Apostar na divisão sob a promessa de unidade no segundo turno hipotético é conjurar contra os interesses da construção democrática
Concluída a Copa do Mundo, como concluída já foi para nós, concluídas as nada republicanas negociações partidárias, definido o quadro sucessório, haveremos de esperar, ainda, pelo 31 de agosto, data inaugural dos programas de rádio e de televisão, que é mesmo quando começa, para valer, a campanha eleitoral.
Nesse entrementes, antes, durante e depois do pleito, viveremos anunciada batalha judicial que pode transferir do povo para os tribunais a eleição de nossos futuros dirigentes.
O caráter dessa batalha pode ser medido pelo ensaio de autoritarismo, violência judicial e ilegalidade que definem o ‘domingo negro da justiça brasileira’, como ficará conhecido o último dia 8, quando decisão de um desembargador, favorável a Lula, tecnicamente perfeita, é anulada por outro desembargador agindo por provocação de um juiz de piso, em férias em Portugal e já sem vínculo com a ação.
O que nos estará aguardando é o aprofundamento da crise da soberania popular que caminha casada com o crivo de ilegitimidade que golpeia as instituições republicanas e fere de morte o Poder Judiciário.
Está à vista e se agravando dia a dia, a crise da democracia representativa, que se manifesta na composição do Congresso, na ilegitimidade dos titulares do Executivo (levado à irrelevância) e na atuação do Poder Judiciário, ferindo a Constituição que lhe cabe salvaguardar, decidindo contra sua letra clara, avançando sobre as competências do Legislativo e do Executivo.
O Poder Judiciário, do STF aos juízes de piso, vive seu pior momento, inclusive do ponto de vista ético.
Anunciada pelos idos de junho de 2013, a crise politico-institucional de hoje se instala com o impeachment. É dele consequente o ainda governo Temer, excrescência rejeitada por 82% da população, o que lhe confere o merecido cetro de presidente mais impopular do mundo.
E todos conhecem a fragilidade de nossa vida democrática, abalada na República por tantos golpes de Estado e ditaduras (todas recepcionadas pelo Poder Judiciário), uma democracia autoritária convivendo com governos de exceção jurídica, a serviço da classe dominante, uma elite econômica desvinculaa dos interesses do povo, da nação e do desenvolvimento.
As mais recentes pesquisas de opinião e inclinação de voto, tanto do Data Folha quanto da CNI-IBOPE (Cf. O Estado de S. Paulo. 30/6/2018), dão conta de inédito desinteresse do eleitorado, ativado por inumeráveis fatores, dentre os quais se destacaria o desencanto com a política, os políticos e os partidos.
Esse desencanto, ou decepção, ou frustração é matéria-prima de perigoso sentimento do homem comum de que a política não é a via de solução de seus problemas, sentimento tanto mais arraigado quanto os fatos e principalmente a versão dos fatos revela os mandatários desapartados do mandato popular, os partidos perdidos, os políticos e os dirigentes públicos associados em atos ilícitos.
Não se trata de, aqui, predizer o que pode resultar desse quadro de anomia, mas é preciso lembrar que ele tem sido, na História, o tapete vermelho sobre o qual caminham os ‘salvadores da pátria’.
Fruto desse quadro de ampla frustração nacional, de desencanto coletivo e de desesperança, nada menos que 33% do eleitorado, anunciam as pesquisas, declaram a decisão de renunciar ao direito de votar e escolher o presidente que vai comandar os destinos do país nos próximos quatro anos com mandato de prorrogar o statu quo ou romper com ele, abrindo as sendas das esperanças perdidas.
Segundo essas mesmas pesquisas, o ex-presidente Lula teria 33% da preferência do eleitorado, seguido do capitão Bolsonaro com 15%, coroado este com a rejeição de 52,2% dos entrevistados. Em cenário sem o ex-presidente e sem um nome petista, os dois candidatos que surgem para a disputa seriam esse capitão (17%) e Marina Silva (13%) que, juntos, somariam 30% dos votos, ambos derrotados, porém, pela abstenção, que seria de 34%.
Seus partidos não somam dez deputados federais.
Certificando a falência partidária, o candidato do MDB (o maior partido da República) não passaria, segundo as pesquisas que nos guiam, de 1%, e o candidato do PSDB, o ex-governador de São Paulo (em campanha há anos), não ultrapassa os 6%, seu ponto de partida e até aqui também de chegada.
