de 1824, e recastrada no golpe da Abdicação de 1831. O conceito de soberania popular não constava do ideário dos fundadores do império.
Uma economia de costas para o país – Fora do monopólio da terra e da produção voltada à exportação, sobrevivia a economia de subsistência, quando se dá o início do processo de interiorização do povoamento (século XVI)[10] – que não cessa e chega aos nossos dias –, construindo os sertões com a lavoura e o pastoreio. São os sertanejos, os caboclos, os crioulos, os caipiras, os gaúchos das campinas aos quais vão se juntar os imigrantes, europeus, árabes e japoneses principalmente. Surgem os povoamentos que, após a expansão, vão assegurar a integridade territorial, mas não formam concorrentes ao poder dominante, econômico e político, concentrado na Corte e nas sedes das províncias, Minas, Bahia e Rio de Janeiro. Na Colônia e no Império, e de certa forma por toda a primeira República, as instâncias de poder são ocupadas por representantes da propriedade da terra.
A expansão territorial, a interiorização colonial e a difusão do português como língua geral são obra de mamelucos, caboclos, negros e índios escravizados completada pela ação genocida de bandeirantes saídos de São Paulo, mas também da Bahia, de Pernambuco, do Maranhão, do Pará e do Amazonas, rumando na direção do Oeste. O atrativo das bandeiras não era a povoação ou a consciência do avanço territorial, mas a caça sem limites ao índio, destinado ao eito e à exportação. A conquista territorial e os núcleos populacionais seriam consequências fora de propósito. Fomos por muito tempo um arquipélago de pequenos aldeamentos, isolados, estanques, espalhados na imensidão do país, sem comércio entre si, uma gente que não se conhecia e não podia ter noção de pertencimento.
Começava a civilização do gado, demandada pelas exportações de couro cru. Surgem as demais lavouras, como o tabaco, o algodão e a pimenta da terra, o cacau e o café, reclamando mais braços escravos. A descoberta das minas atrai novos contingentes de caboclos, mamelucos e seus escravos índios e negros, incorporando ao processo contínuo de conquista territorial as áreas de Mato Grosso e Minas Gerais. A produção aurífera, como tudo na colônia, se destina ao mercado externo. Um caldeirão de gentes, uma miríade de povos tribais e uma pluralidade de línguas e dialetos, e brancos na sua maioria portugueses, em cinco séculos construiria o brasileiro que somos, candidato a ser povo com destino próprio, muito mais que uma população ocupando determinado território[11].
No que implica uma economia voltada para fora? O comerciante, o latifundiário, o senhor de engenho no Nordeste e os traficantes de escravos e mercadorias, os grandes estancieiros do Sul não careciam de país rico para desenvolverem seus negócios e nem de mercado interno para o consumo de seus produtos. Qual a classe dominante produzida por essa economia? Meia dúzia de latifundiários, uns poucos comerciantes exportadores/importadores, uma sociedade sem povo, dependente do mercado internacional que ditava o que comprar, como comprar e a que preço comprar. Esse é o caráter da casa-grande que chega aos nossos dias descomprometida com o destino do país, sem comunhão nacional a refletir. Sem identidade, não havia e não há razão para pensar um projeto nacional. Ainda hoje, o país se move para apenas manter o enriquecimento de uma minoria a serviço de interesses exógenos.
Na colônia e no império era o mercado externo quem decidia o que deveríamos importar e o que deveríamos ou poderíamos produzir. Nos países de capitalismo dependente, como o Brasil de nossos dias, impera a lógica das empresas transnacionais e do grande capital financeiro internacional; o Estado cede o poder de regular sua própria economia, aliena sua soberania[12].
Para Celso Furtado, a subordinação do crescimento econômico à iniciativa das grandes empresas multinacionais, em países ainda em formação, nosso caso, é a boa receita para a criação de bolsões de miséria e a inviabilização do país como projeto nacional[13]. A dependência – política e econômica, a renúncia a um projeto próprio de soberania e desenvolvimento – foi a opção das classes dominantes, desde os primeiros momentos de construção do país. No presente, estamos sempre reproduzindo o passado, quando tínhamos todas as condições de construir uma província rica desfrutada por um povo feliz.
A feitoria colonial na República – Sem terremotos, convivendo com o atraso e a injustiça social, o Brasil, chegou a 1930: como uma “feitoria” dependente de um só produto de exportação, o café em grão, cujos preços artificiais, pagos ao produtor paulista, são financiados pela economia do resto do país. Desde cedo os cafeicultores haviam compreendido a importância de instrumentalizar o poder político em função de seus interesses.
