Por Ailton Benedito de Sousa
As diversas Constituições, ou contratos sociais, através das quais o povo aceita, sempre de maneira precária, sentar-se à mesa como parte política e juridicamente legitimadora de um esforço coletivo para construir uma nação, dá foros de legalidade senão de sacralidade aos saques ao Tesouro Público como base de recursos para o financiamento dos projetos de modernização e reconstrução nacional. As ditaduras, as rupturas do quadro institucional reafirmam o quadro de expropriação espúria, exponenciando a a corrupção. Eis o governo bolsonaro.
A base jurídica e todo aparato teórico positivo e jurisprudencial não tem elementos para criminalizar o padrão de comportamento político das elites dos estados de herança colonial, como o Brasil. Nesse sentido, num processo de desenvolvimento econômico que jamais se conclui, os desacertos estruturais do esdrúxulo arranjo da infra-estrutura produtiva do país devem-se ao fato de o Estado, gerido por corruptos, tem a posse e o comando desses ativos. Nesse quadro, vociferam os fascistas: “Queremos PARA NÓS um estado mínimo, o estado não precisa ser dono de nada (desde que seja só nosso), não precisa ser o dono do Pré-Sal nem da Petrobrás”, nem das Universidades nem de NADA… (Mas quando se mostra o Estado norueguês, ou o Estado de Israel como titulares na infra-estrutura produtiva e dos principais ativos financeiros e econômicos, então o bolsonarista sem o menor pudor, defende o intervencionismo estatal na economia). A razão é que a sua restrição ao Estado forte tem origem racista. Não aceitam dividir o patrimônio social as raças odiadas.
“O bom imigrante europeu jamais aqui chegou em número desejado”, justificativa objetiva das elites para as políticas do embranquecimento
A população portuguesa sempre foi pequena diante da ousadia imperialista e comercial de segmentos ligados às suas classes médias ou burguesas, ousadia que desaparece depois de 1580, não tendo durado dois séculos, lembre-se. Para qualquer grupo humano, qualquer que seja o sistema produtivo adotado, o fator de produção mais valioso é o próprio ser humano (vide China hoje), coisa difícil de chegar ao entendimento luso-brasileiro…Lá e aqui, o ser humano é lixo.
Assim, indubitavelmente, um permanente afluxo de inventivos e criativos imigrantes, qualquer que fosse sua origem, portugueses ou não (ideal com mestrado e doutorado) seria indispensável ao projeto colonizador português nas Américas se…:
- a) se o governo central da colônia fosse suficientemente forte para poder integrar no território brasileiro diferentes regiões no que tange ao modo de produção – trabalho livre e trabalho escravo, já que a generalização do cativeiro contamina as formas de trabalho livre, essas formas não convivem juntas senão pela força – onde há escravo não pode haver, agricultor, cultivador, operário ou técnico, ou mesmo artista, livres; b) se o homem europeu tivesse imunidade natural às doenças tropicais; c) sePortugal estivesse à testa de fluxos de moedas, já que as formas de trabalho livre exigem “moeda”, essas dependem de intenso fluxo de trocas locais e transcontinentais, coisa que exigiria da colônia “potência naval”e “terrestre” (que o leitor aqui capte o grau de imprescindibilidade da escravidão para um país pobre como Portugal, com escassez de moedas e raquíticas instituições de defesa..ah se o Bolsonaro pudesse entender esse dado da história econômica do país que lhe deu a cadeira de presidente!..respeitaria mais o povo negro e o povo índio…). Hoje se sabe também (trabalho de historiador da UFRJ, acho) que a escravidão é a responsável pelos 8,5 milhões de quilômetros quadrados que temos, já que nenhuma das nossas regiões ou províncias, exceto a Bahia, teria condições de suprir o principal fator de produção continental – o negro escravo africano. E a Bahia e Nordeste são o Brasil-raiz.
