Roberto Amaral

Debruçado sobre nossa aventura entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o término da Guerra Fria, com o suicídio da URSS, Renato Archer deita luzes sobre a intimidade da república que frequentou como ator privilegiado (Depoimento Ed. Contraponto, 2006). É didático, por exemplo, no desvendar o  papel de diplomatas e militares na política,  e disserta sobre a adesão acrítica dos fardados, como corporação, aos projetos geopolíticos dos EUA, em detrimento dos nossos interesses como povo, nação e país. Trata-se, pois, de livro precioso cuja leitura ajuda a compreender a tragédia política de nossos dias.

Militar de carreira (foi  para a reserva como capitão de fragata), secretário de governo no Maranhão, empresário, deputado federal, ministro das relações exteriores, adversário da ditadura, articulador da frente ampla (Juscelino, João Goulart e Carlos Lacerda, 1966), ministro da ciência e tecnologia no governo da nova república, ministro da previdência social, presidente da Embratel, típico filho da casa-grande, Renato Archer assume o papel de dissidente oligárquico, e se faz político na contramão dos interesses de sua origem de classe. Prócer de destaque no movimento nacionalista dos anos 50/60 do século passado, foi cassado e preso pela ditadura de seus pares.

Destaco seu papel como colaborador de San Tiago Dantas na estruturação dos primeiros marcos de uma política externa que visava à independência, e sua longa defesa (seguindo os passos de Álvaro Alberto) do desenvolvimento da energia nuclear para a produção de energia elétrica, projeto  sabotado pelo marechal Juarez Távora, quando chefe da Casa Militar de Café Filho (1955). O destrinchar das maquinações marcou a atuação parlamentar de Renato Archer e constitui um dos capítulos de maior revelação histórica de seu Depoimento, ditado de extrema coragem em país que mais aprecia as acomodações (pp 115 e segts). De sua denúncia resultou uma CPI na Câmara dos Deputados cujas conclusões resultaram pouco lisonjeiras ao velho cabo de guerra compelido a requerer a reserva, que nos anos vinte do século passado  lustrara  a farda com a condecoração do lenço vermelho dos revolucionários.

Juarez é o perdedor na lição da história, mas ao fim e ao cabo estava reduzida a pó a política de energia nuclear de Getúlio Vargas, concebida  como instrumento de capacitação científica, tecnológica e, por fim, como instrumento fundamental para nossa industrialização, pensada como meio de nos levar à independência econômica, antessala da conquista da soberania. Dos tempos de Archer para cá o país avançou, domina o ciclo completo do enriquecimento do urânio e fabrica, com tecnologia própria, as ultracentrífugas que tentou importar da Alemanha nos anos 50. Mas o país permanece sem definição, sem clareza quanto ao que pretende, caminhando e recuando, “como envergonhado de sua tradição, credibilidade e competência nessa área estratégica.”

 Archer acusa os embaixadores brasileiros na ONU, a saber, Raul Fernandes, Edmundo Barbosa da Silva e Vasco Leitão da Cunha, de jamais haverem defendido a política brasileira de energia nuclear nas negociações com a Casa Branca. Peja o embaixador Edmundo Barbosa da Silva, servindo no gabinete do presidente da República (JK), passando ao Departamento de Estado dos EUA – em telefonema no próprio palácio do Catete – informações sobre documentos secretos da diplomacia brasileira. Esse mesmo Edmundo Barbosa da Silva é  acusado de, ainda no governo Vargas, informar ao Departamento de Estado que o Brasil estava importando ultracentrífugas da então Alemanha Federal, levando à apreensão da carga pelos americanos.

O desserviço aos interesses nacionais ocupa os altos escalões. Renato Archer relata decisão do ministro da Fazenda, Walter Moreira Salles, conspícuo representante da burguesia nacional, cancelando acordo de trocas entre o Brasil e a Finlândia, por meio do qual importaríamos  papel de imprensa em troca de fornecimento de café. Alegava o  banqueiro-ministro que tal acordo violava a “liberdade de comércio.” Por consequência, passamos a importar papel dos EUA e do Canadá, por um preço significativamente maior enquanto a Finlândia deixou de importar nosso café, passando a fazê-lo da Colômbia.

