Frente não pode cingir-se às forças progressistas e de centro-esquerda, precisa abrigar todos que se sintam no dever de opor-se a Bolsonaro

Ato “Ninguém solta a mão de ninguém” na terça-feira 30 em Curitiba

O resultado do pleito do dia 28 último não deve ser estudado como um episódio em si, autônomo, fato isolado.

Estamos diante de fenômeno mais extenso e mais profundo do que sugerem as aparências, e suas raízes, sabidamente, nos remetem às jornadas de 2013, esfinge ainda não decifrada por analistas e políticos e que, por isso mesmo, vem devorando governos, partidos e lideranças. Entre muitas de suas artes está a de promover erupções que seguidamente surpreendem os cientistas, seja pela sua extensão, seja pela sua profundidade, semelhando a movimentação de placas tectônicas imprevistas pelos melhores sismógrafos.

O fato objetivo é que estamos em meio a um processo político-social em andamento e sobre o qual não temos controle; dele podemos indicar suas raízes, mas muito nos falta para conhecermos seus desdobramentos. Acostumados a explicar o passado, os cientistas sociais estancam quando se trata do processo histórico contemporâneo.
Por enquanto, o reconhecimento se limita a identificar um processo que emergiu – ou seja, fez-se notar – nas manifestações de 2013. Com essa afirmação quero reforçar a ideia de que algo, invisível e silencioso como o cupim que devora a madeira, de há muito já se operava no interior do processo social.

O impeachment de 2016, não obstante sua contundência, não significou nem o ponto de partida nem o termo desse processo iniciado lá atrás, senão o marco identificador do golpe de Estado que chega até nós. Do mesmo modo, a posse do capitão não encerrará esse ciclo, embora possa significar, dentro dele, a prometida interrupção da experiência democrática, ao menos como a conhecemos hoje.

A irrupção de julho de 2013, que teria tido como espoleta a reação estudantil ao aumento de 20 centavos nos preços das passagens de ônibus da cidade de São Paulo, pode contabilizar, a seu crédito – num desdobramento que chega até nós e ultrapassará os dias de hoje – o impeachment da presidente Dilma Rousseff e a instalação do regime de golpe de Estado continuado com a posse e sustentação do governo Temer. Segue-se, ainda cobrando exegese, o avanço do pensamento e da ação da extrema-direita que culmina com a eleição para a presidência da República de um irrelevante quadro do baixo clero da Câmara dos Deputados, após campanha cujos motes lembram a retórica do nazifascismo. E, no seu rasto, ademais de uma maioria congressual, a eleição, entre outros, de todos os governadores de Estado, de Minas Gerais ao Rio Grande do Sul, algo como 80% da economia nacional, 90% de sua base industrial e evidentemente de seu proletariado, a grande maioria de sua população urbana, os centros mais significativos de ensino, pesquisa, ciência e produção tecnológica.

É o quadro deste momento.

O avanço político e eleitoral da extrema-direita traz à luz do dia uma imagem até aqui desconhecida de nossa sociedade, a da intolerância, insuspeitada em país cujo povo (dizia-se) cultivava o atributo da cordialidade, mas que jamais pudera esconder um autoritarismo larvar.

A propósito, nossos cientistas convergem na qualificação do ‘bolsonarismo’ como uma expressão de totalitarismo, a primeira a apresentar-se nesses termos como proposta política e de governo, entre nós, e a única a obter a consagração eleitoral, sempre negada ao integralismo de Plínio Salgado, seu parente mais próximo. De outra parte, os integralistas brasileiros estavam enfileirados em torno de um partido e de uma doutrina, e de uma organização paramilitar que os animou, até, a intentar o putsch de 1938, quando, no assalto ao Palácio Guanabara, pretendiam depor o presidente Getúlio Vargas. O bolsonarismo carece de uma doutrina (pelo menos segundo os cânones da academia) e pode dispensar a organização e a via paramilitar, pois sua base organizativa fundamental está nos quartéis.

Os cientistas sociais não encontram um corpus doutrinário no bolsonarismo, seja pelas limitações de seu líder e de seus oficiais assistentes, seja por não anunciar um programa com começo, meio e fim. Na campanha, limitou-se à verbalização, tão-só, de uma série de slogans e meras palavras de ordem, muitas negadas para serem em seguida revitalizadas, outras contraditórias e conflitivas entre si, todas reacionárias.

Discute-se, bizantinamente, se estamos em face de uma ameaça fascista, ou neofascista ou de um projeto simplesmente totalitário, o que para o povo não faz a menor diferença. Da mesma forma a definição de ditadura, que, para efetivar-se, não carece, mais, nem de tanques nas ruas, nem de fraturas constitucionais, pois o regime de força moderno pode manipular com os mecanismos da democracia clássica e sua legislação, variando simplesmente sua interpretação entregue às confiáveis mãos dos operadores do processo judicial, procuradores, juízes e ministros, todos amigos do rei.