Continuando, meu leitor, veja o choque que terá tomado em São Paulo o nosso Visconde da Cocada Preta ao procurar adaptar-se ao trabalho livre com o imigrante italiano, por exemplo. Esse queria receber todo mês seu “stipendio” em moeda sonante “forte”, convertível em Libra Esterlina, no mínimo, pois tinha que mandar “para casa” parte do que recebia. Para que isso pudesse ocorrer, o Visconde da Cocada Preta teria que converter para “Contos de Réis” (ou mesmo para dólar), maior fração do produto de suas exportações de café, ouro, prata, couro, permanentemente depositado em Libra Esterlina, na City, de Londres. Mas o Cocada Preta queria tudo, menos dar mais “grana” aos Braganças e à Igreja: “Ah, como era bom o escravo, trabalhava de graça…A gente não precisava mexer com dinheiro”.
A segunda importante conseqüência da entrada do imigrante branco é que a Coroa ou o governo da República aqui teriam que emitir mais moedas, mais “Contos de Réis ou Cruzeiros”, aumentando o lastro circulante..A estreiteza do meio circulante trava toda a economia. Ocorre que, para que a Coroa pudesse emitir mais moedas, o Visconde da Cocada Preta teria que transferir integralmente a quota referente aos impostos de exportação do café, ouro etc., sempre sonegados…Com isso ficam dadas as causas da permanente inflação e crise financeira do final do século XIX até os anos 1930, inclusive o famoso “Encilhamento”.
Os povos europeus, sedentos ou “siderados” pelo eterno e geral reconhecimento de sua hegemonia em todos os papéis sociais, alardeiam através de filmes e novelas de TV, papel extraordinário dos emigrantes italianos como trabalhadores nas fazendas de café do Brasil. Mentira…De modo geral, aqui chegados iam para as cidades, onde exerciam os mais extravagantes métiers, de proprietárixs e gerentes de bordel a funileiros, marceneiros, agiotas , comerciantes (caixeiros viajantes), e outros afazeres antes reservados aos nativos, inclusive aos negros. Aliás, os membros do antigo PCB tinham pelos imigrantes europeus gratidão eterna, já que nos “trouxeram os rudimentos da industrialização”, chuveiros ônix etc. etc. Mentira também.
Nada obstante, continuemos, com a primeira República, principalmente, aceleram-se as ações de indução à entrada de emigrantes como necessidade insuplantável, dada a existência de uma disjuntiva racista: “construir país pra negro?, nem morto!”. A Abolição ocorrera em 1888 como pena capital ao setor latifundiário exportador, que um ano depois responde com o golpe mortal à Monarquia: proclamação de uma República esdrúxula, sem cidadão!,,,, salada do que se tinha à mão, à moda da Realpolitik, coalizão entre latifundiários e minúsculos núcleos de militares positivistas. Do ponto de vista da ação política das massas, o que de fato ocorre é que a massa escrava e o povo em geral saíam do jugo tricentenário graças ao apoio do poder imperial, a grande Princesa Isabel (podem me execrar); as grandes massas, assim, diretamente passando à condição de “aliados naturais da Coroa”, vinculados pelo sangue e pelo coração à Família Imperial (leiam cronistas da época, Oswaldo Eurico, por exemplo).
O governo militar entrante permitiria tudo, menos começar seu jogo com a maior torcida do mundo contra si. E isso é fato em nossa história republicana: se governos militares necessitam de inimigos imediatos, os inimigos imediatos dos governos da recém-imposta República militarista foram os negros…Os Reinados deram ambiência a que se formasse várias famílias negras riquíssimas…O famoso Barão de Guaraciaba, sendo um entre vários nomes… A chamada República veio para acabar com essa negrada fora do seu lugar. A começar pela exterminação a fio de sabre da, ou das, “Guardas Negras” – grupos de apoio, em várias províncias, às ações de massa favoráveis à Abolição…Mandava-se preso para a floresta amazônica a cumprir pena em prisão inexistente…Isso é verdade…Mas vem coisa pior: Coisa de 200 mil miseráveis, logo, a base do nosso povo “ariano” (riam), dizimados a canhão, ao pé da letra, a canhão. Falo de Canudos.
Esses fatos ou, para muitos, visões que apresento, estão abertos à pesquisa de quem gosta de criticar a historiografia oficial. O mais constrangedor é ver hoje e sempre aquilo que se chama Movimento Negro no Brasil, odiar a Família Imperial e exaltar (até mesmo pela oposição dos termos) a República…Lamentável.
