Escrita em 1953, no auge do macarthismo (1950-1957), protegida pelo disfarce da futurologia científica, a obra-prima de Ray Bradbury nos falava então e nos fala agora de um presente real, este no qual nos foi dado viver, dominado pela crise letal do que chamamos de civilização ocidental. Como Admirável mundo novo, e A Revolução dos bichos e 1984, os clássicos de Aldous Huxley e Georges Orwell, Fahrenheit 451 é ensaio que desconsidera os limites temporais para nos convidar a uma reflexão sobre a realidade política que governa nossas vidas. Trata-se de revisão quase sempre incômoda, porque a crise que se esbate sobre o futuro da civilização é a nossa tragédia de cada dia, e a tomada de consciência da realidade tem a força de romper com a alienação, transformando em desassossego a paz de espírito com que sonham os niilistas.

A crise da dita civilização ocidental – moral, ética, política, filosófica –, escamoteada pelos avanços da ciência e da tecnologia, parece renovar-se em ciclos de autoritarismo: nazismo, fascismo, salazarismo, franquismo, stalinismo, macarthismo. Os primeiros decênios do terceiro milênio prometem trazer de volta os fantasmas do século passado. Esta é a explicação plausível para, após tanta experiência histórica, vivermos a emergência de lideranças da estatura liliputiana de Donald Trump, Boris Johnson, Viktor Orban e do capitão que ocupa o terceiro andar do palácio do planalto, guardado pelas costas largas de seus generais de estimação.

Quem poderia supor que após as lições ensejadas pelo ciclo da ditadura militar viveríamos a insanidade do bolsonarismo?

Os bombeiros de Bradbury, observa Manuel da Costa Pinto no prefácio à tradução brasileira (Biblioteca Azul, 2012), “são agentes da higiene pública que queimam livros para evitar que suas quimeras perturbem o sono dos cidadãos honestos, cujas inquietações são cotidianamente sufocadas por doses maciças de comprimidos narcotizantes e pela onipresença da televisão”, e, acrescento, por doses maciças de doutrinamento evangélico, fake news. a manipulação robótica das redes sociais e o unilateralismo ideológico dos grandes meios de comunicação. A fogueira de livros, uma presença em toda a história da humanidade, é simbólica da luta entre o saber que inquieta e a ignorância que abre caminho para a conformação do dominado.

A direita de todos os tempos e de todas as latitudes – como a assembleia que condenou Sócrates, os tribunais da santa inquisição, as depurações de Stálin e os julgamentos do macarthismo – detesta o saber, porque ele é a chave da liberdade; detesta a inteligência e a liberdade de pensamento, detesta os intelectuais,​ pois eles têm o vício de duvidar. Nos idos de 1933, os nazistas alemães, como os fascistas italianos, queimavam livros em praça pública e aprisionavam escritores, a Espanha franquista matava poetas, o salazarismo os prendia ou exilava. O obscurantismo reinava nos dois lados do Atlântico. No Estado Novo (1937-1945), o DIP censurava a imprensa e muitos intelectuais e cientistas, como Nisi da Silveira, e escritores como Graciliano Ramos conheceram o cárcere. A ditadura instalada em 1º de abril de 1964, demitiu professores e cientistas, prendeu escritores e exilou nossos sábios, e decretou a censura geral e irrestrita à imprensa. O general Ernesto Geisel impôs a censura prévia aos livros. Os nazistas atearam fogo, entre outros muitos, em livros de Marx, Kafka, Thomas Mann, Einstein e Freud. No governo do capitão, o pré-neandertal que assumiu a presidência da Fundação Palmares, para destruí-la, expele como indesejável a obra fotográfica de Sebastião Salgado e bane da biblioteca da instituição livros como Almas mortas, de Nikolai Gogol, Dicionário do folclore brasileiro, de Luís da Câmara Cascudo e obras de autores como Marx, Engels, Weber, Caio Prado Jr., Eric Hobsbawn e Celso Furtado.

O impacto com que, assustado e impotente, acompanhei pela televisão o festival macabro das labaredas consumindo a memória nacional depositada na Cinemateca Brasileira, levou-me às primeiras páginas de Fahrenheit 451:

“Era um prazer especial ver as coisas serem devoradas, ver as coisas serem enegrecidas e alteradas. Empunhando o bocal de bronze, a grande víbora cuspindo seu querosene peçonhento sobre o mundo, o sangue latejava em sua cabeça e suas mãos eram as de um prodigioso maestro regendo todas as sinfonias de chamas e labaredas para derrubar os farrapos e as ruínas carbonizadas da história. […] A passos largos ele avançou em meio a um enxame de vaga-lumes. Como na velha brincadeira, o que ele mais desejava era levar à fornalha um marshmallow na ponta de uma vareta, enquanto os livros morriam num estertor de pombos na varanda e no gramado da casa. Enquanto os livros se consumiam em redemoinhos de fagulhas e se dissolviam no vento escurecido da fuligem”.

A alegoria de Bradbury é simbólica; e simbólicos de nossos tempos devem ser considerados tanto o incêndio premeditado da Cinemateca (pois fruto de planejado corte de verbas) quanto a destruição em chamas do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, propositalmente desamparado de recursos de conservação.