Ora, a formalidade jurídica não tem alma.

Aliás, ‘na forma da lei’ Dilma Rousseff foi cassada e Lula impedido de assumir a chefia da Casa Civil, processado, julgado, condenado, encarcerado e teve seu pedido de habeas corpus negado pelo STF.

Repito: tudo na forma da lei.

O poder judiciário, desde os juízes de piso como Moro e outros, até o STF, passando pelo TSE, tem dado lições frequentes de como aplicar o Direito segundo os interesses dos donos do poder. E Moro, ao que tudo indica, será premiado pelos serviços prestados.

A probabilidade de um ditadura, ensina a História contemporânea, independe de um golpe de Estado clássico, de iniciativa militar ou dependente de sua intervenção na ordem constitucional, rompendo-a. Assim, um novo 1964 (no seu significado repressivo e antissocial) dispensa, hoje, a ruptura constitucional, e desta vez, a primeira em nossa História republicana, um governo anunciadamente autoritário, defensor da ditadura e da repressão aos direitos civis, assume o poder estribado na manifestação da maioria absoluta do eleitorado, o que o torna inumeráveis vezes mais perigoso e letal do que seus antecessores militares stricto sensu.

É preciso estudar e compreender o processo político em que vivemos, sem o que será inútil qualquer tentativa de construir uma estratégia política, seja de avanço, seja de mera resistência. É preciso prepararmo-nos para o embate ideológico, que o lulismo no governo recusou.

Pouco avançaremos, porém, enquanto não tivermos clareza sobre o significado do fenômeno que hoje chamamos de bolsonarismo.

As esquerdas precisam refletir sobre seu fracasso político após mais de 12 anos de governo federal e dezenas de anos de hegemonia dos movimentos sindical e social. As esquerdas não se recuperarão sem a coragem da autocrítica.

Mas, enquanto isso, é preciso agir.

Se o governo por instalar-se não se enquadra nas classificações dos manuais de Ciência Política disponíveis no mercado, o fato objetivo é que seu líder e a coorte que o acolita já anunciaram a decisão de reprimir, por “terroristas”, os movimentos sociais, como o MST, o MTST. Faz parte do receituário do novo governo a repressão aos movimentos sociais em geral e ao movimento sindical em particular, e a repressão à liberdade de ensino e produção do pensamento acadêmico.

Registre-se, aliás, que os campi das universidades já estão sendo invadidos pelo aparato policial-judiciário, anunciando os anos de terror que estão por vir.

Mas a ditadura mais franca poderá tornar-se necessária, e neste projeto o governo parece apostar, pois seu porta-voz, o futuro primeiro-ministro Paulo Guedes, também conhecido como “Posto Ipiranga”, já anuncia as pilastras do governo do capitão: 1) Reforma da Previdência; 2) Controle dos gastos públicos; 3) Reforma do Estado (que pressupõe uma Constituinte) e 4) Prioridade para o pagamento do déficit público primário orçado pelo BC, dados de setembro último, em 59,321 bilhões de reais.

Como controle dos gastos públicos leia-se redução dos investimentos, comprometendo ainda mais a geração de empregos em país com quase 14 milhões de desempregados. A opção, como prioridade, do pagamento do déficit público significa que não sobrarão recursos nem para os investimentos que ativam a economia, nem para os programas sociais.

E ainda não é tudo, pois anuncia-se um projeto de privatizações criminoso, antinacional, que, de um lado, comprometerá o desenvolvimento nacional e aumentará o desemprego, e, de outro, vendendo nossas empresas de forma afoita e na bacia das almas, deixará longe a privataria do governo FHC.

Tudo o que um conselho de Estado Maior poderia pensar para apressar o conflito social.

O novo governo já começa a operar – dizem os jornais que o capitão cobrou do ainda inquilino do Jaburu a aprovação da reforma da previdência ainda esta ano, agora segundo os ditames de sua equipe.

A resistência deve responder de imediato.

As forças progressistas que não souberam organizar a frente eleitoral do primeiro turno (em face principalmente do hegemonismo do PT), e muito menos construí-la no segundo turno (por força de amuos e ressentimentos que indicam a pobreza histórica da média de nossas lideranças) precisam de engenho e arte, e muita humildade, para pôr de pé a Frente democrática e ampla, popular e partidária, de combate e resistência ao avanço da extrema direita.

Essa Frente, porém, não pode cingir-se às forças chamadas de progressistas e de centro-esquerda, pois precisa abrigar todos aqueles que se sintam no dever de opor-se ao governo Bolsonaro. Mas não será nem Frente e muito menos democrática aquela que restringir partidos ou personalidades, ou, pelo extremo, que se vincule a um projeto eleitoral, ou seja, não poderá suportar nem vetos nem cartas marcadas.

E não há o que esperar, porque, como sempre, o tempo urge; a saga bolsonarista já começou e com ela também começa sua oposição.

Roberto Amaral