Sociólogo, advogado, cientista político e diplomata, Paulo Sérgio Pinheiro tem no currículo uma trajetória de contribuições pela Organização das Nações Unidas (ONU) em regiões de conflito pelo mundo. Desde 2011, na condição de comissário que investiga violações de direitos humanos na Síria, está encarregado de preparar relatórios sobre a situação local, cuja guerra civil completará sete anos no primeiro semestre de 2018. E nada, em sua opinião, aponta para a possibilidade de uma paz completa até lá. “Não há e nem vai haver solução fácil”.

Aos 73 anos, Pinheiro fala com a experiência de quem testemunhou de perto os horrores de outros massacres em regiões conflituosas. Entre 1995 e 1998 foi relator especial da ONU para o Burundi, na África, mesma função que desempenhou entre 2000 e 2008 em Myanmar, no Sudeste Asiático. Antes da Síria, ainda elaborou um relatório sobre a violência contra crianças no planeta em um trabalho que lhe permitiu visitar mais de 50 países em três anos.

A guerra civil na Síria, porém, tem particularidades que a diferenciam das demais, como ressalta o diplomata ao lembrar que o conflito extrapola as fronteiras territoriais e os interesses de potências regionais e internacionais. A divisão entre cinco países membros do Conselho de Segurança sobre Damasco, alerta, favoreceu a escalada militar e a radicalização, com o fortalecimento de organizações terroristas, como a Al-Qaeda e o Estado Islâmico.

“Trata-se de uma guerra movida pelos interesses das partes em conflito e dos países que apoiam os grupos rebeldes ou o governo de Bashar al-Assad. Os interesses da população síria não são levados em conta”, diz o diplomata que apresentará em setembro um novo relatório sobre violações contra minorias religiosas, uso de armas químicas pelo governo e o impacto dos ataques aéreos da coalizão internacional, liderada pelos Estados Unidos.

Mesmo assim, Pinheiro se diz “cautelosamente otimista”. A paz, afirma, virá por etapas e uma nova janela de oportunidade se abriu com cessar fogo intermediado pela ONU com os EUA, a Rússia e Jordânia no sul da Síria, além do acordo de Astana, no Cazaquistão, que pode resultar na suspensão dos ataques aéreos em outras regiões do país. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Valor de seu apartamento, na capital paulista, em um dos intervalos das viagens quase mensais que faz a Genebra, na Suíça.

Valor: A ONU divulga em setembro um novo relatório sobre a situação da guerra civil na Síria. O que este documento deve apontar?

Paulo Sérgio Pinheiro: O relatório mostrará o total desprezo das partes em conflito pela proteção da população civil. Ou seja, os ataques de grupos terroristas contra minorias religiosas, a utilização de armas químicas e o impacto dos ataques aéreos da coalizão internacional, liderada pelos EUA, contra a população sob o domínio do Estado Islâmico em Raqqah.

Valor: Qual a síntese que se pode fazer dessa guerra?

Pinheiro: Trata-se de uma guerra movida pelos interesses das partes em conflito e dos países que apoiam os grupos rebeldes ou o governo de Bashar al-Assad. Os interesses da população síria não são levados em conta. A maior parte das mortes, que ninguém sabe exatamente os números, certamente está no conjunto da população civil e não nos combatentes, que lutam dentro cidades, desrespeitando a exigência de proteção imposta pelo direito humanitário.

Valor: A comunidade internacional tem sua parcela de culpa?

Pinheiro: Existe a responsabilidade compartilhada entre os países que fornecem as armas para os dois lados em conflito. Agora, é injusto generalizar a comunidade internacional. De fato parte dela está envolvida na guerra, mas ao mesmo tempo outra parte financia as agências da ONU que socorrem as populações.

Valor: A guerra civil síria completa sete anos no primeiro semestre de 2018. Por quê tem sido tão duradoura?

Pinheiro: Não é de se espantar que a guerra tenha levado todo esse tempo. Até por sua configuração. Ninguém é inocente.

Valor: O que em sua opinião foi determinante para esse prolongamento do conflito armado?

Pinheiro: A grande responsabilidade por essa guerra continuar, não a única, é a divisão entre os cinco membros do Conselho de Segurança. Isso, mais a divisão entre os países do Oriente Médio entre o apoio aos rebeldes ou o governo, favoreceu a escalada militar e a radicalização. Agora, essa não é a mesma guerra que teve início em 2011, dadas as mutáveis configurações das linhas de combate, as alianças entre os grupos armados e a intensificação de influências externas. Não há e nem vai haver solução fácil.