A burguesia conservadora – A burguesia – comercial, industrial e financeira — surge desapartada do interesse nacional, ligada aos fornecedores ingleses e aos bancos da City, retardando a revolução que o país espera desde o século XIX. De gênese revolucionária, no Brasil ela é conservadora, adversa às reformas (senão aquelas que asseguram que nada mudará), apegada à propriedade da terra, serviçal da ordem. Na origem, foi sócia menor do capitalismo mercantil; na modernidade é sócia menor do capitalismo financeiro internacional. Sua história não está associada a qualquer projeto nacional de reforma e desenvolvimento. Sustentou até 1930 o agrarismo que vem do império, e se levantou em armas (1932) contra o projeto industrialista e modernizante do Estado Novo; desestabilizou o projeto de economia autônoma/nacionalista de Vargas no mandato constitucional (1951-1954), promoveu a campanha contra as reformas de base e deu sustentação à subversão militar que decretou o golpe de 1964 e, finalmente, fomentou a campanha de desconstituição do governo Dilma Rousseff, de que resultou, ainda com sua ajuda, a emergência do regime neoliberal antiindustrialista e antidesenvolvimentista dos dias de hoje.
Por todas essas razões, o Brasil contemporâneo não conheceu a contradição empresa nacional x imperialismo, embora com ela sonhassem os comunistas ortodoxos. Por uma razão muito simples, o capital nacional associou-se ao imperialismo através dos grandes bancos e das multinacionais.
O permanente debate entre vocação rural e projeto industrialista de certa maneira reflete essa visão conservadora, atrasada e alienada que leva à opção pela dependência, como está exemplarmente exposta na obra de Eugênio Gudin, fundador da moderna economia brasileira, e certamente o mais importante porta-voz dos interesses privados e internacionais[14]. Como explicar a reprimarização radical da economia brasileira, senão lembrando que a casa-grande de hoje, como a de ontem, independe do mercado interno? Independe do país, da nação, do desenvolvimento e do poder aquisitivo de sua população. Daí, ao contrário de outras burguesias em outros contextos históricos, não se molestar com a pobreza, com a concentração de renda e riqueza, com o desemprego. Interessa-lhe a ordem, a tranquilidade para seus negócios.
Se não tivemos uma burguesia progressista disputando o poder com o latifúndio e o atraso, também não tivemos (pagando o preço de uma industrialização temporã) um proletariado revolucionário. As grandes massas operárias urbanas – o contingente que contava politicamente — se revelaram mais sensíveis às reformas trabalhistas e ao protecionismo paternalista do que à ruptura social, com sua miríade de incertezas.
Nossa classe dominante – A economia escravagista, dependente da lavoura baseada na remessa bruta de produtos, produziria uma classe dominante que necessariamente refletiria seu perfil. Qual então o perfil de nossa economia? Uma ordem estamental, fechada, dominada pela relação senhor-escravo, sem nenhuma mobilidade social. Não poderia ser diferente o mando da casa-grande.
Somos produto de uma história cruenta, que se registra não apenas nas insurreições, nas rebeliões, nas guerras, nos levantes populares, nas organizações camponesas massacradas pelas forças do Estado de classes, porque igualmente se alimenta do genocídio de etnias e raças, da repressão às populações indígena, negra, mestiça e cabocla, da moderna naturalização da expropriação do trabalho, da injustiça social, da concentração de renda. Na colônia, no império e na república o sangue derramado é o do povo insurgente.
Como uma sociedade racista e preconceituosa, concentradora de bens e riqueza, fundada no latifúndio e na exploração do trabalho humano, no massacre das classes subalternas, camponeses e trabalhadores, poderia pensar em produzir cidadania, sociedade civil ou nação? Quem vai compor a elite produzida por essa sociedade? Os filhos do latifúndio, os filhos dos comerciantes e dos traficantes dos navios negreiros. É esta a base original da nossa elite, da nossa casa-grande, da nossa burguesia para a qual era e é preferível um país arcaico, agroexportador e sempre dependente, uma população de analfabetos e subnutridos a qualquer reforma que minimamente ameace seus privilégios.
O Brasil passa de feitoria a colônia escravagista, faz-se país e Estado e nominalmente separa-se da Coroa, caminha da monarquia à república, mas a ordem agrário-oligárquica não muda e o povo é conservado no seu dia-a-dia, sem conhecer alterações em suas relações políticas e econômicas. Os comerciantes da praia e os barões feudais são substituídos pelos capitães do mercado financeiro; o país se industrializa, surge o proletariado para ser substituído pelo precariado contemporâneo.