Nenhum desses nomes se apresenta em condições de liderar o país no esforço de reconstrução que a crise nacional exige e, qualquer um, como lá atrás Fernando Collor e mais recentemente Dilma Rousseff, carente de base partidária e maioria parlamentar, tornar-se-á presa fácil do Eduardo Cunha da vez.
E dizem ainda os analistas que PT, MDB e PSDB terão suas bancadas parlamentares sensivelmente reduzidas e maior será o crescimento do ‘baixo clero’, confirmando a sentença atribuída a Ulisses Guimarães, para quem ‘a próxima legislatura será sempre pior do que sua antecessora’.
A democracia representativa está, pois, ameaçada por uma eleição presidencial sem candidatos e sem partidos políticos, esse elemento fundamental da política e da democracia, em extinção em nosso país, condenados como siglas sem opinião e sem projeto.
Se as engrenagens do poder já em movimento conseguirem moer a candidatura do ex-presidente Lula, estarão afastados do pleito 34% do eleitorado, que dificilmente se identificarão com a nova ordem. O presidente eleito nessas circunstâncias sofrerá as consequências da ausência eleitoral do líder disparado das pesquisas, e dificilmente terá condições de governança, e a crise de 2015 se instalará em 2019 com os desdobramentos que todos já podemos prever.
A menos de cem dias da eleição e a pouco dias das convenções partidárias que consagrarão os candidatos, 41% do eleitorado dizem que não têm candidato, o que vale como decreto da insatisfação em face das postulações, o que, levado ao extremo, poderá eivar de ilegitimidade o pleito, sem o qual, mas dependendo de seu pronunciamento, não será possível retirar o país da crise politico institucional em que está mergulhado.
Numa democracia que beira os 150 milhões de eleitores caminhamos para uma estranha disputa eleitoral, sem partidos, sem lideranças, sem candidatos.
São muitas e conhecidas as razões que ensejaram a deposição da presidente Dilma Rousseff, mas o ponto de partida foi sua vitória magra nas eleições de 2014, deixando-a desarmada para o enfrentamento de um Congresso hostil manipulado por uma súcia.
O filme anunciado para estrear em 2019 já foi assistido, e a plateia rejeitou.
Como governar sem maioria parlamentar, ou submetido às regras antirrepublicanas do ‘presidencialismo de coalizão’ (o cinismo do ‘a política como ela é’), no qual o programa de governo aprovado nas eleições tem sua execução entregue à infidelidade dos que o combateram no pleito?
As circunstâncias exigem que o novo presidente haverá de ser, antes de tudo, um líder nacional empunhando um programa que logre o apoio das grandes massas, para além do período eleitoral. A crise cobra um presidente forte em condições de enfrentar a erosão da legitimidade institucional, capaz de unificar o povo em torno de um projeto concreto, capaz de passar a limpo o governo que se esvai e liderar a obra de reconstrução nacional.
Precisará de maioria no Congresso mas precisará do apoio militante das grandes massas. Para não ser uma nova versão de seus antecessores, precisará de condições objetivas de governar impondo-se aos demais poderes mediante, por exemplo, a aprovação, por plebiscito, de seu programa de governo.
Precisamos de eleições que recuperem a legitimidade da democracia representativa, o que, num aparente circulo vicioso, depende da legitimidade do pleito.
É nesse quadro que patinam as organizações de esquerda, caminhando sem sair do lugar, sem olhos para ver os contornos da crise geral, e o projeto em curso que não visa isoladamente a este àquele partido de esquerda, a este ou aquele candidato, exclusivamente (embora visem com tanto ódio o PT e Lula) , mas que pretende desterrar da vida pública nacional os quadros e as organizações e o pensamento e os valores de centro-esquerda, identificados ou não ao petismo e aos governos Lula e Dilma.
É nesse cenário que as organizações da esquerda brasileira, cada uma a mais inebriada com seu próprio umbigo, voltadas à disputa da hegemonia do nada, míopes para ver a grande da crise que pode engolfar a todos, optam pela divisão eleitoral quando podem estar unificadas politicamente pelo menos nas questões fundamentais, entre as quais sobrelevam, não só sua sobrevivência, mas acima de tudo os interesses do país.
Apostar na divisão sob a promessa de unidade em um segundo turno hipotético é conjurar contra os interesses da construção democrática, o desafio que diz respeito a todos.
Roberto Amaral