Pedro Amaral
Sou simpático, até certo ponto, à leitura que o professor Marcos Nobre faz do cenário atual, no artigo “O sono da democracia produz monstros” (Nexo, 9/9/2020). Concordo com a premissa, subentendida, de que o governo Bolsonaro não é “normal” e portanto não deveria ser normalizado por quem valorize a democracia. Mas já aí começam os problemas: 1) a democracia não desperta grandes paixões em país como o nosso, em que o termo é vazio de significado para a larga base da pirâmide, submetida, na realidade, a um regime autoritário que poucos direitos lhe reconhece e pouca chance lhe dá para influir nas grandes decisões; e é vazio, também, para o estreito topo da pirâmide, convencido (com boas razões) de que seus interesses serão sempre preservados – a menos, digamos, que uma esquerda socialista chegue ao poder. 2) Ainda que exista amor por essa bela senhora, o fato é que ela já não é a mesma, de 2014 para cá, tendo em vista que se reduziu a confiança no chamado jogo democrático e o judiciário passou a agir, desavergonhadamente, de acordo com a conveniência política do momento. Em tudo e por tudo, Bolsonaro presidente é o maior sintoma de uma democracia muito adoecida.
Isso dito, vejamos: faz sentido tomar o governo Bolsonaro como uma continuidade do governo Temer? Eu diria que sim, e é isso o que tem prevalecido. Quando Nobre diz que a “direita democrática” repele, no governo Bolsonaro, tudo o que não é governo Temer, deixa subentendido o outro lado da moeda, ao qual ele não dá muita importância: ela apoia, em Bolsonaro, tudo aquilo que É continuidade do governo Temer, a saber, o conjunto de “reformas” destinado a reduzir o papel do Estado na economia e garantir, no médio prazo, uma ampliação dos ganhos do capital sobre o trabalho. Esse interesse material (e também simbólico) é de tal valia, para a dita “direita liberal”, que aos olhos dela vale o custo de ter que conter as afrontas do capitão contra a tal da democracia – que, convenhamos, ela não ama tanto assim, haja vista o modo como defenestrou Dilma, empossou Temer e elegeu o capitão que aí está. E o fato é que Bolsonaro não conseguiu dar o “golpe clássico”, com cabos e soldados, até o momento, e tem feito os recuos táticos que as circunstâncias dele exigem. Nada pois, que empurre a “direita democrática” para uma aproximação com a esquerda.
O novo presidente do Supremo Tribunal Federal assume e já se apressa em dizer, como se ministro do governo fosse, que está disposto a sentar com Bolsonaro e empresários (e apenas esses atores) para debater “saídas econômicas” para o Brasil. Por que a direita liberal se indignaria com essa “normalidade” democrática que o país vive?
Nobre tem toda a razão quando alerta que a esquerda não tem por que acreditar que um afastamento de Bolsonaro faria o governo cair em seu colo. O problema está nas saídas que oferece. Ele chega a sugerir que um acordo entre direita e esquerda se baseie na garantia de que quem suceder Bolsonaro não faça “um governo populista”. Ora, eu não faria um pacto nesses termos, pois “populista” é o adjetivo que o campo conservador usa, diuturnamente, para tachar qualquer política que acene para as necessidades econômicas da maioria – ou seja, tudo o que é “popular” (política de valorização do salário mínimo, barateamento do crédito, financiamento da casa própria etc.). Outro ponto, para o autor, seria a direita vencedora garantir que a esquerda poderá “disputar de maneira justa as próximas eleições”. A mesma direita que executou uma parlamentada outro dia, e que foi sócia da perseguição judicial que tirou Lula do último pleito!
Fico, pois, com o argumento que já expus aqui: as condições para um pacto direita-esquerda contra a extrema-direita baseado na confiança mútua e no apego aos valores democráticos não estão dadas (e talvez jamais estejam), porque: 1) não existe essa confiança; 2) não existe esse apego; e 3) a direita já fez sua opção: sustentar Bolsonaro, contendo seus “excessos”, e tentar derrotá-lo se a oportunidade surgir.