Nossa primeira Constituinte, convocada e dissolvida pelo príncipe absolutista, era formada de 23 doutores em direito, sete em cânones, três em medicina, 22 desembargadores, nove clérigos, sete militares. Todos ligados à propriedade da terra. Nenhum bafejado pela soberania popular[15].
Os parlamentos do primeiro e do segundo impérios, integrados por essa gente, fossem liberais ou conservadores – sempre intelectuais orgânicos da propriedade, militares, padres e magistrados –, notabilizaram-se por impedir reformas. Eram admitidas tão-só reformas políticas e jurídicas, como no lento processo da abolição, esperando que afinal ela se fizesse naturalmente com a morte dos cativos. Era possível discutir todas as reformas menos aquelas que mexessem na fonte do poder, a propriedade privada[16].Este é o passado que nos governa.
É bom lembrar que ainda nos idos dos anos de 1960 era crime falar em “reformas de base”, como a reforma agrária, defendida por José Bonifácio no início do primeiro reinado. A defesa de reformas de base que qualquer burguesia esclarecida defenderia levou à deposição de um presidente da República e à implantação de uma ditadura de 21 anos.
O Brasil continua não sendo contemporâneo – A burguesia brasileira é contrarrevolucionária, e tem na corporação militar seu braço armado, o grande partido da ordem, a serviço da classe dominante e de seus interesses que hoje se vinculam aos interesses do grande capital internacional. Cumpre-lhe impedir o nascimento do novo.
Nossa independência, cujo bicentenário se registrará no próximo ano, prenuncia um aspecto do caráter nacional: a composição, a conciliação, a concordata, a traficância. Sem revolução de libertação nacional, rompemos com o reino sem havermos cortado os vínculos com o sistema colonial; nos apartarmos das Cortes de Lisboa e negociamos essa independência com a Inglaterra e nos transformamos em pasto do colonialismo inglês[17].
Rompemos com a colônia, mas permanecemos no sistema colonial. Essa foi a segunda grande tragédia porque já nasce conosco uma monarquia atrasada que mantém o país, como na colônia, dependente da terra, da lavoura, do escravismo que ela vai sustentar até 1888, quando o latifúndio substitui a mão-de-obra escrava pelo braço do imigrante importado da Europa “cuja população se tornara excedente e exportável a baixo preço”[18]. Inerente ao processo de dominação o intento de “embranquecimento” da raça.
Éramos uma monarquia avessa a qualquer política de industrialização e modernização. Se fizemos a independência sem romper com o colonialismo, chegamos à república reproduzindo a base econômica do império; permanecemos economia rural, latifundiária, exportadora de produtos agrícolas. O país viveu todas as experiências possíveis, insurreições, revoluções, golpes de estado de toda sorte, abolição da escravatura, ditaduras militares, renúncias e o suicídio de um presidente, parlamentarismo e presidencialismo, mas nada que alterasse o caráter e a composição do poder. Ele é inabalável, inatingível por intempéries que em outras civilizações destruíram a ordem dominante.
Entre nós, a revolução, como proclamava Antônio Carlos Ribeiro de Andrada[19], líder de 1930, deveria ser feita pelos governantes antes que o povo a fizesse, ou seja, cumpria à classe-dominante, em nome de quem falava, e não seria distinto o discurso de João Pessoa ou Getúlio Vargas[20], proceder às reformas políticas e jurídicas necessárias para evitar a revolução social. No Brasil, as “revoluções” são preventivas: cumpre-lhes evitar a revolução popular. O papel que a defesa da terra desempenhara no Império, combinando ideologicamente liberais e conservadores, na República será exercido pelo receio da insurgência das massas, unificando revolucionários (assim definidos os que se erguiam contra o poder central) e conservadores.
A insurgência dos subalternos – As transformações sociais e políticas, em nossa história, não resultam do movimento social, de ações que se desenvolvem de baixo para cima, comandadas pelas forças populares, pois se resolvem sempre “através de uma conciliação entre os representantes dos grupos opositores economicamente dominantes”[21].