Para a grande maioria dos  intérpretes, a preeminência ideológica dos EUA sobre os militares brasileiros, com as conhecidas e lamentáveis consequências na vida política, se acentuam após a Segunda Guerra Mundial. Filiado a esta linha, Renato Archer destaca a política do Pentágono impondo-se como fornecedor praticamente único de armamentos aos países periféricos, o que ensejava aos EUA tanto o domínio estratégico-político quanto a preeminência ideológica, ao tempo em que alimentava o complexo industrial militar denunciado por Dwight Eisenhower em seu famoso discurso de transmissão da presidência a John Kennedy. O mercado cativo dos países dependentes assegurava o funcionamento da máquina industrial e financiava as inovações exigidas pela corrida armamentista.

Dou a palavra a Renato Archer:

“Um dia, o general Segadas Viana, ministro do Exército [na verdade, da Guerra, a nomenclatura de então] no gabinete Tancredo Neves [primeiro governo parlamentarista], me telefonou. Eu estava então interinamente no Ministério do Exterior.  Ele me disse: ‘Ministro, o professor San Tiago Dantas [ministro das relações exteriores] quer fechar o meu ministério.’ Como? Fechar o ministério? Pergunto eu. ‘Ele deu uma entrevista ao jornal francês Le Monde, dizendo que o Brasil é um país não alinhado. E o Brasil é um país alinhado na luta contra o comunismo!’ Respondi: “País não alinhado, em nossa terminologia, é um país que não faz parte nem do Pacto de Varsóvia, nem do tratado do Atlântico Norte, do qual não podemos participar por motivos geográficos. Nós somos fatalmente não alinhados.’ ‘Não!’, respondeu o general: ‘Os americanos estão me dizendo que quem não é alinhado na luta contra o comunismo não vai receber armas. E nós somos a favor da luta contra o comunismo.’” (Pp. 86-7). Pois essa era a condição para ser bem visto pelo establishment da guerra.

A consequência vinha a cavalo: jamais aspirar o país a dispor de tropas aptas à sua defesa (afinal delegada aos EUA); as importações não atendiam a encomendas de nosso governo, mas aos interesses do fornecedor, e assim se limitavam a equipamentos de segunda linha, descartados pela política de permanente modernização imposta ao Pentágono pela corrida armamentista levada a cabo contra a URSS. A mesma embalagem acondicionava armas e ideologia, e nossos fardados ficavam satisfeitos, pois o sonho de todas as armas, desde o Império, foi sempre  cuidar da ordem herdada da escravatura e do latifúndio. Nossa participação por procuração na Guerra Fria inventou o anticomunismo, para haver um inimigo interno a combater; a existência de suposta contestação interna era o pretexto para amplificar o acesso de nossas tropas a armas de segundo e terceiro níveis  tecnológicos.

Archer observa que a política armamentista do grande império do norte, determinando a dependência estratégica e ideológica dos exércitos latino-americanos, levou os militares, independentemente de seus governos,  a se reunir e a promover a padronização  de doutrinas, equipamentos e procedimentos. É a fonte dos “pronunciamentos” militares, das intervenções, dos golpes de Estado e das ditaduras que afligiram o continente sul-americano.

Essa dependência ensejou o diálogo direto entre os militares dos diversos países da região​, e a “cooperação” chegou a operar-se mesmo em confronto com decisões dos governos. Renato conta o episódio de um curso de doutrinação no Colégio Americano de Defesa (EUA), para o qual o Brasil  foi “convidado” a enviar oficiais superiores e ainda pagar 10 milhões de dólares. O curso foi recusado pelo gabinete (era ainda o governo parlamentarista), inclusive com o voto dos ministros militares. Quando a decisão foi comunicada ao general-chefe do Estado Maior das Forças Armadas brasileiras, nossos  militares já haviam viajado… O fato consumado ficou por isso mesmo, e assim pagávamos, e continuamos pagando, para formar nossos generais com uma visão política contrária aos nossos interesses.

Não pretendo oferecer ao leitor o resumo do depoimento de Renato Archer. Limitei-me a pinçar fatos que me pareceram relevantes, quando, sob o neoliberalismo negacionista, a educação, a ciência e a tecnologia sofrem o mais ousado e duradouro ataque de que se tem notícia no país. A ofensiva é tanto mais grave quanto conta com a ação direta dos militares, que no passado tiveram papel decisivo em algumas das inovações mais significativas da história da ciência em  nosso país, como a criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, hoje condenado à inanição em face do corte drástico e permanente de seus recursos – o que, aliás, não é ainda o pior dos males, pois este é a planejada política predatória do governo negacionista, anti-ciência, anti-conhecimento, desmontando com desvelo e competência inusitada o sistema nacional de ciência e tecnologia, investindo contra a universidade pública, cortando bolsas de estudos, inviabilizando a pesquisa.