O ainda presidente da república, parvo e pulha, porém, não se dá por satisfeito em destruir o passado, incinerando nossa memória. Tenta apagar o futuro. Destrói o ministério da cultura, reduzido a um apêndice do ministério do turismo, e entrega o ministério da educação a uma tríade de apedeutos; move tenaz perseguição aos institutos de ensino e pesquisa, como o INPE, reduz os recursos para a área da educação e tenta inviabilizar as universidades federais com a asfixia orçamentária. Os recursos dos principais fundos destinados ao apoio à pesquisa científica e tecnológica caíram, de R$ 13.971.751124 em 2015, para 4.401.561.381 em 2020 (dados do IPEA). No mesmo ano de 2015, os recursos destinados ao CNPq somavam 2,6 bilhões, reduzidos a 1,6 bilhão em 2019 (Fonte: SIOP/Ministério do Planejamento). É o garrote financeiro que visa a estrangular o ensino e a pesquisa, ao inviabilizar a formação de mestres e doutores.

O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, criado em 1951 com o objetivo de promover o desenvolvimento da investigação cientifica e tecnológica, vive a pior crise de sua história de 70 anos de bons serviços prestados ao país. Administra a maior e mais importante plataforma científica do Brasil, reunindo toda a produção nacional, como projetos, pesquisas e trabalhos desenvolvidos por pesquisadores e universidades brasileiras, e ainda é responsável pelas bolsas a cientistas brasileiros. Toda a sua base de dados está ameaçada porque, por falta de manutenção, derivada da rapina de recursos, sucateamento e obsolescência de equipamentos, o sistema de informática da instituição saiu do ar.

As bolsas estão congeladas desde 2012 em número e valor (R$ 4.100, no caso de pós-doutorado), o que estimula o êxodo de nossos melhores quadros: pobres, estamos formando pesquisadores para os EUA e a Europa. Daqui a pouco também para a China.

Na próxima sexta-feira (6/8) reunir-se-á o Conselho Diretor do Fundo Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), quando apreciará a estapafúrdia proposta do governo que visa a carrear R$ 800 milhões a quatro ou cinco organizações sociais, cifra que corresponde ao dobro do que é destinado a mais de 200 universidades brasileiras. Este é o outro lado da política em vigor: malversação dos recursos públicos.

O quadro desolador da ciência e da tecnologia se soma à política de terra arrasada levada à cultura e à educação; não se trata, porém, pura e simplesmente, de uma política de descaso ou omissão: ao contrário, o projeto do governo é determinado, é consciente e obedece a um planejamento cujo objetivo é destruir quaisquer veleidades nacionais de soberania. A questão, é, pois, fundamentalmente política, e o arrocho financeiro não é operação autônoma. Deriva do projeto maior: nossa destinação ao papel de grande província do Império. Política, a ameaça de sucateamento de nossos laboratórios e esvaziamento do ensino e da pesquisa só será enfrentada se conseguirmos alterar a atual correlação de forças. Não há conciliação possível; recusar o combate é fortalecer o statu quo. O desafio diz que está mais do que na hora de as lideranças universitárias, por exemplo, procurarem a articulação com a sociedade, denunciando o projeto e explicando de forma clara os prejuízos que advirão, para o país, se a política do desmonte e alienação não for detida.

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Francisco Weffort – Com o falecimento de Francisco Weffort, o Brasil perde um de seus mais profícuos pensadores, sociólogo de primeira água de uma escola onde brilhavam figuras da estirpe de Florestan Fernandes. Seu último livro, Espada, cobiça e fé (as origens do Brasil), escrito em sua fase carioca, é obra que integrará a pequena biblioteca dos bons tratados sobre a formação brasileira.

Que forças armadas são essas? – Sem autorização do congresso nacional, sem consulta à nação, as forças armadas brasileiras, por intermédio da marinha, participam de operações militares da OTAN no mar negro, numa operação que só diz respeito aos interesses estratégicos dos EUA em seu contencioso com a Rússia, em função da soberania da Crimeia. O Brasil subserviente rompe com o BRICS e se entrega de corpo e alma como serviçal dos interesses do Pentágono. Candidata-se a linha avançada do imperialismo no atlântico sul. Triste fim de uma política que já aspirou à altivez. Nenhum registro nas páginas da imprensa nacional.

Nota dos clubes – Como evidente e descabida resposta aos pronunciamentos dos presidentes do STF (discurso tardio, perdeu-se na retórica barroca e caiu no vazio) e do TSE, o clube dos fardados emite nota desancando a urna eletrônica e, fazendo coro ao capitão, exigindo a extemporânea cédula impressa. Da nota nada resultará, mas, em última análise, valerá como mais uma demonstração do apoio da farda aos desmandos do bolsonarismo. Para a sociedade agem e pensam de forma unida o capitão e os quartéis. E quanto mais apoia o capitão, inclusive em suas impertinências, mais a farda se compromete com o mais indigno governante de toda a história republicana.

Roberto Amaral