Valor: Por quê?

Pinheiro: A mediação no caso da Síria é muito complicada. Não é só um lado contra o outro. São o governo, seus aliados, centenas de grupos armados, combatentes estrangeiros e duas organizações terroristas, a Al-Qaeda e o Estado Islâmico, que não caíram do céu. Desde os primeiros relatórios chamávamos atenção para essa radicalização. A guerra é a profundamente internacionalizada, com o envolvimento de potências regionais e internacionais. Estamos no terceiro mediador. Os dois primeiros renunciaram pela falta de progresso.

Valor: O senhor está pessimista quanto a uma solução negociada?

Pinheiro: Sempre sou cautelosamente otimista. Há uma nova janela de oportunidade, pois em 9 de julho foi firmado um cessar fogo entre os EUA, a Rússia e Jordânia no sul da Síria, cobrindo as províncias de Daraa, Suwayda e Quneitra. Antes disso, em 4 de maio, a Rússia, Irã e Turquia assinaram acordo em Astana, no Cazaquistão, criando quadro zonas, “de-escalation zones”, onde ataques aéreos devem ser suspensos. Essas zonas incluem áreas controladas pelos grupos armados rebeldes. Mas há alguns problemas no meio.

Valor: Quais?

Pinheiro: Não estão claros os limites geográficos de cada área. Há discordância sobre quais forças armadas vão monitorar o cessar fogo. Mesmo assim, esse é um passo importante, ainda que a ONU não tenha sido um intermediário. Qualquer progresso, mesmo mínimo, sempre saudamos.

Valor: É possível prever a possibilidade de paz no médio prazo?

Pinheiro: Isso é impossível. Até hoje algumas das partes envolvidas não se sentam na mesma mesa. Nas reuniões em Genebra ficam em salas separadas e as conversas avançam por facilitadores. Não há solução fácil nem imediata. E mesmo depois de avanços nas negociações, provavelmente vão continuar as ameaças de grupos radicais. A paz virá por etapas, como agora no sul e nas zonas onde os ataques aéreos devem ser suspensos.

Valor: E quando este ciclo estará completo?

Pinheiro: Ninguém consegue prever. A situação na Síria é como um caleidoscópio. Cada vez que você olha está diferente. As alianças mudam e se renovam. Fazemos enorme esforço para acompanhar essas mudanças, mesmo sem podermos entrar na Síria.

Valor: Como fazem então?

Pinheiro: Conversamos com todos os países e lados envolvidos, com exceção das duas organizações terroristas. Falamos com vítimas da Síria por WhatsApp e Skype, que não são censurados. Ou então as pessoas saem do país para serem entrevistados por minha equipe. Temos 25 a 30 assessores e especialistas em Genebra, funcionários da ONU. Os comissionados e eu ainda viajamos pelas capitais, conversamos com governos, ONGs, pesquisadores e encontramos as vítimas.

Valor: Como o senhor vê a questão dos refugiados?
Pinheiro: Esse é um problema que tem de ser enfrentado junto com a reconstrução do país. Em junho havia 5 milhões de refugiados na Turquia, Líbano, Jordânia, Curdistão (Iraque), Egito e quase 1 milhão na Europa. Na Síria há a maior população deslocada internamente no mundo. São 6,5 milhões de pessoas, incluindo 2,8 milhões de crianças.

Valor: A comunidade internacional tem feito esforços suficientes em relação a isso?

Pinheiro: Os países vizinhos foram de grande generosidade. Alguns até afetaram sua estabilidade com esse apoio. O Líbano, por exemplo, tem 1 milhão de refugiados sírios em meio a um equilíbrio precário entre suas diversas comunidades religiosas. Hoje, há mais crianças sírias do que libanesas na escola primária.

Valor: Como é o papel da Europa no acolhimento aos refugiados?

Pinheiro: O atendimento é desigual. Alguns países europeus, profundamente refratários ao acolhimento dos refugiados, esqueceram da generosidade que tiveram seus refugiados quando o bloco socialista desabou. Em outros o acolhimento tem sido mais respeitoso, como na Alemanha, Grécia e Suécia.