Sabido que no Brasil a cata ao emigrante, por razões óbvias, branco, foi levada à prática tanto pelos Reinados quanto pelas Províncias, ou tanto pela União quanto pelos Estados, a sistematização dessas atividades, em seu bojo, constitui o que aqui chamamos de políticas do embranquecimento: num quadro de concorrência com os Estados Unidos, Austrália e Argentina, significando atrair o emigrante a partir da compensação de vantagens que eles pudessem naturalmente ter daqueles países. As ofertas brasileiras foram generosas e o controle das contrapartidas nenhum. “Queremos é a cor branca, nada mais que a cor branca”.
Em certo sentido, caberia crítica e revolta por parte dos imigrantes assim logrados. Esse homem europeu, geralmente em situação de extrema fragilidade – guerras, desagregação imperial (fim do império turco e dos Habsburgos), é tentado a morder as “iscas” de propalado bem-estar, ofertadas por um país de estruturas arcaicas, em transição do regime de trabalho escravo para o livre. Reino e Províncias ou União e Estados federados porfiam, então, por tornar a “isca” cada vez mais suculenta: passagem, estadia, sementes, empréstimos, implementos, direitos preferenciais, remessa de divisas, dupla cidadania e duploforo: (vários fazendeiros em São Paulo foram condenados por tribunais italianos por descumprimento de contratos). Há municípios e houve muito mais de absoluta predominância estrangeira…tudo bem, mas sem contrapartida nenhuma em termos de respeito à nacionalidade brasileira, vide os últimos acontecimentos políticos, hegemonizados pelos louros do Sul. E o pior, que caracteriza crime contra a/as Constituição/ões: sem dar aos nacionais nas mesmas condições de fragilidade tratamento igual. Isso caracteriza racismo estrutural.
Quanto à vinda espontânea de imigrantes vinculados a nossos ciclos econômicos, o da mineração será o que, independentemente de política estatal indutora, exercerá maior atração sobre o europeu. E a esses imigrantes o Brasil deve muito… Amaram a terra e fincaram raiz. Temos famílias judaicas quatro vezes centenárias no Nordeste. As quais não devem ter apoiado o vergonhoso papel lesa-pátria da Federação Israelita no Rio.
A ausência sistemática de estudos “anti-historiográficos”, de discussões, de crítica, de contestação, de consultas a consulados, de repúdio ou consenso às políticas do embranquecimento, caracteriza essa linha governamental de manipulação psíquica do emigrante europeu e da sociedade que o recebe, como consciente processo de implementação de uma “guerra de limpeza étnica”, cuja sigla seria “sai o preto, entra o branco”.
Logo, à falta de urgente reversão desse processo, ainda vigente, constituímos “experiência nacional inviável”, não apenas antidemocrática, mas anti-humana, para-genocida, espaço para o confronto aberto e/ou a submissão extrema de homens por lei, isto é, no campo da aplicação da lei, tornados e mantidos desiguais frente ao contexto de sua existência, frente ao ambiente político, econômico, social, e, principalmente, frente ao “mundo simbólico”, o inefável mundo da expansão mental do Homo Sapiens, de que os povos melaninados são os Demiurgos no Planeta. Para provar minhas proposições, vide nossas favelas, vide as estatísticas sobre nossa população carcerária, especialmente o assassinato de jovens negros, vide as propostas políticas que elegeram o governo atual. Repito, em tempo, diante de qualquer tribunal, provam a veracidade de minhas proposições, o significado das palavras de ordem que levaram à escolha unânime do atual presidente da República.
Nosso contexto em termos de imaginário popular
Em termos de imaginário ancestral, as populações de origem africana e índia não têm a Terra, o Planeta, o solo da aldeia, o terreno, ou a “terra no que tange a extensões produtivas”, como “coisa” sujeita a compra e venda, mais precisamente, a “uso, usufruto e abuso”. Acho que não preciso sustentar essas afirmações a partir de fontes “fidedignas”, ou seja, antropólogos europeus…É compreensão de domínio público. Para essas culturas, o ser humano pertence à Terra, mas a Terra não pertence ao ser humano... Não é objeto de transação por via da moeda, mas de pactos sagrados ou sacramentados.
