O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Gilmar Mendes, visita a sede do TRE do Amazonas na cidade de Manaus

Gilmar Mendes mandou soltar o empresário Jacob Barata Filho, investigado por suspeita de corrupção no Rio. O juiz federal Marcelo Bretas expediu novo mandado de prisão preventiva. Gilmar Mendes mandou soltar de novo, em menos de 24 horas.

Nesse insólito jogo de “solta, prende e solta”, Gilmar Mendes deu um recado de xerife: “em geral o rabo não abana o cachorro, é o cachorro que abana o rabo”.

O Código de Processo Penal diz que “o juiz dar-se-á por suspeito se for amigo íntimo” de uma parte. A regra da suspeição tenta evitar que relações pessoais façam parecer que a imparcialidade está comprometida.

Repare na sutileza: a regra não está preocupada com a capacidade de o juiz julgar um amigo ou parente de modo imparcial, mas com a imagem suspeita que isso passa ao público. É regra de autoproteção institucional, de manutenção da credibilidade. É dessa moeda que vive a autoridade do Judiciário. É essa moeda que Gilmar Mendes despreza.

O caso é exemplar. A mulher do ministro do Supremo Tribunal Federal foi madrinha de casamento da filha de Barata. O advogado de Barata é também advogado de Gilmar. No escritório desse advogado trabalha a mulher de Gilmar. Barata é sócio do cunhado de Gilmar. O telefone da esposa de Gilmar está na na agenda do celular de Barata.

Para negar sua suspeição, Gilmar respondeu com pitada de humor surrealista: “o casamento [da filha de barata] não durou nem seis meses”.

O episódio sintetiza livros de sociologia brasileira: os nexos de compadrio e parentesco na reprodução de elites predatórias, as trocas patrimonialistas de favor em prejuízo do interesse público, a cínica retórica legalista ao lado de seguidos abusos de poder. Está tudo ali, num único caso.

A biografia judicial de Gilmar Mendes esgota os atributos do que um juiz não pode fazer, um guia passo a passo da improbidade judicial.

Um ministro do Supremo nunca foi alvo de tantos pedidos de impeachment: de Fábio Konder Comparato a Alexandre Frota, um sem número de pessoas já assinou pleitos formais ao Senado. Já esgotamos as palavras, os argumentos, os apelos. Gilmar Mendes esgotou nossa capacidade de nos surpreender.

A omissão do STF causa danos incalculáveis ao país. A corte se acua, enquanto Gilmar Mendes sapateia à margem da lei. Trata-o com a deferência e o respeito que ele perdeu até por si mesmo. Sequestrado, o tribunal contraiu Síndrome de Estocolmo (estado psicológico em que o agredido adquire afeto pelo agressor).

Os gritos e sussurros de Gilmar dependem do freguês: aos inimigos, o ataque histriônico (Rodrigo Janot e Ricardo Lewandowski foram os alvos recentes); aos amigos, um “abraço de solidariedade” e a certeza de que não se declarará suspeito.

A amizade de Gilmar Mendes é ativo político e gera dividendos. Michel Temer, Eduardo Cunha, Rodrigo Maia, Aécio Neves, José Serra, Romero Jucá e Moreira Franco sabem disso. João Doria captou e o recebeu para “discussão de conjuntura”. Já sabemos quem se dobra por Gilmar, resta saber por quem ele se dobra.

Gilmar Mendes trata a Constituição com choques elétricos. Atiça as emoções primárias de seu público, mas a resistência da democracia brasileira a emoções primárias está se esgotando.

Desobedecer a Gilmar Mendes tornou-se imperativo democrático, uma causa suprapartidária. Manda quem não pode, desobedece quem tem juízo (Conrado Hubner Mendes é doutor em ciência política pela USP, é professor de direito constitucional da Faculdade de Direito da mesma universidade; Folha de S.Paulo, 31/8/17)