Não é recomendável, pois a nada de relevante nos leva, reduzir ao processo eleitoral de 2018, stricto sensu, a análise da tragédia política na qual padecemos. Trata-se de quadra grave em si, e ainda mais grave porque anunciadora de riscos ainda mais temíveis. Alguns, aliás, já podem ser vistos no horizonte próximo, se nos for dado ir às raízes do processo social.
Retomo tese aqui aflorada mais de uma vez.
Para entender estes tempos é de bom conselho debruçar-se sobre as transformações que – insondáveis pelos sismógrafos da política – estão, como causa e efeito, na base do fenômeno político que ensejou o sucesso eleitoral do capitão, cuja vida pregressa e cuja campanha expuseram com clareza estonteante suas (e de sua trupe) predileções protofascistas, tidas e havidas, inclusive por sondagens de opinião, como incompatíveis com o sentimento nacional. Sentimento este festejado como refratário ao pensamento e às ações dos extremismos ideológicos, não obstante o autoritarismo larvar de nossa sociedade, reconhecido, em verso e prosa por quantos estudaram nossa formação de Estado, país, nação e povo, assim mesmo, nesta deplorável sequência.
Nossa sociedade, embora filha da escravidão e do genocídio indígena (persistente), sempre foi vista como avessa ao ideário protofascista, um ideário bruto demais para a tradição cultural brasileira, pois, na medida em que somos violentos, prezaríamos o convívio e a leveza, postos em questão.
Ver-se-á, pois, da análise proposta, isto é, se não ficarmos na epiderme do processo político onde estanca o jornalismo, que o pronunciamento majoritariamente ditado pelas urnas não é, ipso facto, ‘um ponto fora da curva’ de nossa História, mas o dedo de fora de um processo social-ideológico (o violento câmbio de valores) trabalhado em silêncio, e, assim – como o cupim que só é notado quando a madeira já foi devorada -, imperceptível pelas antenas e estetoscópios dos cientistas políticos. Em palavras simples: o estrondo só é ouvido quando a casa cai.
Entre o céu e a terra há algo além dos aviões de carreira, nos advertia o sábio Barão de Itararé. A impossibilidade, até aqui, de identificar esse elemento impalpável, novo em nossas cogitações corriqueiras, é que está dificultando as análises (o novo sempre surpreende), impondo ora perplexidades, ora inércia, aquele instante de atordoamento, que leva o boxeador a se recuperar de um assalto implacável. Precisamos sair do corner e temos força para isso; do contrário, a luta estará perdida. É possível ver, porém, nesta verdadeira movimentação tectônica de valores do que se poderia chamar de ‘alma nacional’, a transição de um aparente progressismo moderado (aquele manifestado desde a luta contra a ditadura) para uma visão reacionária e intolerante ao convívio com a diferença política e comportamental, uma clivagem social que impõe a divisão radical entre o eu e o outro, entre o bem (que o eu representa) e o mal que está no outro, impedindo o diálogo entre contrários ou simplesmente diferentes, transformando divergentes em adversários e os adversários em inimigos a serem eliminados.
Isto que sugere uma psicopatologia social, não é, consabidamente, fenômeno surgido de repente, sem mais nem menos, assim como do nada, danação dos deuses, fruto de geração espontânea, caído dos céus como a chuva. Ao contrário, foi, esse fenômeno, durante anos e anos, alimentado por pertinaz intoxicação ideológica levada a cabo por inumeráveis fatores, cabendo distinguir, de logo, os meios de comunicação de massas, nomeadamente o rádio e a televisão, os púlpitos de todas as profissões religiosas, e a colonização cultural, motor da alienação.
Esta clivagem, imposta de fora para dentro da sociedade, está na essência dos procedimentos político-repressivos de todos os autoritarismos, de que, como sempre, é exemplar o hitlerismo, com o qual, evidentemente, não estou confundindo o que se identifica como ‘bolsonarismo’, mas não nos esqueçamos do ‘Ame-o ou deixe-o’ da ditadura militar passada.
O ‘Brasil acima de tudo e deus acima de todos’ (que conquistou parcelas significativas de nossa população), a escola sem partido e outros slogans da mesma família, como o antiglobalismo e o anticlimatismo são versões tupiniquins de um mesmo fenômeno que, parece, não está adstrito a nós, pois caminha, como a lama de Brumadinho, destruindo a democracia por onde passa, demolindo as barragens da resistência progressista, deixando atrás de si a trilha que leva aos autoritarismos de todo o gênero.
Esses valores, no Brasil, foram trabalhados, lá atrás, pelo clero católico reacionário (não passou sem consequências o reinado de João Paulo II, nem foi um fato trivial a morte da teologia da libertação), presentemente levado ao extremo por seitas neopentecostais primitivas, e excitados pela campanha do capitão vitorioso que se tornou representante e símbolo de uma nova ordem.
