Uma das estratégias fascistas é criar adversários. O nazismo elegeu judeus e comunistas. Em 1964, criaram a ameaça comunista. Agora, o “perigo” é a esquerda
Sem se dar conta dos riscos que corre, o país assiste à construção de um projeto político protofascista, com data marcada para instalar-se, sem previsão para nos deixar em paz. Só não vê quem considera mais cômodo ignorar os desafios, pensando que assim deles se livra, como o avestruz que enterra a cabeça para não ver o predador.
Estão presentes entre nós os elementos básicos das experiências históricas de construção de regimes fascistas. A primeira delas é a incapacidade, por parte das esquerdas, dos liberais, dos democratas em geral, de ver a serpente antes de ela saltar do ovo para cumprir com seu papel.
Nos anos 20 do século passado, na Itália, a social-democracia aplaudiu a ascensão de Mussolini, convencida de que o fascio aniquilaria com os comunistas, deixando assim atapetado seu caminho ao poder. Na Alemanha de Hitler, os comunistas apostaram que o nazismo destruiria a social-democracia e o poder lhes chegaria por decantação.
A resposta histórica é conhecida.
No Brasil não quisemos entender, ou não tivemos competência ou coragem para entender as jornadas de 2013, e muito menos ousamos tirar conclusões do significado do final da campanha presidencial de 2014.
Pior: muitos segmentos da esquerda brasileira viram e veem ainda no impeachment um mero golpe de Estado que se esgotava na troca de Dilma por Temer. Na campanha em andamento muitos não querem ver que a disputa vai muito além da escolha de Joaquim ou Manuel para a presidência da República.
É difícil fazer com que os setores que se contentam com as aparências entendam que estas eleições superaram a atrasada disputa entre o tucanato e o lulismo, pois, trata-se da escolha entre democracia e fascismo, entre civilização e barbárie.
O que está em jogo não é a hegemonia do PT, interrompida pelo golpe parlamentar. É a democracia. O que resta de centro e centro-esquerda estará brevemente lamentando haver suposto que, fazendo o jogo da extrema direita, estaria assegurando seu espaço no futuro.
O fascismo é um produto histórico; sua implantação, no século passado, em algumas das mais sólidas e progressistas sociedades europeias, foi precedida de alguns dos ingredientes que, lamentavelmente, estão presentes, hoje e há algum tempo, em nosso país.
Um deles é o quadro de crise generalizada entro do quadro geral da crise internacional do capitalismo. Em nosso caso crise econômica, política, social, crise de valores, crise ética e crise moral. Crise que carrega consigo a desmoralização das instituições clássicas – Executivo, Judiciário e Legislativo –, que entram em colapso, expondo às escâncaras, de um lado sua incompetência diante dos desafios postos, de outro, sua ilegitimidade.
Essa crise, com esses contornos, é a matéria prima do desânimo social.
A mídia, um monopólio ideológico, concluiu a tarefa de juízes e procuradores da Lava Jato, criminalizando a política, os políticos, os partidos, enfim, os elementos fundamentais da democracia representativa. Para a grande população os políticos, de um modo geral, são corruptos. Corruptos simplesmente por serem políticos.
O país, ao fim e ao cabo, se descobre sem direção e sem liderança. À direita e ao centro impera um vazio tumular; à esquerda seu principal líder purgando o cárcere, segregado da política. O ainda presidente da República, ilegítimo, é um farsante repudiado por mais de 90% da população.
Para a média dos eleitores o Congresso é um antro de negocistas, o Poder Judiciário um fator de instabilidade permeado de desvios éticos. Os partidos políticos fracassaram, rotundamente. Inconsolada com a ordem deprimente, a cidadania, manipulada pelo discurso autoritário, não vê na linha do horizonte esperanças de futuro.
O país se descobre dominado pelo colapso geral da economia e o mais grave dos seus desarranjos, a espiral do desemprego, atinge, como sempre, a classe média e as camadas populares, enquanto o setor financeiro acumula lucros imorais.Esses são os ingredientes que dão cores vivas à crise social, abrindo caminho para a clivagem, operada pela exasperação do ódio, que hoje divide o país.
Esse ódio é o alimento da violência – explorada em programas de rádio e televisão – mas, acima de tudo, estimulada e fomentada pelo capitão candidato, em sua oratória tatibitate, em seus gestos, em seu comportamento. É de sua lavra a promessa de armar fazendeiros e assim agudizar o conflito rural, estimular o cidadão a armar-se para enfrentar a bandidagem, ensinar crianças a brincar de tiro ao alvo. É sua prédica diuturna, a exasperação da violência como antídoto à violência, restabelecendo a barbárie, o olho por olho dente por dente.