Por mais extravagante que o argumento acima possa parecer para o leigo, o desprezo de parte dos imigrantes europeus por nossa singularidade étnico-cultural, pode encontrar explicação aí. O europeu, tendo por base sua compreensão particularíssima do que seja “viver”, “estar no mundo”, “consumir”, chama os índios e os quilombolas de “preguiçosos”, porque estes se recusam a ceder as terras que ocupam às “monoculturas de exportação”, se recusam a “pedir empréstimo a bancos”, “pagar faturas” etc. Não entendem que a compreensão ancestral africana e índia sobre a Terra e o viver nela, responde a exigências do Planeta, visto como sagrado… São respostas em harmonia com toda a Biosfera, com os ciclos de todos os elementos essenciais, o da água, do oxigênio, do carbono, para não dizer o dos fungos, dos insetos, o de todos os animais…
Racismo é aquisição cultural. Há Culturas radicalmente racistas. Cumpre, em cada segmento cultural da Humanidade, iluminar a fonte dessa dádiva maldita, dessa aversão reptiliana pelo Outro e por tudo que lhe possa socorrer…ódio pela educação pública, pela aposentadoria, pela assistência à saúde, pelo Estado como indutor de políticas afirmativas, esse ódio aos índios e incompreensão quanto à sua singularidade cultural ou existencial (índio preguiçoso, ocupante predador das riquezas nacionais, um absurdo), ódio extensivo aos negros em geral e aos quilombolas, em particular.
Como reaprender o que se pensou sabido com respeito ao Brasil
No desenvolvimento desse artigo, ousamos testar metodologia nova no que tange à percepção de uma realidade social por parte de um observador que dela faça parte. Tanto para brancos, quanto para negros, é difícil ver a realidade que nos dá existência. Assim, da mesma maneira que ao vidente escapa a visão de seus próprios olhos – afirmação a que o físico seguidor da física quântica ajuntaria: “o mesmo sendo válido para a luz, já que como realidade ondulatória, ela também se furta à visão do observador” – ao analista de sua própria cultura e sociedade naturalmente escapará imensa multiplicidade de fatos, paisagens, figuras, processos e suas articulações que, como o interior de nosso aparelho visual, fica invisível àquele que vê.
Tenta-se contornar o obstáculo, então, deslocando-se a si mesmo o observador no espaço e no tempo, “criando espelhos imaginários”, à procura de diferentes pontos de visão. Assim, experimentemos olhar alguns aspectos da formação social brasileira a partir de pontos de vista inusitados, por exemplo, a partir de pontos de vista opostos aos que nos são usualmente mostrados: saiamos da zona da obediência, do conforto, do politicamente correto.
O período da escravidão oficial de índios e negros – 1500 – 1888, com recentes e permanentes recidivas
A escravidão no território do que vem a ser o Brasil conjumina-se com as experiências há séculos desenvolvidas em Portugal, no próprio território e, especialmente, nas ilhas atlânticas norte-africanas, São Tomé, Cabo Verde etc. Entre nós, essas experiências têm sua institucionalização iniciada com o advento das capitanias hereditárias e governo-geral – 1532/1540.
Embora sem senzalas e sem agenda de trabalho organizada, os índios foram escravizados ou como tais vendidos desde os primeiros contatos. Fora dessa compreensão ficam sem sentido a fase de exportação de madeira e recursos florestais ditos exóticos, os ataques e destruição de aldeamentos jesuítas e todo o ciclo de crimes contra a humanidade perpetrado por facínoras, ainda hoje homenageados como heróis nacionais, os bandeirantes. São facínoras. Facínoras. Facínoras.
A escravidão colonial, isto é, aquela que realiza todas as funções inerentes ao “enriquecimento e empoderamento” de um grupo exógeno em terra pertencente a outros, explorando os recursos da terra e naturalmente escravizando os nativos e não-nativos, difere de escravidão quando exercida na própria metrópole, na cidade ou país daquele que escraviza, quer esse se sirva de cativos autóctones, quer de importados.
Aqui, a escravidão apenas produz a subsistência e enriquecimento dessa metrópole, logo seus sistemas de segurança podem ser mais flexíveis, imensos setores da economia metropolitana devem ser necessariamente protegidos, ou seja, formas de trabalho livre e dignificante têm que coexistir com o cativeiro, caso contrário poderão romper-se todos os vínculos básicos da organização social (o total repúdio ao trabalho por parte de todos os segmentos não escravizados ou escravizáveis), caso de Roma decadente, cuja resposta é a dispersão revolucionária do Cristianismo. O trabalhador livre deve entender a dinâmica do trabalho escravo, até mesmo para dele se proteger.