O liberalismo da classe dominante admite algumas concessões, como, por exemplo, a democracia representativa sob controle, desde que não enseje a emergência das massas. Sempre que essa se insinua, a estabilidade institucional é quebrada pela intervenção das Forças Armadas, em nome da ordem. Como tal entenda-se o congelamento do processo social, e, de regra, a retomada do regime autoritário, quando não da ditadura franca. Leandro Konder observa que a direita, em seu pluralismo ideológico, pode se dar ao luxo de divergir sobre o formal e epidérmico, para ser rigorosa na unidade substancial: impedir que as massas populares se organizem, reivindiquem, façam política[22].
Exemplo recente de resistência popular, a defesa da legalidade em 1961 teve seu fecho no golpe do parlamentarismo, negociado por generais sediciosos com a cúpula do Congresso Nacional; enquanto o povo nas ruas – no mais significativo exemplo de mobilização de massas na República – clamava pelas eleições diretas para presidente, o Congresso Nacional derrotava a emenda Dante de Oliveira, que as restabelecia, e impunha a eleição por um colégio eleitoral, contra a expressa manifestação da vontade popular.
O povo frequentemente se insurge, é verdade, mas raramente opera como agente de modificações e jamais conseguiu alterar a natureza do mando secular. A história registra irrupções e insurgências, desde a Colônia, e marcando o Império e a República. Todas derrotadas pela ferocidade repressiva do Estado; a última talvez tenha sido o massacre dos camponeses de Canudos, imolados pelo exército brasileiro a requerimento dos latifundiários da Bahia.
Canudos não é caso único, mesmo em sua magnitude[23], e logo será reproduzido, em escala reduzida, no “Massacre do Caldeirão”[24]. É aqui um símbolo da violência das Forças Armadas quando se trata de lidar com as mais legítimas e puras expressões das formas de luta e organização de nosso povo. Os dois aldeamentos foram destruídos porque eram vistos pelos senhores da terra, respeitadas as distintas proporções, como maus exemplos para os sertanejos extorquidos pelo latifúndio improdutivo e vítimas das secas cíclicas que tornavam quase impossível a sobrevivência no semiárido. Em ambos os massacres as forças expedicionárias militares foram reclamadas pelo clero a serviço do latifúndio. A violência é a resposta do sistema sempre que o povo dá mostras de sua capacidade de organização.
A única “revolução” brasileira vitoriosa foi a de 1930, um movimento político que nasce e se consolida de cima para baixo, liderado por três governadores de Estado e levado a cabo por um sem número de oficiais superiores do exército, que, na sua quase unanimidade, se destacariam, a partir de 1945, na defesa da ordem capitalista, na resistência a reformas e no comando de golpes de estado e ditaduras. Nasce de uma dissidência política no seio da classe dominante. Por isso é que pôde ser vitoriosa e manter-se viva enquanto contou com a solidariedade participativa das Forças Armadas, solidariedade que cessa quando os generais se dão conta dos acenos trabalhistas do ditador, no declínio do “Estado novo”, e voltam a temer “a emergência das massas”.
Quase conclusão – Esses são os elementos a partir dos quais penso a sociedade brasileira hoje. Nossa formação nos moldou e não nos libertámos do modelo concebido no passado. Ao contrário, o aprofundámos. Nossas reformas são sempre “pelo alto”, levadas a cabo pela classe dominante, para preservar o mando: esta é nossa história que tem o povo como o grande ausente. Tudo é e será sempre possível, desde que não ameace a ordem.
Não nos foi dado, assim, construir um Projeto de Nação. O Brasil não deu certo porque não tem, não soube ou não pôde construir um projeto de ser, fruto da vontade nacional, compreendida como vontade de sua gente, de seu povo. Permanecemos na trilha que nossos “descobridores” traçaram – uma sina?
* Capítulo do livro Cultura e Política – Diálogos Contemporâneos entre o caos e a civilização. PINHEIRO, Hélder, BENEVIDES, Marúcia, GADELHA, Sylvio, LEITÃO, Valton, LEITÃO, Vanda [orgs.]. São Paulo, SP: Cambalache. Páginas 219-234.
**Com a colaboração de Iris Campos, jornalista e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo.
[1] RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. Ed. Círculo do livro. São Paulo. S/d. p. 13
[2] O índio chegou a ser, depois do pau-brasil, ou pau de tinta, a principal mercadoria de exportação para a metrópole, ao lado de peles de onça, macacos e papagaios falantes.