Esses ‘valores’ são acicatados pelo núcleo ideológico do governo que mais se expressa nos projetos coerentes e lúcidos – não nos enganemos – do combate à inteligência, no que se esmeram os ministros da Educação e das Relações Exteriores, perversões não muito distantes do maniqueísmo militar. Este – de novo a clivagem – reduz o mundo a um confronto entre Ocidente (leia EUA) e Oriente (nomeadamente China, Rússia e Irã) de que seríamos cativos, necessária e inevitavelmente, por determinismo histórico-geográfico ou fatalismo (ou decisão dos deuses do Olimpo inescrutável?) e subalternidade ideológica.
A proposta é esta: não tomar a aparência como a realidade. Aí então veremos que o ditado das urnas (visto em todos os seus aspectos e em toda a sua extensão) não se resume numa simples e usual troca de governos ou governantes (sai FHC entra Lula, sai Temer entra o capitão), pois significa, como fato objetivo, a instalação de uma nova ordem de poder (autoritária, é preciso sempre lembrar), que costumo identificar como ‘novo regime’, mantida, até aqui, a ordem constitucional encontrada, todavia passível de alterações substantivas, algumas já em curso, como as que abrem caminho para a reforma da previdência.
A continuidade desse novo ‘regime’, com o capitão ou com outro coadjuvante, dependerá, decisivamente, da continuidade ou superação daquele processo que o ensejou.
Nesta nova ordem, o governo bolsonaro é um fator, ainda significativo, mas que não encerra a história toda.
Esta – consideradas as contingências internacionais – se conta mais e se decide fundamentalmente na caserna, que não é fonte única do poder, mas seu centro fundador e – por quanto tempo? – a força que sustenta o governo, assegurando ao país um mínimo de consequência em meio à inconsequência do capitão e da súcia que de fato comanda seus passos e agrava seus desacertos – dentre o mais recente, o de abandonar o decoro a que está obrigado e postar um vídeo escatológico em rede social, visando enxovalhar a maior festa popular do país.
O fato a considerar é que esta nova ordem foi alçada ao poder na crista de um movimento popular que transitou do silêncio para as manifestações de rua e destas para o pronunciamento eleitoral.
É disto que se trata, requerendo nossa reflexão, pelo fato em si, e pelo fato, redundante, de não haver sido percebido pelos analistas, à direita e à esquerda, derrotadas ambas por uma extrema-direita superlativamente atrasada, sem nenhum compromisso com direitos humanos, conquistas sociais ou democracia.
O tema, porém, não se esgota em poucas linhas nem muito menos se restringe aos poucos exemplos dados, ainda insuficientes para explicar as modificações do consciente coletivo e as fontes dessas modificações, porque não basta levar em consideração aquelas forças reacionárias que sempre laboraram no atraso, como o grande capital, nacional e internacional e suas vinculações com a geopolítica dos EUA, a expressões de uma economia exportadora dependente do mercado internacional, o monopólio ideológico dos meios de comunicação de massa, à frente de todos os meios eletrônicos, e, por fim, e jamais esgotando a listagem, a manipulação das redes sociais, só agora ‘descoberta’ pelos analistas que procuram explicar um fenômeno para o qual não têm explicação, fenômenos, métodos e instrumentos que estiveram presente no processo-social-eleitoral brasileiro recente.
O estadista e a vingança dos anões
Desta feita, o ridículo não chegou ao ponto de o presidente do Supremo conceder não requerido habeas corpus para que o morto fosse ao encontro do irmão proibido de vela-lo. Ao preso, como prova de bom-mocismo, foi concedida a proteção do direito constitucional de enterrar o neto, mas lhe foi negado o direito de falar, de cumprimentar e ser cumprimentado, cercado por policiais armados dos pés à cabeça como se caminhassem para uma guerra (de que morrem de medo) portando fuzis-metralhadoras em um simples velório de pouco mais de cem pessoas, que choravam a morte de uma criança de sete anos. Um desses policiais – até outro dia guarda-costas do capitão-presidente, trazia no peito os seguintes dizeres: “Miami Police – S.W.A.T”. Eis o retrato da PF que hoje temos. O delegado-chefe da brigada, de preto e óculos escuros já no anoitecer, reclamou do preso porque este fez um aceno de agradecimento aos amigos, que, não podendo abraça-lo e com ele chorar, o cumprimentavam de longe.
Mensagem a Lula
“Lula, querido amigo. Em momento como este não há consolo possível; nada a dizer ou fazer, senão viver a dor profundamente. Drummond, diante da morte de sua Julieta, bradava que o mundo estava errado quando o pai, ferindo as regras da natureza humana, levava o filho à cova. E o que dizer quando o avô sobrevive ao neto? Seus inimigos e os deuses estão lhe tomando tudo de mais precioso: a liberdade, a mulher, o irmão, o neto. O que dizer senão que confiamos que você superará todas as intempéries, de cabeça erguida como agora, porque isto é uma necessidade e a História é justa? Nos momentos de abatimento e tristeza lembre-se de que você é a esperança do povo pobre e triste de nosso país, a estrela que não se apagará, porque não se encarcera nem se mata de dor uma ideia. Continue forte, continue bravo!
Estendo-lhe a mão para um abraço e quero abraçá-lo com toda a força, para que nossos velhos corações possam bater no mesmo ritmo. O abraço é meu, de meus filhos e de meu neto”.
Roberto Amaral, Susana, Pedro, Helena e Mario”.