Todos sabemos que depois da pandemia da Covid-19 virá a recessão. Depois da pandemia e da recessão virá a crise social, potencializada por uma e por outra. Da pandemia não sabemos quando nos livraremos, nem como, pois seus efeitos dramáticos são levados ao extremo pela irresponsabilidade paranoide do capitão Bolsonaro. Sabemos que por muito tempo ainda choraremos nossas vítimas. O galope da recessão chega aos nossos ouvidos amplificado pelo desastre do neoliberalismo caboclo, que fragilizou uma economia já estagnada. Os analistas, mesmo a gente do mercado, são unânimes em prever a queda do PIB brasileiro, que, depois do pífio resultado de 2019 (1,1%), deve amargar uma retração entre 5% e 10%, variante segundo a fonte de observação. Aquele país de poucos anos passados, que sonhava em crescer e desenvolver-se, está, hoje, condenado à pobreza, sem esperanças de autonomia, destinado a conviver com a mais impiedosa concentração de renda. É o saldo do golpe de 2014, que se institucionalizou com Temer e se consolida com o capitão. O anúncio de que dias piores virão, desafiando nosso engenho e arte.
Sobre o desarranjo doméstico pesará, ainda, aprofundando-o, o panorama internacional recessivo. O relatório World Economic Outlook, do FMI, divulgado esta semana, estima que a economia mundial sofrerá, em 2019, uma retração de 3%, a maior desde a crise de 1929. São evidentes seus efeitos sobre a economia de países como o Brasil, que renunciou à industrialização e, assim, tornou-se mais do que nunca dependente das exportações de matérias-primas, portanto ainda mais vulnerável ao jogo do mercado internacional.
Segundo relatório do Banco Mundial (The Economy in the Time of Covid-19), o Brasil enfrentará, este ano, três choques: demanda externa fraca, preços do petróleo em queda e estagnação econômica. Uma de suas consequências óbvias é o aumento do desemprego, trazendo mais angústia e fome a milhões de famílias brasileiras. O banco, porta voz do capitalismo monopolista que controla a economia do mundo, receia o aumento pobreza e da desigualdade, fatores clássicos de alimentação do descontentamento social, fantasma que o establishment tanto teme.
Some-se, agora, a tudo isso, a crise política que é em si o governo do capitão e seus monitores estrelados, e teremos a perspectiva próxima da crise institucional que quase sempre se encerra, entre nós, com a fratura da ordem democrática e a ascensão (ou aprofundamento) de governos anti-populares, pois não é preciso ser pitonisa para ver, já, o que nos aguarda no médio prazo. Vejo nele, em nossa atuação em face dele, o grande desafio das esquerdas brasileiras.
Sem, evidentemente, ignorar o aqui e agora, mas a ele não se cingindo, as forças de esquerda e democráticas, populares no seu sentido geral, devem já voltar suas atenções para esse amanhã que se desenha no horizonte. Cuidar de sua reorganização, ampliar suas bases, disputar com a direita e a extrema-direita o debate ideológico, é o preço cobrado para nossa intervenção no processo político-social. Do contrário permaneceremos, como hoje, relegados ao papel de meros assistentes do real jogo de poder, aquele que se trava no âmbito restrito da casa-grande, onde empresários, militares e os procuradores do império negociam nosso futuro. E se assim for, ou seja, se não recuperarmos as condições de intervir no processo social, só nos restará, uma vez mais, ouvir o diktat da classe dominante, o privadíssimo clube do 1% de ricos e milionários que nos governa desde sempre.
Que fazer? Organizarmo-nos para alterar a correlação de forças (que não é um determinismo, mas uma contingência), porque o mais efetivo combate ao capitão se trava, ou deverá travar-se, no plano ideológico, vale dizer, na disputa da consciência popular. Porque o bolsonarismo pode sobreviver a Bolsonaro.
Ao lado dos indicadores de rejeição ao capitão e ao seu governo, há a registrar-se um forte e resistente apoio popular a esse senhor e ao seu projeto de extrema-direita. Cumpre levar em conta a realidade para podermos alterá-la. As sondagens de opinião indicam que os apoiadores do extremista correspondem a algo entre 25% a 30% do eleitorado, o que não é nada desprezível. Trata-se de base suficiente para sustentar qualquer governo ou animar aventuras. Esse apoio, que se mostra resiliente desde as eleições, é, por sem dúvida, sua força principal, sua segurança e sua blindagem. Com ele o capitão dialoga com o mercado e os militares. Essa resiliência vai além do antipetismo da campanha de 2014, e já indica a identificação dessas massas com as teses mais atrasadas e reacionárias do receituário protofascista. Precisamos ter a humildade de reconhecer a presença desse mundo cuja existência ignorámos até 2014.
A estratégia de luta deve partir do pressuposto de que há plena identidade ideológica entre o capitão e o comando das forças armadas. O paraquedista foi formado na mesma escola dos generais de hoje, e segundo o mesmo catecismo. As diferenças não passam de pequenas nuanças de estilo, formais, secundárias e, assim, facilmente corrigíveis, em benefício do projeto comum.
O governo é dos militares. Nele não apenas têm assento, mas, principalmente, o protagonizam, na ação e na doutrina. O limitado capitão, instrumento de um projeto de poder, uma contingência, foi o cavalo encilhado de que os militares lançaram mão para cavalgar de volta ao governo. Esse projeto, portanto, não começa com Bolsonaro (e pode continuar sem ele): vem bem de trás, desde pelo menos a desestabilização do segundo mandato de Dilma Rousseff. Une-os, no governo, a velha visão de um mundo bipolar (mesmo depois do fim da guerra fria), no qual o papel do Brasil é de filiação incondicional aos projetos geopolíticos (militares e econômicos) dos EUA. É incrível, em face da realidade presente, mas assim é. O resto são suas consequências. Os homens de farda concordam (posto que do contrário ela não teria vigência) com a atual política externa, mediante a qual o Brasil renuncia à soberania, porque jamais aceitaram a política externa “altiva e ativa” do governo Lula, que, sem confrontos, propunha desenvolvimento e auto-determinação. Concordam e dão respaldo à política antinacional do “posto Ipiranga” (nela implícitas as privatizações na bacia das almas e a desnacionalização da economia), e de há muito renunciaram à defesa do Estado desenvolvimentista que em priscas eras ajudaram a construir. Na ausência da ameaça comunista, pretexto engendrado para tantas rupturas da ordem constitucional, entoam o antipetismo. Amanhã será diverso. Outro adversário interno será inventado. De permanente, porém, ficará a ferrenha defesa do statu quo, a ojeriza a qualquer sinal de emergência das massas ou de qualquer forma de uma democracia social e participativa.
Para o conjunto das ainda desarticuladas esquerdas brasileiras, que não pretendem qualquer sorte de tomada de poder, mas que, com o aval da experiência histórica, insistem na busca de alternativas que assegurem a continuidade democrática, o fundamental deve ser encontrar a tática correta de enfrentamento ao que aí está, e esta parece ser disputar o apoio perdido para a direita junto às grandes massas, desafio tanto maior quanto são ingratas as condições atuais de luta.
Ou seja, há muito o que fazer, para além de esperar que outras forças cumpram com nosso papel histórico, como esperámos, em 1964, com as consequências que chegam até nossos dias.
Perguntas que não querem calar: Quem mandou matar Marielle? Quem está escondendo Fabrício Queiroz? Onde estão os celulares do miliciano Adriano da Nóbrega, que tanto tardaram a chegar à perícia? Qual o segredo das milícias cariocas que o general Braga Neto guarda?
Roberto Amaral