A opinião pública brasileira – essa peça do imaginário coletivo cuja função seria  aceitar  como certo ou errado, justo ou injusto os produtos ideológicos ou simbólicos do fazer social brasileiro –, ainda não aceitou, senão como justo,  pelo menos como existente,  o feriado de 20 de novembro, dia da morte de Zumbi dos Palmares, ou Dia da Consciência Negra, símbolo de experiência vitoriosa, durante mais de 100 anos, de um modo de  viver em liberdade e em contexto civilizado (em oposição à indignidade da escravidão), por parte de núcleos humanos  antes escravizados pela experiência colonial européia, núcleos que no século 17, no entorno da Serra da Barriga, em Alagoas,  chegaram a somar  mais de 20 mil almas, ancestrais diretos de mais de 100 milhões de seres humanos  que hoje constituem os  54% da população brasileira.

A afirmação de que formavam uma sociedade livre que se expressava por intermédio de um estado soberano, talvez o primeiro estado soberano negro-africano  nas Américas,  deriva da análise dos acordos e tratados  que foram assinados entre este estado palmarino e os representantes do poder colonial.

Cumpre dizer que, isentos  da nódoa do racismo, não há dados nas fontes documentais de onde o brasileiro comum costuma tirar “conhecimento, saber” (por exemplo, teorias ou glosas a documentos) que venham convencê-lo, enquanto  agente político dessa sociedade, a aceitar o conceito de Palmares, Zumbi, 20 de novembro, negro,  “consciência negra” como algo justo, que tenha razão de existir, logo, de ser socialmente transferido como conhecimento.  Se  é documento histórico brasileiro, já foi lavrado com a mancha do racismo.  Assim, em consonância com o conteúdo dos arquivos que lhe são disponíveis ou disponibilizados, termos como escravidão,  bárbaro, negro de alma branca ou não, escravo fujão, rebelde, ou índio indolente inútil ou insubmisso etc. fazem referência, em  franca oposição, ao heróico contexto de “formação do Brasil, uma pátria ‘só minha’,  guerreira e heróica”, cheia de bandeirantes – milicianos facínoras,  que cumpre defender dos eternos intrusos,  sociedade e cultura a que o brasileiro se diz pertencer por determinação divina, origem imaginária  que lhe remete à Grécia, que por sua vez lhe remete à Roma, matriz da religião católica, enfim, à Europa, segundo  o mesmo imaginário “lar ancestral” da RAÇA BRANCA, não obstante o fato de que diante do atual nível da crítica  epistemológica ou historiográfica  as asserções acima relativas a esse imaginário não  possam  ser classificadas senão (a seguir a moda atual), como ‘fake history’.

Diferente dos El Dourados do imaginário europeu, o Egito e a chamada Etiópia da geografia grega (as sub-Bacias do Nilo Branco e do Nilo Azul,  a Região dos Grandes Lagos, toda a Bacia do  Congo atual) localizam-se em precisas  coordenadas do Planeta, cujo solo mostra e mostrará para todo o sempre  imensas crateras e fraturas  graníticas da paisagem natural provocadas pela atividade de seres humanos específicos, os primeiros Homo Sapiens Sapiens, que,  dada à textura de uma pele carregada de melanina hoje identificada em suas múmias, além de outros  caracteres fenotípicos, não se podem  atribuir senão ao fenótipo negro-africano, mesmo que alguns autores, invadindo as raias do absurdo, cheguem a admitir que se tratava de um homem negro-africano de cor branca (sic), (v. Cheik Anta Diop, passim).

Recusando-se a continuar a ser lenda chula, conto de fadas, a História da Humanidade trouxe a África ao seu Zênite

A partir da segunda metade do século 20, a África retorna  ao centro da História da Humanidade, vide a produção de pensadores do calibre de Cheik Anta Diop, vide a coleção História da África, da Unesco.

Na África nasceu, desenvolveu-se  e espraiou-se por todos os continentes a produção cultural do Homo Sapiens Sapiens,  com destaque para os artefatos simbólicos como a língua e seus conteúdos  ficcionais, como  o primeiro corpo de lendas estruturantes que vem modelando  e dando  sustentabilidade há milênios ao viver humano em estágio de civilização, refiro-me às lendas inerentes à saga conhecida como A paixão de Osíris, também  conhecida como O livro dos Mortos.  Ressalta da leitura e vivência dessas lendas, que o viver em civilização envolve um existir  para si e para o outro,  um existir ao mesmo tempo imanente e transcendente,  um existir de modo consciente,  localizado num tempo  e num espaço, que são categorias ao mesmo tempo físicas e metafísicas ou morais, as quais implicam, repita-se, um viver individual e coletivo que reconhece a presença e  historicidade da Vida e da Morte, e a necessidade de superar esta última, mesmo que ficticiamente, logo criando o Logos, aquilo  que é para ser cultuado e estudado – a  religião, a filosofia, as artes, o trabalho sublimado na dimensão do Cosmo – as imensas Pirâmides, o trabalho dirigido à eternidade,  em síntese,  é a experiência humana que elaborou um calendário referenciado ao Cosmo, aos astros, que apresenta a mais antiga data cientificamente fixada e confirmada  – ou seja, 4.241 antes da Era Atual (v. Cheik Anta Diop, passim). Graças à África Negra, o homem conhece essa data e sabe que ela foi cientificamente determinada.