[3] Sobre as condições desumanas da exploração do elemento servil ver CONRAD, Roberto. The Destruction of Brazilian Slavery. Berkeley/Los Angeles. University of California Press. 1972. P 14
[4] Idem. Ob. Cit. Pp. 20 e 22
[5] Não cabe nos limitados objetivos deste texto a exegese do conceito de nação, um dos mais controvertidos da ciência política. Trabalhamos com o entendimento que nos é oferecido por Manuel Domingos Neto (Cf. Arte para a nação brasileira. Ed. UECE. Fortaleza. 2012. “Introdução”. ): ”nação é uma sociedade que se reconhece, é reconhecida externamente e vive impulsionada pela perspectiva de futuro promissor”. Bibliografia sugestiva pode ser: HOBSBAWN, E.J. Nações e nacionalismos desde 1870. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2002; ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo. Ática. 1989. O texto seminal é “O que é uma nação”, conferência de Ernest Renan, pronunciada na Sorbonne em 11 de março de 1882, e acessível em www.unicamp.br e www.periodicos.letras.ufmg.br
[6] Apud “As instituições políticas e o meio social” in AMADO, Gilberto. Perfis parlamentares. Câmara dos Deputados, 1979. P. 57
[7] CF. HOUAISS, Antônio. A crise de nossa língua de cultura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1983. P. 33
[8] Cf.BONAVIDES, Paulo & AMARAL, Roberto. Textos políticos da história do Brasil. Conselho Editorial do Senado Federal. Brasília. 3ª.Ed. Vol. I. p 221
[9] Ob. Cit. p. 19
[10]CAPISTRANO DE ABREU, João. O descobrimento do Brasil e seu desenvolvimento no século XVI. Rio de Janeiro. Tip. De G. Leuzinger. 1883.
[11] RODRIGUES, José Honório. ( Ensaios livres. São Paulo. Editora Imaginário. 1991) refere-se ao “povo brasileiro” (pp3 e 4), como “um enxerto de gente de origens diversas”, uma síntese de antíteses..
[12] Cf. FURTADO, Celso In Brasil, a construção interrompida. Paz e Terra. Rio de Janeiro.
[13] Idem, Idem p.35
[14] O pensamento de Eugênio Gudin. Editora da Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro. 1978
[15] BONAVIDES, Paulo & AMARAL, Roberto. Ob. Cit. p 52
[16] Sugiro a leitura de RODRIGUES, José Honório. Conciliação e reforma no Brasil- um desafio histórico-cultural. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro.1965, pp 11-19.
[17] Cf. BONAVIDES, Paulo & AMARAL, Roberto. Ob. Cit. Vol. II. Ver a propósito MANCHESTER, Alan K. Preeminência inglesa no Brasil. São Paulo. Editora Brasiliense. 1973 e LESLIS, Berthel. A abolição do tráfico de escravos no Brasil. Rio de Janeiro. Ed. Expressão e Cultura. 1973.
[18] RIBEIRO, Darcy.Ob. Cit. P. 221. Outro atrativo era o sonho do “embranquecimento da raça”.
[19] “Façamos a revolução antes que o povo a faça”. Muitos anos passados, o deputado Ulisses Guimarães, presidente e líder da Constituinte de 1988, declararia: “Ou mudamos ou seremos mudados” (Discurso na instalação da legislatura de 1991-1995)
[20] Às vésperas da insurreição o governador da Paraíba declararia: “Em carta a João Neves da Fontoura (13 de setembro de 1929), Vargas escrevia “Penso que não é lícito lançarmos o país numa revolução, sacrificarmos milhares de vidas, arruinar e empobrecer o Estado, só para combater um homem, que atualmente nos desafia e que é o presidente da República. Se formos vencidos, ele ainda será glorificado, com o título de restaurador da ordem e reconsolidador do regime. Não é possível ensanguentar o Brasil, por causa desse homem.” No dia 3 de outubro de 1930, horas antes de deixar o Palácio Piratini para comandar o levante, inicia a primeira anotação de seu Diário (1930-1942), reduzindo a revolução a uma aventura: “Que nos reservará o futuro incerto neste lance aventureiro?”.
[21] COUTINHO, Carlos Nelson. “Os efeitos da via prussiana sobre a intelectualidade brasileira” (http://ww.socialimso.org.br/portal/filosofia/157-livro/551)
[22] “A unidade da direita”, in Jornal da República, 20/91979, São Paulo, p. 4
[23] Calcula-se em mais de vinte e cinco mil camponeses assassinados.
[24] Em maio de 1937, centenas de camponeses (estimativas entre 400 e mil mortos) , seguidores do beato (negro) José Lourenço foram massacrados pela Polícia Militar do Ceará e pelo Exército na fazenda denominada Caldeirão, situada no Crato. Na comunidade a produção e o consumo eram coletivos.