Roberto Amaral

 

A melhor síntese do que nos foi dado conhecer da inqualificável reunião do capitão e seus comparsas me foi oferecida pelo meu amigo Álvaro Ribeiro da Costa, ex-advogado geral da União: um só flagrante delito. Boa peça para qualquer aula prática de direito penal, pois ali se amontoam crimes cometidos, delitos em planejamento, intenções criminosas reveladas por autores, co-autores e cúmplices. Espetáculo de porta de xadrez. Algo mais abjeto é impensável, pela forma e pelo conteúdo, pelo seu caráter fático, pelo seu caráter simbólico e pela sua dramaticidade política. O eviceramento moral de um governo torpe em pleno domínio da ilegalidade, eis o que foi oferecido pela revelação de uma, apenas uma (imaginemos as outras) reunião do presidente da república com seus ministros e principais assessores. Linguagem de bordel de ponta de cais. Tudo à espera de um procurador geral da república que não seja devedor do cargo nem disciplinado candidato ao STF.  Do que se ressente a república, enferma.

Embora alguns delinquentes se tenham destacado no afã de relatar serviços e fidelidade comparsa ao chefe,  o que ressalta de  qualquer análise é o conjunto da obra, ou ópera-bufa, um misto de tragédia (à qual está exposta a nação) e escalatologia, pondo à luz do dia, para os crentes e os céticos, os riscos que nos ameaçam a todos. Naquela súcia não há “bom moço”: todos, os falantes e os silentes, são cúmplices na obra coletiva, seja o ex-juiz e ex-ministro da justiça, impávido em sua pusilanimidade, sejam os áulicos fardados, presentes e ausentes, até aqui guarda pretoriana de um regime corrupto, empenhado, a um só tempo, escancaradamente, na desconstrução do tecido social e na organização de milícias que começa, oficialmente, a armar.

E isto vai passar em branco? Como em branco passou a autodelação do ainda presidente de que organizou seu próprio, particularíssimo e clandestino serviço de “inteligência”?

Nosso país, que em passado recente já foi uma das seis ou sete nações mais ricas do mundo, é, hoje, caminhando de mal a pior, verdadeira nau sem rumo, barco sem leme, canoa furada; economia levada à falência, indústria destruída, enquanto a especulação financeira, o capital improdutivo, faz a festa: a bolsa de valores registra alta no mesmo dia em que o video imoral é divulgado, os cinco maiores bancos têm em caixa um volume de reais superior ao PIB nacional (O Estado de S. Paulo, 26/05/2020); este país, que já foi respeitado em todo o mundo, é, hoje, motivo de chacota da imprensa internacional, e dele, com medo de seu governo, se afastam os investidores que os farsantes do neoliberalismo caolho haviam anunciado como recompensa à destruição da economia nacional. Nossa população se vê à míngua, entregue à própria e pobre sorte em face da pandemia. No horizonte de curto prazo não divisa razões para esperança, pois o que desponta, gerida por um governo incompetente e insano (em plena pandemia, estamos há um mês sem ministro da saúde!), é implacável recessão econômica, com sua carga de mais desemprego, mais miséria e mais fome explodindo em grave crise social. O que nos espera, se o quadro de hoje não for revertido, isto é, se o atual regime não for afastado, é o caos, no qual aposta o nosso Napoleão de hospício. Só não vê quem não quer.

Grande parte do noticiário da grande imprensa, ainda apostando nesse tartufo que é o ex-ministro da justiça, gastou suas melhores linhas em demonstrar o óbvio: que a revelação do vídeo comprovava a acusação de que o capitão havia intervindo ou tentado intervir na polícia federal, para proteger familiares acusados de delitos e “amigos” entre os quais deve estar gente da estirpe de um Queiroz ou de um Hang.

Mas isso não é tudo, nem é o mais importante.