E como a África e o Negro foram excluídos da História?

Na medida em que as sociedades escravocratas  a partir do último milênio tem dado à África e ao Negro, de modo exclusivo, a  função de fornecedora de escravos e de produtos naturais raros ou essenciais, no caso de uma, e de fornecedor de força de trabalho animal, o outro,   forçoso lhes foi procurar apagar todos os traços  de Humanidade num, e de primeiro Lar da Humanidade, noutra. Se o leitor tem alguma duvida, procure e leia fontes científicas.

Qual a função da África frente à História, ao Planeta e à Humanidade que a consciência do Homem Negro  e da Mulher Negra  deve imediatamente resgatar?

Bem, sem maiores delongas, afirmamos que sem a África e sem o Negro não teria havido capitalismo, se é que  alguém, enquanto brasileiro,  acha que essa modalidade possível de organização social baseada na exploração dos pobres pelos ricos, baseada na posse privada  de bens vitais por organismos particulares acoitados no interior de estruturas  políticas tidas como públicas (o estado-nação capitalista)  seja algo que mereça ser preservado. Justifica-se rapidamente:

Não há capitalismo sem a noção “internacionalmente consensual” (entre os seres humanos de todas as unidades civilizacionais do Planeta) de que:  a) a riqueza, uma condição imaginária que objetivamente produz a euforia do consumo e do bem-estar exclusivo, seja  algo cuja  posse justifique o viver; b) de que essa riqueza, esse algo que vale a vida vivida, encontra termos de expressão e de troca (moeda, mercadorias);  c)  a crença de que essa condição imaginária é transferível por herança e herdada, isto é,  perdurável, não vai perder o valor amanhã, frustrando aqueles que pela sua posse hipotecaram a vida…(Ninguém aposta no caos, como dizem os diretores do FMI). Ou seja, a posse desse algo como sede de valor perdurável exige o domínio da cultura, da dimensão imaginária ou simbólica do outro…

Durante os séculos que precedem o fim da Antiguidade, a  mais recente experiência hegemônica em termos da organização de grandes contingentes humanos, a experiência romana, desagregara-se por não ter sabido administrar a dimensão simbólica de seus dominados. O império exigia cotas de bens, mercadorias, impostos  e escravos, que explorava em seus latifúndios, minas e exércitos, sem que em contrapartida alterasse  o mundo simbólico desses dominados, que, reelaborando as lendas estruturantes egípcias vão criar um corpo de lendas estruturantes que irreversivelmente desagregará o Império: as religiões ditas reveladas.  O nascimento do capitalismo vai exigir equivalência entre o valor ouro e da prata para que pudessem ser viabilizadas as trocas de produtos entre o Ocidente e o Extremo  Oriente, onde o padrão de trocas era preferencialmente a prata, enquanto que no  Ocidente, era preferencialmente o ouro.

É a partir dos séculos 14,15 e 16 que se torna claramente visível aos segmentos operadores da produção e da troca sob o modo produção que viria a ser chamado de capitalismo,  que chegará o momento do encontro entre lenda e realidade, realmente havia  um continente de riquezas inesgotáveis que podia ser explorado, escravizado em todas as dimensões produtivas de sua biosfera – a África. E que a partir de base bélica e de transporte recentemente introduzidas na Europa – o butim originado pelas Cruzadas, esse continente podia ser invadido de modo sustentável e irrevogável, sua população escravizada, seu mundo material e simbólico para sempre destruídos.  O padrão de riqueza historicamente fixado no Ocidente e no Oriente – o ouro, a prata, o diamante e o ESCRAVO, a mercadoria que produzia riqueza – tinha e teria  fonte inesgotável durante séculos. Em síntese, acabou o medo de retorno à pobreza, às fomes cíclicas e à endêmica Peste Negra… Ou seja, a África e o Negro há 6 séculos vêm funcionando como RESERVA DE VALOR no Sistema Monetário Capitalista tornado Natural no Planeta. Só a partir dos anos 50 do século 20  é que o poder persuasório do arsenal atômico das potências capitalistas hegemônicas  passa a subsidiar esse Sistema Monetário tornado Natural, a partir da absurda ilação: ou se respeita o dólar, ou o caos atômico.

EIS EM ESBOÇO CRU, O CONTEÚDO DO DIA 20 DE NOVEMBRO, DIA DA MORTE DE ZUMBI, DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA , SENÃO PARA TODOS OS SERES HUMANOS, PELO MENOS PARA OS CENTO E TANTOS MILHÕES DE AFRODESCENDENTES MELANINADOS DO BRASIL,  já que afrodescendentes  SOMOS todos, melaninados ou não, todos DESCENDENTES DO HOMO SAPIENS SAPIENS.

por: Ailton Benedito de Sousa