Manuel Domingos Neto

 

Além do sonho coletivo de viver melhor, as nacionalidades requerem percepção comum do passado. Daí a destruição da memória referente às lutas pela mudança social ser o empreendimento fascista mais gravoso para uma nação.

Uma comunidade auto-estimada cuida de sua memória como quem bebe água. A alternativa é morrer. Não há sociedades sem simbologias que sacralizem seletivamente experiências vividas. É o que indica a expressão “lugares da memória” consagrada pela historiografia francesa. Tais “lugares” constituem referenciais das almas nacionais.

A arquitetura, sendo incisiva portadora de mensagens relativas ao passado e às promessas de um futuro melhor, tem grande peso na construção da memória coletiva. É um instrumento universalmente privilegiado na identificação de sociedades e na legitimação de Estados.

Mussolini e Hitler teriam logrado manipular italianos e alemães sem bater de frente com as percepções que estes povos alimentavam de seus próprios trajetos e sem injetar-lhes grandes expectativas quanto às glórias vindouras?

Ambos valorizavam as expressões da Antiguidade Clássica como argumento para repudiar a “arte degenerada” da modernidade e promover estéticas adequadas à manipulação das massas segundo seus propósitos totalitários. A arte moderna era incompatível com o nazifascismo. A arquitetura, nem se fale!

Obviamente, na modernidade, o poder político sempre mandou recados à sociedade apelando para a estética greco-romana. Mas apenas os despóticos condenaram de morte os inovadores que lhes contrariavam.

Pensando no Brasil, o êxito de Bolsonaro requer a dilapidação do patrimônio histórico e artístico brasileiro. Se pudesse, o presidente e seus generais destroçariam tudo o que talentos como Niemeyer, Portinari, Paulo Freyre e Djanira fizeram. O propósito dos saudosos da ditadura é silenciar artistas e intelectuais. A orientação é de sumir com o IPHAN, sem o qual a memória da arquitetura e de outros patrimônios não existiria. O empenho na destruição da Casa de Ruy Barbosa, da Cinemateca e de outros acervos relevantes, como o do CNPq, tem a mesma motivação.

Estas ideias me ocorrem ao saber que os rabiscos, desenhos, maquetes e fotografias de Paulo Mendes da Rocha atravessarão o Atlântico rumo à Casa da Arquitectura, uma instituição portuguesa.

A obra deste arquiteto não me emociona particularmente. Não gosto de suas intervenções demasiado invasivas nos monumentos tombados nem de sua desatenção com a paisagem. Mas se trata da maior referência viva da moderna arquitetura brasileira. Sua influência, exercida a partir da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo é fora de questão. Paulo Mendes coleciona grandes prêmios, entre os quais o famoso Pritzker e o da Bienal de Veneza. Seu acervo documental é de importância equivalente aos de outros grandes brasileiros produtores do saber.

A decisão do arquiteto exprime seu instinto de defesa contra o arrojo na destruição da memória brasileira. O Brasil, de fato, nunca teve uma política séria de preservação de acervos históricos nos mais variados domínios da ciência e da arte. Inexiste uma cultura de preservação, há no máximo iniciativas pontuais e setoriais. É como se nossas instituições produtoras de conhecimento não tivessem do que se orgulhar e não tivessem importância para a sociedade.

Paulo Mendes está com 91 anos e sabe o que é repressão selvagem. Seus direitos políticos foram cassados durante a ditadura militar e sua atuação como professor da USP foi proibida. O envio de seu acervo para a Europa neste momento é um flagrante do processo em curso de asfixia da memória brasileira.

As vítimas do instinto destrutivo deste governo são incontáveis. Amazônia, povos originários, comunidade científica, diplomacia, defesa nacional… Os contaminados pela peste se destacam na listagem sinistra.

Mas, no conjunto da obra de torpedeamento da nacionalidade, não cabe esquecer o descaso com a memória de Paulo Mendes da Rocha, uma referência da arquitetura brasileira.