A escória da escória tem sua própria escória, e seu melhor representante ainda não é o energúmeno que impunemente ataca a educação, acusa os ministros do STF de “vagabundos” e para eles pede a cadeia; não é a idiota que diz haver visto o Cristo pendurado em um galho de goiabeira e anuncia que vai prender os governadores e prefeitos que estão zelando pela saúde de seus governados; nem é mesmo o pobre  nerd que quer aproveitar a pandemia – de que a reunião não cuidou – para  livrar os grileiros, os garimpeiros, as mineradoras, as madeireiras, a indústria poluente e a agropecuária predatóriaa da exemplar legislação brasileira de defesa do meio ambiente.

O justo destaque dado às perversões do presidente deixou em segundo plano a racionalidade criminosa do ministro da economia. Que continua, a essa altura dos acontecimentos, apostando na compressão dos gastos públicos, no fim dos investimentos, na desarticulação das ações de Estado, no desaparelhamento das agências públicas de desenvolvimento.

Trata-se, portando, de sócio do capitão na empreitada de promover o caos. Ambos plantam ventos, esperando que a tempestade caia apenas sobre o povo-massa.

Esse reles agiota bem sucedido nas traficâncias do sistema financeiro e nos serviços prestados à ditadura Pinochet refere-se ao maior banco público do país como uma “porra” e, desclassificando-o, reclama sua privatização; anuncia a traição aos servidores públicos e, para um auditório de néscios, mente deslavadamente ao afirmar que a Europa se havia recuperado economicamente nos dois pós-guerra seguindo o catecismo liberal. O único exemplo de aplicação dessa política arqueológica e vencida mesmo como doutrina é oferecido, já recentemente, pelo Chile da ditadura Pinochet (a que o ministro serviu como aplicado Chicago Boy) que agora vive sua ressaca social, cobrando altíssimo preço político. Mas, sem se dar conta da gafe, se confessa limitado intelectualmente, ao reconhecer que precisou ler três vezes a obra de Keynes para entendê-la – e pelo visto não entendeu.

O ex-“posto Ipiranga”, único comparsa elogiado pelo capo, relata conversas que não teve com supostos empresários estrangeiros e lideranças econômicas cujos nomes não declina, para dizer que sua política, assim supostamente referendada por quem ninguém sabe, é o caminho seguro para levar à  reeleição de seu chefe, apesar de, sob sua liderança, nossa economia, em 2019,  haver crescido apenas 1,1%! E não cora quando promete crescimento sem investimento, e ninguém lhe cobra coerência. Em nenhum momento dessa assembleia de celerados se discute o interesse público. Mas sobra tempo para atacar nossos parceiros comerciais, pôr em risco a balança comercial (perigosamente dependente das exportações de commodities, como nos nada saudosos anos 1930 do século passado), assustar investidores, desmoralizar as empresas públicas, agredir governadores e prefeitos, uns e outros batizados ora de “bosta” ora de “estrume”.

Para não muito além de julho devemos esperar o encontro macabro das consequências da pandemia, da recessão (a caminho da depressão), da quebra em massa das médias e pequenas empresas, da queda das receitas públicas dos entes da federação, da quebradeira de Estados e municípios, da explosão do desemprego, da queda do consumo e dos serviços, da pá de cal no que nos resta da indústria manufatureira. Mas os bancos estarão muito bem como estão agora, pois nunca ganharam tanto como estão ganhando, quando a economia se retrai e cresce assustadoramente a desigualdade social. Acompanhando as curvas da tragédia social, crescerá, já está crescendo, a desaprovação do governo e da liderança do capitão. Aí está sua Bastilha. Aí talvez se veja o raio de luz no céu escuro.

O Brasil não tem condições econômicas, sociais ou políticas de suportar o atual regime. Digo regime para deixar claro que não se trata de trocar o capitão pelo general. Trata-se de afastar toda a caterva (incluindo os fardados saudosistas dos porões da ditadura), enquanto é tempo, antes da explosão e do desastre anunciados.