Acolá, caso do Haiti e Brasil como exemplos emblemáticos, já não se coloca a questão da possibilidade de contaminação do tecido social, já que aqui não há tecido social saudável, toda a experiência social é uma enorme e fétida chaga , onde pululam formas de sociabilidade putrefatas, o trabalho, o ato de estar no mundo como ser produtivo, é todo ele tornado indigno ao homem livre, seja este pobre ou rico. Tudo, das formas de trabalho sublimadas chamadas “artes”, até mesmo, o contato amoroso, visando à reprodução ou não, frente ao contexto escravocrata tudo adquire conotação indigna ou diabolizante. No que se refere à reprodução, ao amor, quer no Brasil, quer no Haiti, o colonizador, quando abertamente racista, hesita em trazer sua mulher, constituir família. No Brasil, muita gente, principalmente em São Paulo e Paraná, alardeia com “orgulho” descender de “índio”…Mentira. No Brasil ninguém, ninguém senão os negros chamados cafusos, descende de índios. Esse pessoal de São Paulo e Paraná descende de ÍNDIA, índia, DNA hipocondrial. O invasor veio vidrado e siderado por vulva, vulva da mulher tropical, limpa, cheirando à terra e a mato silvestre. Isso é verdade.
Necessariamente, as narrativas religiosas trazidas pelo invasor têm que ser repudiadas frente à realidade haitiana e brasileira (para nós, valendo o “Não há pecado abaixo do Equador”). Em contextos assim marcados, formas de convivência relacionadas ao apartheid, imperceptíveis aos olhos dos próprios agentes, têm origem espontânea (inexistência de locais públicos para as necessidades fisiológicas, caso do Rio de Janeiro, onde até os anos 90 jamais houve e até hoje se tem como experiência tímida, 2019). Por outro lado, não pode haver contato entre as populações diretamente submetidas ao jugo, no nosso caso, os africanos, e os nativos, índios submetidos a processos de extermínio direto. Como seriam os Caraíbas, os Aruaques, os Aimorés?
Insistimos quanto à necessidade de distinção entre escravidão “em casa” e escravidão “lá embaixo”, nas colônias. A propósito, cumpre deitar análises às afirmações de que a escravidão foi universal. O mesmo para o tal complexo de Édito, de Freud. Poucas sociedades terão tido o trabalho a priori como coisa indigna, como castigo, algo a ser imposto a um inimigo, dele poupado-se o amigo. Poucas sociedades, pelo menos sob o matriarcado, terão dado destaque ao pai carnal, presumivelmente desconhecido, uma vez que para a mulher, se ela estivesse na idade de intercurso livre, este seria qualquer um, correlacionado ao pai socialmente reconhecido – o irmão mais velho da matriarca, o irmão mais velho da mãe carnal…Cumpre, por fim, acabar com a ridícula pretensão de universalidade do caucasóide, de sua cultura, de sua visão de mundo. É fonte de RACISMO, É RACISMO PURO…
Retornando, o mais contundente aspecto da concomitância do par escravidão -colonização é a extensão generalizada da degradação do trabalho, a envolver todas as dimensões da sociedade, e, agravando a perniciosidade desse aspecto, a cegueira geral quanto à abrangência de sua dispersão, vale dizer, a sua naturalização. O viver “em escravidão” e o viver “a escravidão” tornam-se “naturais” na medida em que ela animaliza os seres humanos, tanto os senhores, quanto os escravos.
Pausa para contemplação de alguns quadros e gravuras de Debret
Restringindo-nos aos quadros e gravuras de Debret que, dada à intensa divulgação, constituem material adequado à nossa explanação, vejamos alguns aspectos neles salientes, já destacados alhures. Em síntese, nessas séries o negro “ou é contraste da paisagem natural, rica, bela, exuberante, ou aquele ponto de valor negativo cuja função é destacar a positividade do entorno humano contrastante”.
