Há exatos cinquenta anos era editado o Ato Institucional nº 5, o que nos enseja o inventário de suas mazelas, e jamais será demasiado lembrá-lo (para esmiuçá-lo), especialmente quando estamos no limiar de um governo de extrema-direita. Trata-se, aliás, e eis mais um tema à espera dos analistas, de uma extrema-direita especialíssima. Se não descarta a violência, pelo menos a que é regrada no sistema jurídico, claramente se aparta tanto da defesa do Estado soberano quanto de sentimentos nacionalistas, dois dos atributos que distinguiam os militares e a ditadura de 1964.
É sempre bom, é mesmo didático, visitar o passado, para, conhecido ou relembrado o que não queremos reviver, possamos nos antecipar aos maus tempos anunciados pelas nuvens escuras e pesadas que se avizinham.
O que podem ser os anos futuros? Ainda não é possível antecipar, mas sabemos muito bem o que foram os anos do autoritarismo militar, sabemos o suficiente para não querer vivê-los de novo.
Os dez anos de vigência do AI-5 certamente compreendem o período mais luciferino da ditadura, mas não encerra nem a história da ditadura, nem o rol de violências imposto ao país e sua gente.
Por isso mesmo o importante, para os comentários de hoje, não é o Ato cinquentão e tão vivo ainda entre nós, mas o fato que perdurou por dez anos: o aprofundamento da ditadura, transformando-se em ditadura de Estado. Em 64 foram prisões aos milhares, centenas de cassações de mandatos eletivos (de parlamentares, governadores e prefeitos), exílios, confinamentos como o de Miguel Arraes na ilha de Fernando de Noronha, aposentadoria compulsória de funcionários públicos, expulsão de seus quadros ou transferência de militares para a reserva (contam-se 122 oficiais), expulsão em massa de praças e sargentos das três forças, fechamento de sindicatos e organizações estudantis com a prisão de seus líderes, prisões de intelectuais, jornalistas e políticos, torturas e os primeiros registros de ‘desaparecimentos’.
Simboliza a instauração do golpe militar a cena deprimente do líder comunista Gregório Bezerra, constituinte de 1946, seminu, já visivelmente torturado, sendo arrastado por um jipe do Exército pelas ruas do Recife, como um troféu, fera indefesa, nas mãos de seus algozes.
Com o AI-5 houve o recrudescimento da repressão, pois esse era o imã de unificação das tropas (a garantia do poder), falsamente assustadas por passeatas estudantis que, consabidamente, jamais ameaçaram os alicerces do poder sustentado pelas baionetas.
O AI-5 simplesmente explicitou para o país (sem limitar o universo de ações aberto) o que os cidadãos deveriam temer. Dava, ou melhor, listava como competência do general presidente, mandatário da caserna, aqueles poderes de que ele já dispunha, pois derivados do ato de força que era em si o regime militar. Força que o direito, antes de limitar, legitima, mediante seu formalismo estéril, inane, nonato, pois, libertada de limites legais ou éticos, a força não conhece sua contenção senão em outra força, que lhe seja superior.
O regime militar emergiu do poder dos tanques que havia derrogado uma República, esquartejado uma Constituição e suspendida a soberania popular, em todos os seus níveis. Por isso mesmo o AI-5 não inova em face de sua matriz (o AI-1, dando ao general-presidente o poder de fechar e de abrir o Congresso (após ‘depurá-lo’), cassar mandatos eletivos de parlamentares e governantes, demitir ou aposentar juízes (hoje seria medida despicienda), demitir e aposentar professores e funcionários públicos de um modo geral, pôr militares na reserva (presentemente parece não haver mais candidato a essa comenda), decretar o estado de sítio, exilar e confinar adversários políticos, suspender o habeas corpus em crimes políticos, impor a censura a veículos de comunicação de massas e à publicação de livros e músicas, tudo o que fosse necessário para impedir o exercício de qualquer sorte de liberdade física ou intelectual.
Mais ainda, institucionalizou a tortura e o “desaparecimento” de adversários políticos, abandonando de vez qualquer prurido com aparências democráticas. Muito além do que sofrêramos, em maior ou menor grau, desde 1964, quando Alceu Amoroso Lima anatematizou a ditadura como “Terrorismo cultural” e Carlos Heitor Cony pespegou-lhe como uma tatuagem o título de “Revolução dos caranguejos”, numa premonição – de décadas – dos tempos anunciados pelos futuros mandatários da tragédia política de nossos dias, túnel escuro de cuja extensão não temos a menor ideia.