É esse candidato que lamenta a ditadura militar não haver assassinado 30 mil civis, ente os quais o ex-presidente FHC; é ele quem defende a tortura e tem como herói o desprezível coronel Brilhante Ustra, torturador e assassino impune graças às pressões de seus companheiros de farda. Esse agente da violência e do ódio que já declarou torcer pela morte da então presidente Dilma, propõe fuzilar os “petralhas” (refere-se aos petistas). Dias antes do atentado que provocou, foi fotografado e filmado dando pontapés em um boneco com a imagem do ex-presidente Lula.
Porque a violência é fundamental para o projeto fascista e nada do que ocorre é obra do acaso. Os tiros contra a caravana de Lula, o assassinato de Marielle, o ódio que exala das manifestações de rua e mesmo o atentado contra o capitão.
Pois sobre esse celerado o comandante o Exército nos diz, e não pela primeira vez, “que ele procura se identificar com questões que são caras às Forças Armadas, além de ter senso de oportunidade”.
O destacável é que o capitão, para além da disputa eleitoral, arma-se para projeto mais fundo cumprindo o papel de aríete da extrema direita civil e militar, organizando, com sua pregação irresponsável, o discurso fascista, antes difuso.
Como todo processo fascista, trata-se de um movimento de massa que pode ser medido pelas intenções de voto que engalanam o capitão, pelo sectarismo de suas hostes, pelas palavras de ordem que expressam.
Como sempre, aqui e em toda parte, são as Forças Armadas e o poder econômico, principalmente o tal ‘mercado’ (eufemismo para os agentes financeiros mais afluentes e influentes), o esteio que trabalha atrás das trincheiras. A propósito, e sintomaticamente, a Folha de S. Paulo, da última sexta-feira 7, registra que a Bolsa de Valores de São Paulo reagiu com euforia – queda do dólar e alta das ações– ao atentado de que foi vítima o capitão, porque, com o ataque, estimavam os especuladores profissionais, as eleições já se decidiriam no primeiro turno. Não sem razão, Folha, Estadão e o Globo, vinham, há semanas, reclamando, em uníssono, da ‘indecisão eleitoral’, responsabilizando-a pela ‘insegurança do mercado’ de que derivaria a ausência de investimentos.
Foi assim nos idos de 1964.
Também como antes e em todos os processos que redundaram na quebra da ordem constitucional, o projeto de nossos dias passa por setores hoje majoritários nas Forças Armadas, mais especificamente no Exército. O capitão e o general candidato a vice, lamentavelmente, não são vozes isoladas entre seus pares. Basta levantar os últimos pronunciamentos do comandante do Exército. A cada assacada contra a ordem democrática – como as ameaças ao STF na véspera do julgamento do habeas corpusimpetrado por Lula – a justificativa do general estrelado é que está tentando acalmar sua retaguarda. É ela, portanto, que nos ameaça?
Na entrevista acima mencionada, o comandante do Exército, falando como monarca absolutista, adverte que a “Legitimidade de novo governo pode até ser questionada” (por quem?) e pela segunda vez, anuncia o veto à candidatura do ex-presidente Lula.
Estamos regredindo, retornando aos desagradáveis anos 50-60, quando os militares exerciam sobre o país e a sociedade o papel de “pais da pátria”, um Poder Moderador desconhecido na República, senhores de nosso destino, pretendendo ditar quem podia e quem não podia ser candidato, quem podia e quem não podia ser eleito ou tomar posse. Pronunciavam-se sobre tudo e todas as coisas até sobre o valor do salário mínimo.
Esse não era e não é o papel de militares, qualquer que seja a patente.
Um dos instrumentos da estratégia fascista é eleger um ou mais adversários, demonizando-os. Quando não existe esse inimigo, cria-se. O nazismo elegeu os judeus e os comunistas; o franquismo, os republicanos. E assim por diante. Em 1964 inventaram a ‘ameaça comunista’ representada pelo governo Goulart. Agora, para muitos militares, inclusive em postos de comando, um dos pontos positivos do capitão “é que ele talvez ajude a frear essa onda de esquerdização”.
As ameaças nada veladas de intervenção são prescritas nos casos de rompimento do “esgarçado” (segundo eles) tecido social, mas o cenário mais temido “é a quebra da lei e da ordem no caso de uma besteira do STF beneficiando Lula” (“Chamado à razão”,Estadão,6/9/2018) texto do jornalista e porta-voz William Waack).
O STF já se apressa para se adaptar à nova ordem, e os militares festejam a indicação do general Fernando Azevedo e Silva, chefe do Estado Maior do Exército, como assessor do ministro Dias Toffoli que assume a presidência da Suprema Corte.
Felizmente, há vozes que começam a se dar conta do risco que corremos de volver à barbárie. A direção nacional do PT lançou nota de repúdio à desastrada entrevista do comandante do Exército, Ciro Gomes declarou que no seu governo militares não darão declarações políticas e hoje, até O Globo saiu do imobilismo e da conivência, ao criticar a entrevista.
Que fique claro, enfim, que o capitão representa a barbárie.
Roberto Amaral