À mesa de refeições de família de classe média, os serviçais negros, as crianças ao chão disputando migalhas, mas com um pormenor – suas proporções são de propósito alteradas, cabeça, barriga, pernas e braços, com que o observador confirma o que a cultura já lhe havia ensinado – criança escrava, não é humana, tem que ser expulsa do universo pictórico normalizado próprio à criança livre, humana…Aí não pode haver confusão. O observador tem que “ver” e aceitar a criança escrava negra como bicho.
Outra série de quadros ou gravuras mostra cenas urbanas, os carregadores, cadeiras ou redes presas a hastes de madeira, ou mesmo diretamente aos ombros de negros em poses indolentes. Os meninos barrigudos de cabaça pequena estão lá. As cenas são moralmente aberrantes e, ousamos dizer, singularmente brasileiras, daí que não as vejamos jamais como aberrantes. A essa época, as aristocracias caucasóides hegemônicas no mundo, já tinham o cavalo como meio de transporte heróico, digno, nobre, mesmo para a mulher, que, quando nobre, não era mais mulher, era nobre. Não conheço nenhum quadro de eqüestres damas oriundas da colônia brasileira ou dos reinados brasileiros. Em Roma, geralmente, quando a mulher, seminua, está numa liteira, implícito fica que os negros que a carregam são seus amantes. Aqui nada fica implícito, senão a preguiça, a idiotia de escravos, senhores ou senhoras, todos boçais, empregando relíquias às avessas, a liteira, numa sociedade sem propósitos. Estamos na época da independência, já que o autor é membro da Missão Francesa, ação “civilizatória às avessas, que. sem atentar para o número de “desempregados” que irá criar, vem-nos ensinar o neoclassicismo napoleônico, corrigindo-nos da “racional e patriótica estupidez” de termos até então produzido artistas como Aleijadinho e linguagens estéticas como o barroco brasileiro.
CONCLUSÃO PROVISÓRIA: À retaguarda das telas que pretendem descrever nossa realidade, tentemos “ver” e construir nossa própria imagem visando à elaboração de um Projeto Nacional
Assim, anteriormente a qualquer menção a esse pretendido Projeto Nacional, o primeiro item a discutir, fechando consenso, é o referente ao patrimônio tanto natural, quanto cultural, simbólico: – as riquezas do Planeta e da Humanidade, que, observando a Maat, o equilíbrio, cumpre consumir e recriar, preservando a biodiversidade, o solo, o subsolo, mares, rios e atmosfera sobre a massa continental e marítima (aceito que as interações energéticas na atmosfera são elementos da biosfera). Eis questões a propor e responder (questões são formuladas como estímulo à reflexão do leitor, donde serem questões provisórias).
- Descobre-se terra há milênios já habitada por povos de diferentes origens, de diferentes regiões geográficas e culturais do Planeta, em princípio, todos melaninados? Como eliminar o tal “defeito de cor” no Brasil?
- Há Humanidade desde quando? Desde o absurdo Ano Zero? E que fazer com as Humanidades Fundamentais, aqui, na África, no Planeta?
- De quem é, para quem é o Brasil? Se Brasil significa um patrimônio que vem sendo criado/recriado há exatamente 519 anos (segundo a discutível escala cronológica imposta pela cultura hegemônica), quem são os “donos” e herdeiros desse patrimônio? Cabem esses termos?
- Fora do estrito campo do direito positivo de um povo, elaborado para viger entre seus membros, pode um Estado aplicar os princípios do direito romano – usus, fructus e abusus em relação ao território de um outro país, região, etnia ou segmento social? A União pode incentivar a invasão das terras indígenas? Onde está a OAB, STF?
- O culto da raça, generalizadíssimo entre muitos, base de estruturação das sociedades européias, árabes, judaica (ou não?) impõe a “presença dessa respectiva raça na linha do tempo” , isto é, na escala cronológica inerente a esse grupo racializado, certo? Admitida a proposição, tudo pode ocorrer à raça dita hegemônica, menos estar ela ausente da “sua história”, certo? A partir daí, pergunta-se: Pode ter credibilidade a História do vencedor? (As respostas podem nos ajudar a compreender a chamada história da civilização greco-romana-judaico-cristã).
- Cabe levantar sérias restrições a uma dita “História Universal”, onde os caucasóides aparecem como inventores de tudo, especificamente da Filosofia, das Matemáticas, das Ciências em geral, da Pólvora, dos iipos gráficos, do Arco, da Arquitetura, dos Palitos, entre outros?