Antes do AI-5, tivéramos a ditadura do AI-2 (o primeiro golpe dentro do golpe?), que extinguiu os partidos políticos e instaurou eleições indiretas para governadores e para a presidência a presidência da República, esta, restrita ao colégio dos generais de quatro estrelas, retomou a repressão e as cassações e aposentadorias de seus adversários políticos.
Ao fim e ao cabo, não temos, como tiveram outros países, o direito de conhecer os crimes da ditadura.
O pouco que as forças armadas nos permitiram saber (levantado a duras penas pela Comissão Nacional da Verdade), nos fala em pelo menos 434 mortos, mais de sete mil exilados, mais de 20 mil torturados em dependências do Estado e muitos em quarteis e muitos torturados por oficiais das forças armadas.
Por que tudo isso?
A essa miséria humana o presidente do STF chama de “movimento” e oficiais jovens e velhos na ativa e na reserva pensam tratar de defesa da democracia! Os mais velhos e os jovens mais sabidos falam ainda em salvar o Brasil do comunismo…
Os motivos pretextados para 1968, dizia a chamada ‘comunidade de informações’, era a necessidade do enfrentamento às passeatas estudantis (que jamais ameaçaram coisa alguma) e a sufocação dos primeiros sinais de resistência armada. Duas inverdades, pois as movimentações estudantis haviam cessado desde junho (e o ‘ato’ é de dezembro), e os focos de resistência armada (cuja repressão imolaria tantos jovens) ainda não se haviam manifestado.
Falava-se, também, na necessidade de dar satisfação à tropa inquieta em face de irrelevante, e sem repercussão, discurso no pequeno expediente da Câmara dos Deputados pronunciado por Márcio Moreira Alves, com críticas às forças armadas.
Não obstante a história sabida, as aleivosias desmentidas continuam (com evidentes consequências junto à tropa treinada para ouvir seus comandantes como se oráculos fossem) sendo repetidas por oficiais superiores com responsabilidades de comando e governo. É o desalentador caso do general Heleno Pereira, futuro ministro chefe do gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (Valor, 07/12/18) para quem os adversários de 1964 pretendiam instalar neste país uma ditadura bolchevista. Não, general, o que se pretendia era salvar o Brasil da ditadura real que os senhores nos haviam imposto com o concurso das armas compradas com nossos recursos para outros usos.
Os tempos de 1968 eram de forças armadas unidas, de governos estaduais e suas forças militares e policiais sob controle e ávidas em participar da repressão, tempos de mercado solidário, de economia em recuperação, de apoio entusiasmado dos EUA, tempos de meios de comunicação fervorosamente aliados, contrastado com uma ordem política civil em processo de desfalecimento, de massa sindical silente e de uma classe média preocupada com a segurança de seus filhos.
Nas ruas, apenas, os estudantes pedindo liberdade.
Nada que pusesse em risco a segurança do regime autoritário. Ou, como observa com agudez e cinismo o ex-ministro Delfim Neto, um dos signatários do AI-5, tudo isso, essas alegações ditadas como justificativas do Ato, não passava de pretexto: “Naquela época do AI-5, havia muita tensão mas, no fundo, era tudo teatro… Era teatro para levar ao ato” (Valor, 7/12/18, p. 6).
Trocando em miúdos: o ‘teatro’, as denúncias de subversão, era a farsa levantada pelos militares para justificar a tragédia.
A farsa, como as falsas motivações dos candidatos a ditador, estão presentes em todos os nossos golpes, como o Pano Cohen que detonou o Estado Novo em 1937, as acusações de corrupção contra Vargas em 1954, a ‘república sindicalista’ de cuja implantação era acusado João Goulart. Mentiram reiteradamente e inventaram o perigo comunista, assim como fizeram na campanha e repetem no vestibular do governo a grei que cerca o capitão.
Como lembrava Hélio Silva, ‘todos os golpes se parecem’. Escondem as motivações reais com a mesma arma com as quais inventam um discurso justificador para a tranquilidade das massas.
Decadência: O STF, que já foi presidido por juristas como Gonçalves de Oliveira, Orozimbo Nonato, Ribeiro da Costa e Aliomar Baleiro, entre outros, tem hoje, à sua testa, o ministro Dias Tófoli. É o sinal dos tempos, tristes tempos.
Roberto Amaral