A senhora Madeleine Albright, ex-Secretária de Estado dos EUA no governo Bill Clinton, está nas estantes das ainda sobreviventes livrarias brasileiras com o incensado Fascismo, um alerta, livro no qual, em momento que não poderia ser o mais oportuno, alerta os parvos, daqui e d’além-mar, para a onda totalitária que, vindo de onde sempre nasce, da Europa desenvolvida, chega até nós e ameaça consolidar-se.
A advertência quanto aos riscos de a humanidade reencontrar-se com a barbárie parece fora de sentido para os muitos que, na academia e no jornalismo, desdenham do significado do processo social visível entre nós desde 2012, e ainda não tiveram olhos para ver as raízes do processo eleitoral recém-findo e assim não alcançam o significo do regime em fase de implantação. Dessa mesma miopia sofriam, e essa deficiência lhes cobrou alto preço, italianos e alemães que não souberam ver o que representavam as ascensões de Mussolini e Hitler. Foi preciso que a peçonha os alcançasse para que conhecessem seu veneno.
Não pode ser considerado fenômeno irrelevante a emergência contemporânea de governos de extrema-direita e protofascistas na Polônia e na Hungria, de governos de direita na Itália e na França, do fortalecimento da direita em Israel e na Alemanha, onde a social-democracia parece viver seus últimos suspiros.
Não é irrelevante que as democracias sul-americanas tenham sucumbido sob governos de direita e extrema-direita, na Argentina, no Brasil, no Paraguai, na Colômbia, no Chile e no Equador.
E deve ser preocupante para os amantes da paz e do bom senso o império norte-americano regido por Donald Trump.
A História é a mãe de todas as ciências.
Sabe-se que nos idos dos anos 20 do século passado os sociais-democratas viram no fascismo o movimento que esmagaria a ascensão comunista, deixando abertas para eles as portas da conquista do poder. Não haveria, portanto, razões para temê-lo nem para combatê-lo. Nos anos 30, na Alemanha, os comunistas, similarmente, desdenharam da ameaça totalitária, e, elegendo como inimiga a social-democracia, apostaram na sua destruição pelo nazismo. Era, também para eles, a senda para um poder que inexoravelmente lhes cairia nos braços. Não haveria, portanto, razões para temê-lo nem para combatê-lo.
Nos EUA e na Europa, nos anos 30, e mesmo após as primeiras agressões militares, não eram poucos os que negavam a possibilidade de uma Segunda Guerra Mundial.
Não é este o espectro que nos ronda, até porque “toda era tem o seu próprio fascismo”, como nos lembra Primo Levi, citado por Albright. Mas não faz mal pormos as barbas de molho.
Professora de Diplomacia na Universidade de Georgetown, Albright conhece como poucos o tema. No já distante, mas inesquecível, 15 de março de 1939, a então adolescente assistiu às tropas de Hitler assaltarem e dominarem seu país, a Tchecoslováquia. Era seu primeiro contato com o totalitarismo, com o qual conviveria por muitas e muitas décadas.
Após enfrentar e combater o nazi-fascismo em todas as frentes nos campos da Segunda Guerra Mundial – e assim consolidando a imagem de paladino da liberdade – os EUA de Albright (e com sua eficiente colaboração como Secretária de Estado), findo o conflito e estabelecido o confronto com a URSS, tornar-se-iam um protetor de tiranias e tiranos, e vilão de tantos e incontáveis projetos de democracia e libertação nacional, em todo o mundo, inclusive em nosso país.
Eram, porém, os tempos da Guerra Fria, quando, na visão da ex-chanceler, os escrúpulos morais haviam saído de férias.
Referindo-se àquele terrível transe de nossa história recente, Albright nos diz que, então, “não havia inocentes”. Aduz: “Ambos os lados (EUA e URSS) buscavam aliados em cada região, e nenhum tinha muitos escrúpulos quanto aos meios utilizados para dar apoio a seus favoritos”.
Mas, nada obstante empregarem os mesmos métodos e cometerem os mesmos crimes, os dois lados não eram igualmente monstruosos nem igualmente criminosos, pois um deles praticava o mal em nome do bem: “A diferença crucial é que o Ocidente apoiava a causa da democracia sempre que podia enquanto os comunistas a condenavam como um truque burguês”.
Nesse discurso encontram-se uma mistificação e uma mentira histórica. No primeiro caso, Albright vem nos dizer que os fins justificam os meios, ou, pelo inverso, que os piores dos meios se justificam se eles forem instrumento de uma boa causa. A defesa da democracia, por exemplo, seria uma boa causa, e assim, justificadora de todos os crimes em seu nome cometidos pelos EUA. A defesa de processos democráticos, porém, independentemente dos meios, transformava-se em fim imoral, se beneficiasse os interesses da URSS.
Nessa lógica, a necessidade de pôr fim à “ameaça comunista” justificava, moralmente, a invasão do Vietnã e as monstruosidades cometidas contra suas populações. O Ocidente, que se auto-impunha a defesa da democracia como imperativo ético, entendia como ética, e portanto como necessária, a defesa da ditadura de Ngo Dinh-Diem, porque o Vietnã do Sul era um aliado dos EUA.
O princípio supostamente ético que alimenta o discurso maniqueísta implica a aceitação de que há ações naturalmente sãs porque derivam de governos sãos, e há ações naturalmente más porque derivam de governos naturalmente maus, e uns são bons e outros são maus segundo a ótica (e os interesses) de cada um porque cabe a cada um, e tão só a eles, a escolha dos atributos com os quais se adornam.
Albright desacata a história e agride nossa inteligência, porém, quando afirma que o Ocidente, leia-se os EUA, apoiava “a causa democrática”.
Onde minha ilustre senhora?
No Brasil, articulando o golpe de 1964 e sustentando a ditadura militar, ou no Chile promovendo o assassinato de Salvador Allende e a instauração da ditadura luciferina de Pinochet; na Argentina dos militares; no Uruguai; no Paraguai de Strossner (elogiado dia desses pelo capitão Bolsonaro, notório admirador de facínoras); na Nicarágua de Somoza (que Roosevelt teria carinhosamente apelidado de ‘nosso FDP”; na Cuba de Batista ou, sem fechar um rosário interminável, na Grécia dos coronéis?
Onde, Madame Albright?
Sustentando na República Dominicana a ditadura de Rafael Trujillo ou, com a ajuda das tropas da ditadura militar brasileira, depondo Juan Bosch, democrata legitimamente eleito?
Assassinando Patrice Lumumba?
Apoiando a ditadura racista na África do Sul que encarcerou por 27 anos Nelson Mandela?
Sustentando todos os colonialismos, como o português na África, e combatendo todas as guerras de libertação nacional, na África, na Ásia e no Oriente? Sustentando ditaduras nas Filipinas, na Turquia, nos Emirados Árabes e na Arábia Saudita e no Iraque, quando Saddam Hussein era um bom bandido?
Ou ao dar suporte (porque se tratava de confrontar o governo de Hanói) às ditaduras de Syngman Rhee e de Park Chung-hee, na Coréia do Sul?
Ou ao apoiar a ditadura persistente em Singapura desde Lee Kuan Yew, para quem o modelo de democracia liberal (projeto do qual o Ocidente se teria transformado em Cruzado) não podia ser aplicado num país em desenvolvimento?
Apoiando as ditaduras de Salazar e Franco, destruindo a República e colaborando com a carnificina levada a cabo pelos fascistas na dolorosa Guerra Civil?
Na Pérsia/Irã do rei Reza Phalevi?
Onde minha ilustre senhora?
Roberto Amaral