- Tendo em vista a importância do conceito raça, implícita fica a presença (e transferência geração após geração) da propriedade, da base patrimonial (ou a ausência dessa base patrimonial ) no HOJE dos descendentes de uma raça, mormente da raça hegemônica, certo? Aceita a proposição, pode-se lutar por igualdade, em princípio no interior de sociedades racistas, mesmo que se digam democráticas?
- Deve ser aceito que a transferência da propriedade deva ter limites à medida que a riqueza material, sob o regime da propriedade privada, tende a aumentar no mundo. Se não se limita, como hoje, teremos a concentração de imensos ativos bioenergéticos ou simbólicos (conglomerados industriais, bancos, solo e subsolo de milhões de hectares, florestas, oceanos, ilhas, mares, o conhecimento, o saber, mesmo o saber não ainda cogitado, enfim o Planeta) tudo constituindo propriedade legitimada, como no momento em que se vive, em que 80 famílias detêm a propriedade de 80 por cento da riqueza planetária, concorda?
- Fica então LEGITIMADA A LUTA POR UM MUNDO COM MAIS IGUALDADE, recuperando sentido entes da esfera simbólica como Justiça, Socialismo, Democracia, Humanidade?
- Num mundo capitalista em colapso catastrófico, tem sentido, numa experiência como a brasileira, falar-se nas componentes da propriedade segundo o direito romano? Pode-se “usar e abusar” de um patrimônio como a Vale do Rio Doce ou a Petrobrás (vender, dispor de qualquer maneira, mesmo destruir)?
- A partir de quais critérios deverão se qualificar os donos e herdeiros dos bens de uma nação, se tais donos e herdeiros puderem existir? Como justificar e legitimar pretensões de posse ou propriedade do território brasileiro?
- Como estabelecer consenso quanto a esses critérios?
- Como respeitar (re-spectare = olhar duas vezes) a natureza do vínculo com o Planeta, própria às populações autóctones e/ou africanas, diante dos vínculos/contratos trazidos pelo dito descobridor ou invasor?
- Incorrem elas, essas populações e seus descendentes, em crime sem remissão por não admitirem os três níveis de posse comum ao direito romano: – usus, fructus e abusus – (explorar, dispor dos frutos, vender ou destruir)?
- Pode o invasor, sua etnia, os entes culturais que sem provas diz ter criado, descoberto ou inventado, impor-se às demais etnias e culturas como o Homem Universal, impondo sua Arte como Universal, sua Religião como Universal, sua Moeda como Universal?
- O uti possidetis juris deve ser aplicado HOJE aos índios e aos quilombolas, como parece sugerir a Constituição de 1988?
- Não aplicá-lo, considerada a ausência junto ao invasor de contrato de pagamento pela terra ocupada, igualmente a ausência de pacto ou armistício entre esse mesmo invasor e os invadidos, ou seja, frente à falta de legitimidade jurídica dos ocupantes adventícios, não aplicá-lo, repitamos, constituiria crime contra a humanidade?
- Ou, pelo menos, deslegitimaria, segundo uma argüida ordem jurídica internacional, qualquer pretensão de propriedade do território brasileiros por parte dos segmentos caucasianos?
- Ou, ainda, o uti possidetis vale para os caucasianos, com exclusão dos demais?
- Continuando: Parece justo que o critério de pertença ou pertinência (de um segmento social a uma “nação” baseada em contrato social, ou seja, numa Constituição), a uma herança coletiva, a um patrimônio amealhado coletivamente, deva amparar-se na “quota de trabalho” e de “sangue” que os ancestrais desse grupo tenham dado à formação desse patrimônio, não? É o caso brasileiro.
- Então, diante do quadro de distribuição da riqueza no Brasil, hoje, é válido perguntar a descendentes das diferentes etnias emigradas recentemente, “que trabalho produtivo vocês e seus ancestrais aqui realizaram, que sangue derramaram, de modo que hoje se legitime, se justifique, a situação patrimonial do seu grupo, frente à situação de absoluta miséria dos nativos e habitantes seculares ?”
- Que nação é essa? Como construir “a nação de todos” quando o Estado através de seus governantes prega o racismo?