(comentários sobre o julgamento de Lula)

por: Sérgio Sérvulo

Acompanhei, sem desgrudar da TV, a sessão em que o Supremo Tribunal Federal começou a julgar habeas corpus impetrado em favor do ex-presidente Lula.

Para quem não assistiu, informo que a maior parte do tempo se consumiu na apreciação de uma preliminar, posta pelo relator, para o fim de não se conhecer do pedido; e que, afastada a preliminar (7 x 4), no momento de se passar ao julgamento do mérito a sessão foi suspensa, devendo continuar no próximo dia 4 de abril.

Na apreciação dessa preliminar confrontaram-se duas teses: uma (a do relator) restritiva do “habeas corpus”, e outra (a que acabou prevalecendo), garantista, que o considera um “remédio heroico”, fundamental para a proteção da liberdade de ir e vir. Na defesa desta salientou-se, pelo calor, o voto do ministro Lewandowski, e, pela racionalidade, o voto do ministro Gilmar Mendes, um verdadeiro libelo contra a posição restritiva.

Também no exame de preliminares delinearam-se alguns dos votos que serão proferidos no mérito, de modo a podermos dizer que votarão no dia 4 – ou quando voltar o pedido ao Plenário – pelo indeferimento do habeas corpus, certamente os ministros Moraes, Barroso, Fux, e, provavelmente, o relator Fachin e a presidente Carmen Lúcia. Para a composição da maioria será decisivo o voto do ministro Gilmar Mendes.

Passemos agora a cogitar do mérito; aí o julgamento se concentrará, não na natureza do “habeas corpus”, mas na presunção de inocência. Os precedentes imediatos do STF são a decisão proferida no julgamento do  habeas corpus nº 126.292, em fevereiro de 2016, e a proferida ao negar liminar nas ADCs 43 e 44, em outubro do mesmo ano; entendeu-se possível, aí, a pronta execução da sentença condenatória, após o julgamento proferido em segunda instância (como acontece no caso de Lula). Formaram a maioria, nesses julgamentos, Fachin, Carmen Lúcia, Gilmar, Barroso, Fuchs e Teori Zavascki (hoje substituído por Moraes), cujos votos se fundaram em razões variadas. Assim, segundo o entendimento prevalecente na Corte, e salvo improvável alteração (não obstante sinais, emitidos nesse sentido, por Gilmar Mendes), a presunção da inocência não impede que, mesmo antes do trânsito em julgado, o acórdão condenatório produza efeitos contra o acusado.

Na sessão de ontem, no exame do mérito concentraram-se as sustentações orais do advogado José Roberto Batochio e da procuradora geral da República, Raquel Dodge.

Batochio focou sua argumentação no texto da lei: o art. 5º, inciso LVII da Constituição: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”; e o art. 283 do código de processo penal (na redação dada pela lei 12.403, de 2011): “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. (grifei).

A procuradora geral da República, cuja manifestação expressa a vigente exorbitância judiciária, argumentou com base na jurisprudência do STF e na eficácia dos princípios, concluindo que o princípio da segurança pública afasta o princípio da presunção de inocência.

Se me perguntarem o que penso sobre esses temas repito o que já escrevi em sede doutrinária:

Princípios não são normas….. É impossível construir um ordenamento jurídico composto unicamente por princípios. Sua exigibilidade supõe a existência das normas. A mediatidade é característica do princípio jurídico, assim como a imediatidade é característica da norma……. Entre as principais funções dos princípios estão a de gerar normas (função nomogenética) e a de orientar a interpretação (função hermenêutica). (Princípios constitucionais, 2ª. ed., 2013).

Jurisprudência é argumento de autoridade, e a virtude do Direito consiste em haver posto, a razão, à frente da autoridade….. Não basta, à sentença, fundar-se exclusivamente na jurisprudência ou na doutrina, ainda que seja grande a autoridade do seu emissor…… O que faz a jurisprudência é glosar a lei.  (Dever constitucional de fundamentar; no prelo).

A presunção de inocência não tem fundamento ético (a dignidade da pessoa humana) nem sociológico (a forma comum de comportamento), mas político: a presunção individual de inocência do investigado não é presunção “facti”, mas presunção “legis”: a projeção, no plano individual, da presunção generalizada de inocência do povo. Na pradaria, os membros do rebanho sentem-se aliviados quando o predador subjuga algum dos seus: livraram-se, por algum tempo, daquela ameaça; na sociedade primitiva, são fundas as raízes da cerimônia em que se expulsa o bode expiatório. Hoje, porém, o nível de civilização de um povo se observa na condição do investigado: sobre ele não pode pesar a maldição de todos. Esse o sentido do conhecido poema de Bertold Brecht, essa a lição do caso Dreyfuss. (Fundamentos de Direito Constitucional, vol. 2, 2008).

Ou, resumidamente, como ensina a História: a supressão das garantias é a véspera do Terror.